Dice la canción

Sé que mientes de Sara Marín

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Vértigo

6 de mayo de 2016

Significado de Sé que mientes

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Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.
Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.

Ao verme
que
primeiro roeu as frias carnes
do meu cadáver
dedico
como saudosa lembrança
estas
Memórias Póstumas

Prólogo da terceira edição

A primeira edição destas Memórias Póstumas de Brás Cubas foi feita
aos pedaços na Revista Brasileira, pelos anos de 1880. Postas mais
tarde em livro, corrigi o texto em vários lugares. Agora que tive de o
rever para a terceira edição, emendei ainda alguma coisa e suprimi
duas ou três dúzias de linhas. Assim composta, sai novamente à luz
esta obra que alguma benevolência parece ter encontrado no público.
Capistrano de Abreu, noticiando a publicação do livro, perguntava:
“As Memórias Póstumas de Brás Cubas são um romance?” Macedo
Soares, em carta que me escreveu por esse tempo, recordava
amigamente as Viagens na minha terra. Ao primeiro respondia já o
defunto Brás Cubas (como o leitor viu e verá no prólogo dele que vai
adiante) que sim e que não, que era romance para uns e não o era
para outros. Quanto ao segundo, assim se explicou o finado: “Tratase
de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma
livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti
algumas rabugens de pessimismo.” Toda essa gente viajou: Xavier de
Maistre à roda do quarto, Garret na terra dele, Sterne na terra dos
outros. De Brás Cubas se pode dizer que viajou à roda da vida.

O que faz do meu Brás Cubas um autor particular é o que ele chama
“rabugens de pessimismo”. Há na alma deste livro, por mais risonho
que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir
de seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas
leva outro vinho. Não digo mais para não entrar na crítica de um
defunto, que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e
mais certo.

Machado de Assis.

AO LEITOR
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem
leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem
provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem
leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito,
dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na
qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um
Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de
pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da
galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá
sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas
aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará
nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e
do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro
remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o
que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e
truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário
que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no
outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás
desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo:
se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,
pago-te com um piparote, e adeus.

Brás Cubas.

CAPÍTULO PRIMEIRO / ÓBITO DO AUTOR

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou
pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a
minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento,
duas considerações me levaram a adotar diferente método: a
primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um
defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que
o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também
contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença
radical entre este livro e o Pentateuco.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês
de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns
sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca
de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze
amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem
anúncios. Acresce que chovia — peneirava uma chuvinha miúda,
triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles
fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que
proferiu à beira de minha cova: — “Vós, que o conhecestes, meus
senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar
chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que
têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu,
aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo,
tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à Natureza as mais íntimas
entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”

Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe
deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim
que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as
ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego
como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viramme
ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha
irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha, — um lírio do vale, — e...
Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira
senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não
parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais.
Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão,
convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um
solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que
reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o
que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à
cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a
triste senhora mal podia crer na minha extinção.

— “Morto! morto!” dizia consigo.

E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu
desferirem o vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das
ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa senhora também voou
por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil...
Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir
aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranqüilamente,
metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos
homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e
o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá
fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte
foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em
diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com
uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia
à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra e
lodo, e coisa nenhuma.

Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a
pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha
morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou
expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.

CAPÍTULO II / O EMPLASTO

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara,
pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma
vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais
arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me
estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os
braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou
devoro-te.

Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento
sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa
melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi,
chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente
cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias
que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão
profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida,
posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de
ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim
nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas.
Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete
de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse defeito; fio, porém,
que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha
idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o
público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro
lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória.

Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o
amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem
cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos
antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais
verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a
sua mais genuína feição.

Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.

CAPÍTULO III / GENEALOGIA

Mas, já que falei nos meus dois tios, deixem-me fazer aqui um curto
esboço genealógico.

O fundador da minha família foi um certo Damião Cubas, que
floresceu na primeira metade do século XVIII. Era tanoeiro de ofício,
natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penúria e na
obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se
lavrador, plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e
honradas patacas, até que morreu, deixando grosso cabedal a um
filho, licenciado Luís Cubas. Neste rapaz é que verdadeiramente
começa a série de meus avós — dos avós que a minha família sempre
confessou, — porque o Damião Cubas era afinal de contas um
tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Luís Cubas estudou
em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do
vice-rei Conde da Cunha.

Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria,
alegava meu pai, bisneto de Damião, que o dito apelido fora dado a
um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha
que praticou, arrebatando trezentas cubas aos mouros. Meu pai era
homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um
calembour. Era um bom caráter, meu pai, varão digno e leal como
poucos. Tinha, é verdade, uns fumos de pacholice; mas quem não é
um pouco pachola nesse mundo? Releva notar que ele não recorreu à
inventiva senão depois de experimentar a falsificação;
primeiramente, entroncou-se na família daquele meu famoso
homônimo, o capitão-mor, Brás Cubas, que fundou a vila de São
Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o
nome de Brás. Opôs-se-lhe, porém, a família do capitão-mor, e foi
então que ele imaginou as trezentas cubas mouriscas.

Vivem ainda alguns membros de minha família, minha sobrinha
Venância, por exemplo, o lírio do vale, que é a flor das damas do seu
tempo; vive o pai, o Cotrim, um sujeito que... Mas não antecipemos
os sucessos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto.

CAPÍTULO IV / A IDÉIA FIXA

A minha idéia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se idéia fixa.
Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma
trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéia fixa da unidade italiana que o
matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir
que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma eterna
loureira. Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um
simplório, — ou “uma abóbora” como lhe chamou Sêneca, e um Tito,
que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um
professor e achou meio de demonstrar que dos dois césares, o
delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o “abóbora” de Sêneca. E tu,
madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a
Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou
muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste
pântano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio.

Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e, tornando
à idéia fixa, direi que é ela a que faz os varões fortes e os doidos; a
idéia móbil, vaga ou furta-cor é a que faz os Cláudios, — fórmula
Suetônio.

Era fixa a minha idéia, fixa como... Não me ocorre nada que seja
assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito,
talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que
melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só
porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá
iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros
leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos.
Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a
pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra
supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo
brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem
regala, e é todavia mais do que passatempo e menos do que
apostolado.

Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a
história com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós
pelejou a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confissão de
Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me lembro de
Cromwell, é só pela idéia de que Sua Alteza, com a mesma mão que
trancara o parlamento, teria imposto aos ingleses o emplasto Brás
Cubas. Não se riam dessa vitória comum da farmácia e do
puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande,
pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras
modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra
daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é
como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu
este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a
comparação não presta.

CAPÍTULO V / EM QUE APARECE A ORELHA DE UMA SENHORA

Senão quando, estando eu ocupado em preparar e apurar a minha
invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me
tratei. Tinha o emplasto no cérebro; trazia comigo a idéia fixa dos
doidos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e
remontar ao Céu, como uma águia imortal, e não é diante de tão
excelso espetáculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No
outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem
método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que
me trouxe à eternidade. Sabem já que morri numa sexta-feira, dia
aziago, e creio haver provado que foi a minha invenção que me
matou. Há demonstrações menos lúcidas e não menos triunfantes.

Não era impossível, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de
um século, e a figurar nas folhas públicas, entre macróbios. Tinha
saúde e robustez. Suponha-se que, em vez de estar lançando os
alicerces de uma invenção farmacêutica, tratava de coligir os
elementos de uma instituição política, ou de uma reforma religiosa.
Vinha a corrente de ar, que vence em eficácia o cálculo humano, e lá
se ia tudo. Assim corre a sorte dos homens.

Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta,
mas com certeza mais formosa entre as contemporâneas suas, a
anônima do primeiro capítulo, a tal, cuja imaginação à semelhança
das cegonhas do Ilisso... Tinha então 54 anos, era uma ruína, uma
imponente ruína. Imagine o leitor que nos amamos, ela e eu, muitos
anos antes, e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar à porta da
alcova...

CAPÍTULO VI / CHIMÈNE, QUI L'EÛT DIT? RODRIGUE, QUI
L'EÛT CRU?

Vejo-a assomar à porta da alcova, pálida, comovida, trajada de
preto, e ali ficar durante um minuto, sem ânimo de entrar, ou detida
pela presença de um homem que estava comigo. Da cama, onde
jazia, contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada
ou de fazer nenhum gesto. Havia já dois anos que nos não víamos, e
eu via-a agora não qual era, mas qual fora, quais fôramos ambos,
porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis.
Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de pó, que a
morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo,
que é o ministro da morte. Nenhuma água de Juventa igualaria ali a
simples saudade.

Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade
presente; há nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e
cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras,
porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se
gosta sem doer.

Não durou muito a evocação; a realidade dominou logo; o presente
expeliu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto
deste livro, a minha teoria das edições humanas. O que por agora
importa saber é que Virgília — chamava-se Virgília — entrou na
alcova, firme, com a gravidade que lhe davam as roupas e os anos, e
veio até o meu leito. O estranho levantou-se e saiu. Era um sujeito,
que me visitava todos os dias para falar do câmbio, da colonização e
da necessidade de desenvolver a viação férrea; nada mais
interessante para um moribundo. Saiu; Virgília deixou-se estar de pé;
durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular
palavra. Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões
sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dois
corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se
em igual dose, mas enfim saciados. Virgília tinha agora a beleza da
velhice, um ar austero e maternal; estava menos magra do que
quando a vi, pela última vez, numa festa de São João, na Tijuca; e
porque era das que resistem muito, só agora começavam os cabelos
escuros a intercalar-se com alguns fios de prata.

— Anda visitando os defuntos? disse-lhe eu. — Ora, defuntos!
respondeu Virgília com um muxoxo. E depois de me apertar as mãos:
— Ando a ver se ponho os vadios para a rua.

Não tinha a carícia lacrimosa de outro tempo; mas a voz era amiga e
doce. Sentou-se. Eu estava só, em casa, com um simples enfermeiro;
podíamos falar um ao outro, sem perigo. Virgília deu-me longas
notícias de fora, narrando-as com graça, com um certo travo de má
língua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo,
sentia um prazer satânico em mofar dele, em persuadir-me que não
deixava nada.

— Que idéias essas! interrompeu-me Virgília um tanto zangada. Olhe
que não volto mais. Morrer! Todos nós havemos de morrer; basta
estarmos vivos.

E vendo o relógio:

— Jesus! são três horas. Vou-me embora.

— Já?

— Já; virei amanhã ou depois.

— Não sei se faz bem, retorqui; o doente é um solteirão e a casa não
tem senhoras...

— Sua mana?

— Há de vir cá passar uns dias, mas não pode ser antes de sábado.

Virgília refletiu um instante, levantou os ombros e disse com
gravidade:

— Estou velha! Ninguém mais repara em mim. Mas, para cortar
dúvidas, virei com o Nhonhô.

Nhonhô era um bacharel, único filho de seu casamento, que, na idade
de cinco anos, fora cúmplice inconsciente de nossos amores. Vieram
juntos, dois dias depois, e confesso que, ao vê-los ali, na minha
alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permitiu
corresponder logo às palavras afáveis do rapaz. Virgília adivinhou-me
e disse ao filho:

— Nhonhô, não repares nesse grande manhoso que aí está; não quer
falar para fazer crer que está à morte.

Sorriu o filho, eu creio que também sorri, e tudo acabou em pura
galhofa. Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas
imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse
denunciar nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma
dominação sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras.
Como tocássemos, casualmente, nuns amores ilegítimos, meio
secretos, meio divulgados, vi-a falar com desdém e um pouco de
indignação da mulher de que se tratava, aliás sua amiga. O filho
sentia-se satisfeito, ouvindo aquela palavra digna e forte, e eu
perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões, se Buffon
tivesse nascido gavião...

Era o meu delírio que começava.

CAPÍTULO VII / O DELÍRIO

Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o
eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação
destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à
narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é
interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns
vinte a trinta minutos.

Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro,
escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões
e confeitos: caprichos de mandarim.

Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de São
Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com
fechos de prata e estampas; idéia esta que me deu ao corpo a mais
completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as
minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre,
alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a
imagem de um defunto.

Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo,
que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou
confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou
vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe
disse que a viagem me parecia sem destino.

— Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos.

Insinuei que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me
entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas coisas; e,
perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo
de Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto
peculiar a estes dois quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha
parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá
de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade,
por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa
como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou
menos do que a consumação dos mesmos séculos: reflexões de
cérebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho;
lembra-me só que a sensação de frio aumentava com a jornada, e
que chegou uma ocasião em que me pareceu entrar na região dos
gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal
galopava numa planície branca de neve, e vários animais grandes e
de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei
falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:

— Onde estamos?

— Já passamos o Éden.

— Bem; paremos na tenda de Abraão.

— Mas se nós caminhamos para trás! redargüiu motejando a minha
cavalgadura.

Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou e parecer-me enfadonha e
extravagante, o frio incômodo, a condução violenta, e o resultado
impalpável. E depois — cogitações do enfermo — dado que
chegássemos ao fim indicado, não era impossível que os séculos,
irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as
unhas, que deviam ser tão seculares como eles. Enquanto assim
pensava, íamos devorando caminho, e a planície voava debaixo dos
nossos pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais
tranqüilamente em torno de mim. Olhar somente; nada vi, além da
imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até
ali azul. Talvez, a espaços, me parecia uma ou outra planta, enorme,
brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silêncio
daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das
coisas ficara estúpida diante do homem.

Caiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso,
uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos
rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas
selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque
os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era
muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a
soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve,
perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.

— Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.

Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A
figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito
de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a
mudez das coisas externas.

— Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo
pela vida que se afirma. Vives; não quero outro flagelo.

— Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para
certificar-me da existência.

— Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu
orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho
da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua
consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres
viver.

Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e
levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe
de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma
contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a
feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da
eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam
encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão
glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do
qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres.

— Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua
contemplação.

— Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma
fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci,
tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã,
que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a
Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um
flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E
por que Pandora?

— Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de
todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?

— Sim; o teu olhar fascina-me.

— Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu
estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo,
espera-te a voluptuosidade do nada.

Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale,
afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos;
pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então,
encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.

— Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes
de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do
espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei
menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde,
a quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior
benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?

— Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração
este amor da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de
golpear a ti mesma, matando-me?

— Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que
passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo,
supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o
outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não
tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque
o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto
melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.

Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os
olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo,
ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu,
leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças
todas, todas as paixões, o tumulto dos Impérios, a guerra dos
apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas.
Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do
homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam
dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e
a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a
condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso
fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não
obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que
passava diante de mim,— flagelos e delícias, — desde essa coisa que
se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor
multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí
vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba,
e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a
vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o
homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram
as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o
pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim,
em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia
à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era
uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante
da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva,
feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável,
outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da
imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da
felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar
pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um
escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.

Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de
angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e
não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, —
de um riso descompassado e idiota.

— Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, — talvez
monótona — mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que
fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o
espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é
divertida, mas digere-me.

A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os
séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as
gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os
Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo,
e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força
misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: — “Bem, os
séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o
último, que me dará a decifração da eternidade.” E fixei os olhos, e
continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então
tranqüilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século
trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de
verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de
novas ilusões; cada um deles rebentavam as verduras de uma
primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo
que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a
história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e
vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de
cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva,
fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao
ventre da Terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na
obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a
melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim
chegar o século presente, e atrás deles os futuros. Aquele vinha ágil,
destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas
ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim
passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia.
Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, — o último!;
mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a
compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por
isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros
minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu
tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás
começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de
um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato
Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...

CAPÍTULO VIII / RAZÃO CONTRA SANDICE

Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e
convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras
de Tartufo:

La maison est à moi, c'est à vous d'en sortir.

Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo
que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É
sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora,
se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez,
outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta
amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso, houve
quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não
queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o
que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no
sótão.

— Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder
sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar
mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.

— Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um
mistério...

— Que mistério?

— De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só
uns dez minutos.

A Razão pôs-se a rir.

— Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa...
sempre a mesma coisa...

E dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois
entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas,
grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a
língua de fora, em ar de surriada, e foi andando...

CAPÍTULO IX / TRANSIÇÃO

E vejam agora com que destreza; com que arte faço eu a maior
transição deste livro. Vejam: o meu delírio começou em presença de
Virgília; Virgília foi o meu grão pecado da juventude; não há
juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui
como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em
que nasci. Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a
atenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim com
todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na
verdade, era tempo. Que isto de método, sendo, como é, uma coisa
indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios,
mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da
vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão. É como a
eloqüência, que há uma genuína e vibrante, de uma arte natural e
feiticeira, e outra tesa, engomada e chocha. Vamos ao dia 20 de
outubro.

CAPÍTULO X / NAQUELE DIA

Naquele dia, a árvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci;
recebeu-me nos braços a Pascoela, insigne parteira minhota, que se
gabava de ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de
fidalgos. Não é impossível que meu pai lhe ouvisse tal declaração;
creio, todavia, que o sentimento paterno é que o induziu a gratificá-la
com duas meias dobras. Lavado e enfaixado, fui desde logo o herói
da nossa casa. Cada qual prognosticava a meu respeito o que mais
lhe quadrava ao sabor. Meu tio João, o antigo oficial de infantaria,
achava-me um certo olhar de Bonaparte, coisa que meu pai não pôde
ouvir sem náuseas; meu tio Ildefonso, então simples padre, farejavame
cônego.

— Cônego é o que ele há de ser, e não digo mais por não parecer
orgulho; mas não me admiraria nada se Deus o destinasse a um
bispado... É verdade, um bispado; não é coisa impossível. Que diz
você, mano Bento?

Meu pai respondia a todos que eu seria o que Deus quisesse; e
alçava-me ao ar, como se intentasse mostrar-me à cidade e ao
mundo; perguntava a todos se eu me parecia com ele, se era
inteligente, bonito...

Digo essas coisas por alto, segundo as ouvi narrar anos depois;
ignoro a mor parte dos pormenores daquele famoso dia. Sei que a
vizinhança veio ou mandou cumprimentar o recém-nascido, e que
durante as primeiras semanas muitas foram as visitas em nossa
casa. Não houve cadeirinha que não trabalhasse; aventou-se muita
casaca e muito calção. Se não conto os mimos, os beijos, as
admirações, as bênçãos, é porque, se os contasse, não acabaria mais
o capítulo, e é preciso acabá-lo.

Item, não posso dizer nada do meu batizado, porque nada me
referiram a tal respeito, a não ser que foi uma das mais galhardas
festas do ano seguinte, 1806; batizei-me na igreja de São Domingos,
uma terça-feira de março, dia claro, luminoso e puro, sendo
padrinhos o Coronel Rodrigues de Matos e sua senhora. Um e outro
descendiam de velhas famílias do Norte e honravam deveras o
sangue que lhes corria nas veias, outrora derramado na guerra
contra Holanda. Cuido que os nomes de ambos foram das primeiras
coisas que aprendi; e certamente os dizia com muita graça, ou
revelava algum talento precoce, porque não havia pessoa estranha
diante de quem me não obrigassem a recitá-los.

— Nhonhô, diga a estes senhores como é que se chama seu
padrinho.

— Meu padrinho? é o Excelentíssimo Senhor Coronel Paulo Vaz Lobo
César de Andrade e Sousa Rodrigues de Matos; minha madrinha é a
Excelentíssima Senhora D. Maria Luísa de Macedo Resende e Sousa
Rodrigues de Matos.

— É muito esperto o seu menino! exclamavam os ouvintes.

— Muito esperto, concordava meu pai; e os olhos babavam-se-lhe de
orgulho, e ele espalmava a mão sobre a minha cabeça, fitava-me
longo tempo, namorado, cheio de si.

Item, comecei a andar, não sei bem quando, mas antes do tempo.
Talvez por apressar a natureza, obrigavam-me cedo a agarrar às
cadeiras, pegavam-me da fralda, davam-me carrinhos de pau. — Só
só, nhonhô, só só, dizia-me a mucama. E eu, atraído pelo chocalho
de lata, que minha mãe agitava diante de mim, lá ia para a frente,
cai aqui, cai acolá; e andava, provavelmente mal, mas andava, e
fiquei andando.

CAPÍTULO XI / O MENINO É PAI DO HOMEM

Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente,
como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos
matreiros, e com certeza, as magnólias são menos inquietas do que
eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do
homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e
verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu
tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um
dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher
do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o
malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da
travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o
doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um
moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos
no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepavalhe
ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas
a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, —
mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — “ai,
nhonhô!” — ao que eu retorquia: — “Cala a boca, besta!” — Esconder
os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar
pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e
outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio
indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito
robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às
vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples
formalidade: em particular dava-me beijos.

Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a
quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas
opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens, isso fui; se não
passei o tempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes puxei
pelo rabicho das cabeleiras.

Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclineime
a atenuá-la, a explicá-la, a classifiquei-a por partes, a entendê-la,
não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e
lugares. Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar
alguns preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as
orações, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia
o espírito, que a faz viver, para se tornar uma vã fórmula. De manhã,
antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me
perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre
a manhã e a noite fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o
alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah!
brejeiro! ah! brejeiro!

Sim, meu pai adorava-me. Minha mãe era uma senhora fraca, de
pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa,
— caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de abastada;
temente às trovoadas e ao marido. O marido era na Terra o seu
deus. Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha
educação, que, se tinha alguma coisa boa, era no geral viciosa,
incompleta, e, em partes, negativa. Meu tio cônego fazia às vezes
alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que ele me dava mais liberdade do
que ensino, e mais afeição do que emenda; mas meu pai respondia
que aplicava na minha educação um sistema inteiramente superior ao
sistema usado; e por este modo, sem confundir o irmão, iludia-se a si
próprio.

De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemplo
estranho, o meio doméstico. Vimos os pais; vejamos os tios. Um
deles, o João, era um homem de língua solta, vida galante, conversa
picaresca. Desde os onze anos entrou a admitir-me às anedotas reais
ou não, eivadas todas de obscenidade ou imundície. Não me
respeitava a adolescência, como não respeitava a batina do irmão;
com a diferença que este fugia logo que ele enveredava por assunto
escabroso. Eu não; deixava-me estar, sem entender nada, a
princípio, depois entendendo, e enfim achando-lhe graça. No fim de
certo tempo, quem o procurava era eu; e ele gostava muito de mim,
dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa, quando lá ia passar
alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo, no fundo da
chácara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam
roupa; aí é que era um desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e
um estalar de risadas, que ninguém podia ouvir, porque o lavadouro
ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a
arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque,
outras fora, inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a
ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redargüindo às pilhérias do
tio João, e a comentá-las de quando em quando com esta palavra:

— Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!

Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade e
pureza; tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior,
apenas compensavam um espírito medíocre. Não era homem que
visse a parte substancial da igreja; via o lado externo, a hierarquia,
as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da
sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que
uma infração dos mandamentos. Agora, a tantos anos de distância,
não estou certo se ele poderia atinar facilmente com um trecho de
Tertuliano, ou expor, sem titubear, a história do símbolo de Nicéia;
mas ninguém, nas festas cantadas, sabia melhor o número e casos
das cortesias que se deviam ao oficiante. Cônego foi a única ambição
de sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a que
podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na
observância das regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuía
algumas virtudes, em que era exemplar, mas carecia absolutamente
da força de as incutir, de as impor aos outros.

Não digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana, e aliás era a
pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa diferençava-se
grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa
companhia, uns dois anos. Outros parentes e alguns íntimos não
merecem a pena de ser citados; não tivemos uma vida comum, mas
intermitente, com grandes claros de separação. O que importa é a
expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada, —
vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do
arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa
terra e desse estrume é que nasceu esta flor.

CAPÍTULO XII / UM EPISÓDIO DE 1814

Mas eu não quero passar adiante, sem contar sumariamente um
galante episódio de 1814; tinha nove anos.

Napoleão, quando eu nasci, estava já em todo o esplendor da glória e
do poder; era imperador e granjeara inteiramente a admiração dos
homens. Meu pai, que à força de persuadir os outros da nossa
nobreza, acabara persuadindo-se a si próprio, nutria contra ele um
ódio puramente mental. Era isso motivo de renhidas contendas em
nossa casa, porque meu tio João, não sei se por espírito de classe e
simpatia de ofício, perdoava no déspota o que admirava no general,
meu tio padre era inflexível contra o corso; os outros parentes
dividiam-se: daí as controvérsias e as rusgas.

Chegando ao Rio de Janeiro a notícia da primeira queda de Napoleão,
houve naturalmente grande abalo em nossa casa, mas nenhum
chasco ou remoque. Os vencidos, testemunhas do regozijo público,
julgaram mais decoroso o silêncio; alguns foram além e bateram
palmas. A população, cordialmente alegre, não regateou
demonstrações de afeto à real família; houve iluminações, salvas, TeDeum,
cortejo e aclamações. Figurei nesses dias com um espadim
novo, que meu padrinho me dera no dia de Santo Antônio; e,
francamente, interessava-me mais o espadim do que a queda de
Bonaparte. Nunca me esqueceu esse fenômeno. Nunca mais deixei de
pensar comigo que o nosso espadim é sempre maior do que a espada
de Napoleão. E notem que eu ouvi muito discurso, quando era vivo, li
muita página rumorosa de grandes idéias e maiores palavras, mas
não sei por que, no fundo dos aplausos que me arrancavam da boca,
lá ecoava alguma vez este conceito de experimentado:

— Vai-te embora, tu só cuidas do espadim.

Não se contentou a minha família em ter um quinhão anônimo no
regozijo público; entendeu oportuno e indispensável celebrar a
destituição do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruído das
aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou quando menos,
de seus ministros. Dito e feito. Veio abaixo toda a velha prataria,
herdada do meu avô Luís Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as
grandes jarras da Índia; matou-se um capado; encomendaram-se às
madres da Ajuda as compotas e as marmeladas; lavaram-se,
arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçais, arandelas, as
vastas mangas de vidro, todos os aparelhos do luxo clássico.

Dada a hora, achou-se reunida uma sociedade seleta: o juiz-de-fora,
três ou quatro oficiais militares, alguns comerciantes e letrados,
vários funcionários da administração, uns com suas mulheres e filhas,
outros sem elas, mas todos comungando no desejo de atolar a
memória de Bonaparte no papo de um peru. Não era um jantar, mas
um Te-Deum; foi o que pouco mais ou menos disse um dos letrados
presentes, o Dr. Vilaça, glosador insigne, que acrescentou aos pratos
de casa o acepipe das musas. Lembra-me, como se fosse ontem,
lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho,
casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que
lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de
uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos
o dedo índice, que apontava para o teto; e, assim posto e composto,
devolver o mote glosado. Não fez uma glosa, mas três; depois jurou
aos seus deuses não acabar mais. Pedia um mote, davam-lho, ele
glosava-o prontamente, e logo pedia outro e mais outro; a tal ponto
que uma das senhoras presentes não pôde calar a sua grande
admiração.

— A senhora diz isso, retorquia modestamente o Vilaça, porque
nunca ouviu o Bocage, como eu ouvi, no fim do século, em Lisboa.
Aquilo sim! que facilidade! e que versos! Tivemos lutas de uma e
duas horas, no botequim do Nicola, a glosarmos, no meio de palmas
e bravos. Imenso talento o do Bocage! Era o que me dizia, há dias, a
senhora Duquesa de Cadaval...

E estas três palavras últimas, expressas com muita ênfase,
produziram em toda a assembléia um frêmito de admiração e pasmo.
Pois esse homem tão dado, tão simples, além de pleitear com poetas,
discreteava com duquesas! Um Bocage e uma Cadaval! Ao contato de
tal homem, as damas sentiam-se superfinas; os varões olhavam-no
com respeito, alguns com inveja, não raros com incredulidade. Ele,
entretanto, ia caminho, a acumular adjetivo sobre adjetivo, advérbio
sobre advérbio, a desfiar todas as rimas de tirano e de usurpador.
Era à sobremesa; ninguém já pensava em comer. No intervalo das
glosas, corria um burburinho alegre, um palavrear de estômagos
satisfeitos; os olhos moles e úmidos, ou vivos e cálidos,
espreguiçavam-se ou saltitavam de uma ponta à outra da mesa,
atulhada de doces e frutas, aqui o ananás em fatias, ali o melão em
talhadas, as compoteiras de cristal deixando ver o doce de coco,
finamente ralado, amarelo como uma gema, — ou então o melado
escuro e grosso, não longe do queijo e do cará. De quando em
quando um riso jovial, amplo, desabotoado, um riso de família, vinha
quebrar a gravidade política do banquete. No meio do interesse
grande e comum, agitavam-se também os pequenos e particulares.
As moças falavam das modinhas que haviam de cantar ao cravo, e do
minuete e do solo inglês; nem faltava matrona que prometesse bailar
um oitavado de compasso, só para mostrar como folgara nos seus
bons tempos de criança. Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro
notícia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo cartas
que recebera de Loanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já
negociado cerca de quarenta cabeças, e outra carta em que... Traziaas
justamente na algibeira, mas não as podia ler naquela ocasião. O
que afiançava é que podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e
vinte negros, pelo menos.

— Trás... trás... trás... fazia o Vilaça batendo com as mãos uma na
outra. O rumor cessava de súbito, como um estacado de orquestra, e
todos os olhos se voltavam para o glosador. Quem ficava longe
aconcheava a mão atrás da orelha para não perder palavra; a mor
parte, antes mesmo da glosa, tinha já um meio riso de aplauso,
trivial e cândido.

Quanto a mim, lá estava, solitário e deslembrado, a namorar certa
compota da minha paixão. No fim de cada glosa ficava muito
contente, esperando que fosse a última, mas não era, e a sobremesa
continuava intata. Ninguém se lembrava de dar a primeira voz. Meu
pai, à cabeceira, saboreava a goles extensos a alegria dos convivas,
mirava-se todo nos carões alegres, nos pratos, nas flores, deliciavase
com a familiaridade travada entre os mais distantes espíritos,
influxo de um bom jantar. Eu via isso, porque arrastava os olhos da
compota para ele e dele para a compota, como a pedir-lhe que ma
servisse; mas fazia-o em vão. Ele não via nada; via-se a si mesmo. E
as glosas sucediam-se, como bátegas d'água, obrigando-me a
recolher o desejo e o pedido. Pacientei quanto pude; e não pude
muito. Pedi em voz baixa o doce; enfim, bradei, berrei, bati com os
pés. Meu pai, que seria capaz de me dar o sol, se eu lho exigisse,
chamou um escravo para me servir o doce; mas era tarde. A tia
Emerenciana arrancara-me da cadeira e entregara-me a uma
escrava, não obstante os meus gritos e repelões.

Não foi outro o delito do glosador: retardara a compota e dera causa
à minha exclusão. Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingança,
qualquer que fosse, mas grande e exemplar, coisa que de alguma
maneira o tornasse ridículo. Que ele era um homem grave o Dr.
Vilaça, medido e lento, quarenta e sete anos, casado e pai. Não me
contentava o rabo de papel nem o rabicho da cabeleira; havia de ser
coisa pior. Entrei a espreitá-lo, durante o resto da tarde, a segui-lo,
na chácara, aonde todos desceram a passear. Vi-o conversar com D.
Eusébia, irmã do sargento-mor Domingues, uma robusta donzelona,
que se não era bonita, também não era feia.

— Estou muito zangada com o senhor, dizia ela.

— Por quê?

— Porque... não sei por quê... porque é a minha sina... creio às vezes
que é melhor morrer.

Tinham penetrado numa pequena moita; era lusco-fusco; eu seguios.
O Vilaça levava nos olhos umas chispas de vinho e de volúpia.

— Deixe-me! disse ela.

— Ninguém nos vê. Morrer, meu anjo? Que idéias são essas! Você
sabe que eu morrerei também... que digo?... morro todos os dias, de
paixão, de saudades...

D. Eusébia levou o lenço aos olhos. O glosador vasculhava na
memória algum pedaço literário e achou este, que mais tarde
verifiquei ser de uma das óperas do Judeu:

— Não chores, meu bem; não queiras que o dia amanheça com duas
auroras.

Disse isto; puxou-a para si; ela resistiu um pouco, mas deixou-se ir;
uniram os rostos, e eu ouvi estalar, muito ao de leve, um beijo, o
mais medroso dos beijos.

— O Dr. Vilaça deu um beijo em D. Eusébia! bradei eu correndo pela
chácara.

Foi um estouro esta minha palavra; a estupefação imobilizou a todos;
os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos,
segredos, à socapa, as mães arrastavam as filhas, pretextando o
sereno. Meu pai puxou-me as orelhas, disfarçadamente, irritado
deveras com a indiscrição; mas no dia seguinte, ao almoço,
lembrando o caso, sacudiu-me o nariz a rir: Ah! brejeiro! ah!
brejeiro!

CAPÍTULO XIII / UM SALTO

Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola, a
enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar
cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas
praias, onde quer que fosse propício a ociosos.

Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições
árduas e longas, e pouco mais, muito pouco e muito leve. Só era
pesada, a palmatória, e ainda assim... Ó palmatória, terror dos meus
dias pueris, tu que foste o compelle intrare com que um velho
mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia,
a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória, tão praguejada
dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha
alma imberbe, as minhas ignorâncias, e o meu espadim, aquele
espadim de 1814, tão superior à espada de Napoleão! Que querias
tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e
compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que
é das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo,
nunca me meteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as
tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostra,
barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada
inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três
anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do
Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um
dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo
um preto velho, — ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da
escrita.

Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo
nesta página: Ludgero Barata, — um nome funesto, que servia aos
meninos de eterno mote a chufas. Um de nós, o Quincas Borba, esse
então era cruel com o pobre homem. Duas, três vezes por semana,
havia de lhe deixar na algibeira das calças, — umas largas calças de
enfiar —, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata
morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo,
circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos
sevandijas, capadócios, malcriados, moleques. — Uns tremiam,
outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se estar quieto,
com os olhos espetados no ar.

Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda
a minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso.
Era a flor, e não já da escola, senão de toda a cidade. A mãe, viúva,
com alguma coisa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado,
asseado, enfeitado, com um vistoso pajem atrás, um pajem que nos
deixava gazear a escola, ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir
lagartixas nos morros do Livramento e da Conceição, ou
simplesmente arruar, à toa, como dois peraltas sem emprego. E de
imperador! Era um gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas
festas do Espírito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, ele
escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia,
qualquer que fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa
magnificência nas atitudes, nos meneios. Quem diria que...
Suspendamos a pena; não adiantemos os sucessos. Vamos de um
salto a 1822, data da nossa independência política, e do meu
primeiro cativeiro pessoal.

CAPÍTULO XIV / O PRIMEIRO BEIJO

Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que eu forcejava por
trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição
verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se
distinguia bem se era uma criança, com fumos de homem, se um
homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e
audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e
sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o
corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo
medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o
estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o
realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão,
o transportou para os seus livros.

Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente se
imagina que mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte
pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas porém
a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este livro é
casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou
se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama
espanhola, Marcela, a “linda Marcela”, como lhe chamavam os
rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. Era filha de um
hortelão das Astúrias; disse-mo ela mesma, num dia de sinceridade,
porque a opinião aceita é que nascera de um letrado de Madri, vítima
da invasão francesa, ferido, encarcerado, espingardeado, quando ela
tinha apenas doze anos.

Cosas de España. Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou
hortelão, a verdade é que Marcela não possuía a inocência rústica, e
mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça, lépida,
sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que
lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e
berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes.
Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado
e tísico, — uma pérola.

Vi-a pela primeira vez, no Rocio Grande, na noite das luminárias, logo
que constou a declaração da independência, uma festa de primavera,
um amanhecer da alma pública. Éramos dois rapazes, o povo e eu;
vínhamos da infância, com todos os arrebatamentos da juventude.
Vi-a sair de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto,
ondulante, um desgarre, alguma coisa que nunca achara nas
mulheres puras. — Segue-me, disse ela ao pajem. E eu segui-a, tão
pajem como o outro, como se a ordem me fosse dada, deixei-me ir
namorado, vibrante, cheio das primeiras auroras. A meio caminho,
chamaram-lhe “linda Marcela”, lembrou-me que ouvira tal nome a
meu tio João, e fiquei, confesso que fiquei tonto.

Três dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a
uma ceia de moças, nos Cajueiros. Fomos; era em casa de Marcela.
O Xavier, com todos os seus tubérculos, presidia ao banquete
noturno, em que eu pouco ou nada comi, porque só tinha olhos para
a dona da casa. Que gentil que estava a espanhola! Havia mais uma
meia dúzia de mulheres, — todas de partido —, e bonitas, cheias de
graça, mas a espanhola... O entusiasmo, alguns goles de vinho, o
gênio imperioso, estouvado, tudo isso me levou a fazer uma coisa
única; à saída, à porta da rua, disse a meu tio que esperasse um
instante, e tornei a subir as escadas.

— Esqueceu alguma coisa? perguntou Marcela de pé, no patamar.

— O lenço.

Ela ia abrir-me caminho para tornar à sala; eu segurei-lhe nas mãos,
puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. Não sei se ela disse alguma
coisa, se gritou, se chamou alguém; não sei nada; sei que desci outra
vez as escadas, veloz como um tufão, e incerto como um ébrio.

CAPÍTULO XV / MARCELA

Gastei trinta dias para ir do Rocio Grande ao coração de Marcela, não
já cavalgando o corcel do cego desejo, mas o asno da paciência, a
um tempo manhoso e teimoso. Que, em verdade, há dois meios de
granjear a vontade das mulheres: o violento, como o touro de
Europa, e o insinuativo, como o cisne de Leda e a chuva de ouro de
Danae, três inventos do Padre Zeus, que, por estarem fora da moda,
aí ficam trocados no cavalo e no asno. Não direi as traças que urdi,
nem as peitas, nem as alternativas de confiança e temor, nem as
esperas baldadas, nem nenhuma outra dessas coisas preliminares.
Afirmo-lhes que o asno foi digno do corcel, — um asno de Sancho,
deveras filósofo, que me levou à casa dela, no fim do citado período;
apeei-me, bati-lhe na anca e mandei-o pastar.

Primeira comoção da minha juventude, que doce que me foste! Tal
devia ser, na criação bíblica, o efeito do primeiro sol. Imagina tu esse
efeito do primeiro sol, a bater de chapa na face de um mundo em
flor. Pois foi a mesma coisa, leitor amigo, e se alguma vez contaste
dezoito anos, deves lembrar-te que foi assim mesmo.

Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome,
que eu de nomes não curo, teve a fase consular e a fase imperial. Na
primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que ele jamais
acreditasse dividir comigo o governo de Roma; mas, quando a
credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as insígnias,
e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a fase cesariana.
Era meu o universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me
preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as
larguezas de meu pai; ele dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem
repreensão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz
e que ele o fora também. Mas a tal extremo chegou o abuso, que ele
restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Então
recorri a minha mãe, e induzi-a a desviar alguma coisa, que me dava
às escondidas. Era pouco; lancei mão de um recurso último: entrei a
sacar sobre a herança de meu pai, a assinar obrigações, que devia
resgatar um dia com usura.

— Em verdade, dizia-me Marcela, quando eu lhe levava alguma seda,
alguma jóia: em verdade, você quer brigar comigo... Pois isto é coisa
que se faça... um presente tão caro...

E, se era jóia, dizia isto a contemplá-la entre os dedos, a procurar
melhor luz, a ensaiá-la em si, e a rir, e a beijar-me com uma
reincidência impetuosa e sincera; mas, protestando, derramava-selhe
a felicidade dos olhos, e eu sentia-me feliz com vê-la assim.
Gostava muito das nossas antigas dobras de ouro, e eu levava-lhe
quantas podia obter; Marcela juntava-as todas dentro de uma
caixinha de ferro, cuja chave ninguém nunca jamais soube onde
ficava; escondia-a por medo dos escravos. A casa em que morava,
nos Cajueiros, era própria. Eram sólidos e bons os móveis, de
jacarandá lavrado, e todas as demais alfaias, espelhos, jarras,
baixela, — uma linda baixela da Índia, que lhe doara um
desembargador. Baixela do diabo, deste-me grandes repelões aos
nervos. Disse-o muita vez à própria dona; não lhe dissimulava o tédio
que me faziam esses e outros despojos dos seus amores de antanho.
Ela ouvia-me e ria, com uma expressão cândida, — cândida e outra
coisa, que eu nesse tempo não entendia bem; mas agora,
relembrando o caso, penso que era um riso misto, como devia ter a
criatura que nascesse, por exemplo, de uma bruxa de Shakespeare
com um serafim de Klopstock. Não sei se me explico. E porque tinha
notícia dos meus zelos tardios, parece que gostava de os açular mais.
Assim foi que um dia, como eu lhe não pudesse dar certo colar, que
ela vira num joalheiro, retorquiu-me que era um simples gracejo, que
o nosso amor não precisava de tão vulgar estímulo.

— Não lhe perdôo, se você fizer de mim essa triste idéia, concluiu
ameaçando-me com o dedo.

E logo, súbita como um passarinho, espalmou as mãos, cingiu-me
com elas o rosto, puxou-me a si e fez um trejeito gracioso, um momo
de criança. Depois, reclinada na marquesa, continuou a falar daquilo,
com simplicidade e franqueza. Jamais consentiria que lhe
comprassem os afetos. Vendera muita vez as aparências, mas a
realidade, guardava-a para poucos. Duarte, por exemplo, o alferes
Duarte, que ela amara deveras, dois anos antes, só a custo
conseguia dar-lhe alguma coisa de valor, como me acontecia a mim;
ela só lhe aceitava sem relutância os mimos de escasso preço, como
a cruz de ouro, que lhe deu, uma vez, de festas.

— Esta cruz...

Dizia isto, metendo a mão no seio e tirando uma cruz fina, de ouro,
presa a uma fita azul e pendurada ao colo.

— Mas essa cruz, observei eu, não me disseste que era teu pai que...

Marcela abanou a cabeça com um ar de lástima:

— Não percebeste que era mentira, que eu dizia isso para te não
molestar? Vem cá, chiquito, não sejas assim desconfiado comigo...
Amei a outro; que importa, se acabou? Um dia, quando nos
separarmos...

— Não digas isso! bradei eu.

— Tudo cessa! Um dia...

Não pôde acabar; um soluço estrangulou-lhe a voz; estendeu as
mãos, tomou das minhas, conchegou-me ao seio, e sussurrou-me
baixo ao ouvido: — Nunca, nunca, meu amor! Eu agradeci-lho com os
olhos úmidos. No dia seguinte levei-lhe o colar que havia recusado.

— Para te lembrares de mim, quando nos separarmos, disse eu.

Marcela teve primeiro um silêncio indignado; depois fez um gesto
magnífico: tentou atirar o colar à rua. Eu retive-lhe o braço; pedi-lhe
muito que não me fizesse tal desfeita, que ficasse com a jóia. Sorriu
e ficou.

Entretanto, pagava-me à farta os sacrifícios; espreitava os meus mais
recônditos pensamentos; não havia desejo a que não acudisse com
alma, sem esforço, por uma espécie de lei da consciência e
necessidade do coração. Nunca o desejo era razoável, mas um
capricho puro, uma criancice, vê-la trajar de certo modo, com tais e
tais enfeites, este vestido e não aquele, ir a passeio ou outra coisa
assim, e ela cedia a tudo, risonha e palreira.

— Você é das Arábias, dizia-me.

E ia a pôr o vestido, a renda, os brincos, com uma obediência de
encantar.

CAPÍTULO XVI / UMA REFLEXÃO IMORAL

Ocorre-me uma reflexão imoral, que é ao mesmo tempo uma
correção de estilo. Cuido haver dito, no capítulo XIV, que Marcela
morria de amores pelo Xavier. Não morria, vivia. Viver não é a
mesma coisa que morrer; assim o afirmam todos os joalheiros deste
mundo, gente muito vista na gramática. Bons joalheiros, que seria do
amor se não fossem os vossos dixes e fiados? Um terço ou um quinto
do universal comércio dos corações. Esta é a reflexão imoral que eu
pretendia fazer, a qual é ainda mais obscura do que imoral, porque
não se entende bem o que eu quero dizer. O que eu quero dizer é
que a mais bela testa do mundo não fica menos bela, se a cingir um
diadema de pedras finas; nem menos bela, nem menos amada.
Marcela, por exemplo, que era bem bonita, Marcela amou-me...

CAPÍTULO XVII / DO TRAPÉZIO E OUTRAS COISAS

...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis;
nada menos. Meu pai, logo que teve aragem dos onze contos,
sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um
capricho juvenil.

— Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma
Universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para homem sério e
não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de espanto:
— Gatuno, sim senhor; não é outra coisa um filho que me faz isto...

Sacou da algibeira os meus títulos de dívida, já resgatados por ele, e
sacudiu-mos na cara. — Vês, peralta? é assim que um moço deve
zelar o nome dos seus? Pensas que eu e meus avós ganhamos o
dinheiro em casas de jogo ou a vadiar pelas ruas? Pelintra! Desta vez
ou tomas juízo, ou ficas sem coisa nenhuma.

Estava furioso, mas de um furor temperado e curto. Eu ouvi-o calado,
e nada opus à ordem da viagem, como de outras vezes fizera;
ruminava a idéia de levar Marcela comigo. Fui ter com ela; expus-lhe
a crise e fiz-lhe a proposta. Marcela ouviu-me com os olhos no ar,
sem responder logo; como insistisse, disse-me que ficava, que não
podia ir para a Europa.

— Por que não?

— Não posso, disse ela com ar dolente; não posso ir respirar aqueles
ares, enquanto me lembrar de meu pobre pai, morto por Napoleão...

— Qual deles: o hortelão ou o advogado?

Marcela franziu a testa, cantarolou uma seguidilha, entre dentes;
depois queixou-se do calor, e mandou vir um copo de aluá. Trouxelho
a mucama, numa salva de prata, que fazia parte dos meus onze
contos. Marcela ofereceu-me polidamente o refresco; minha resposta
foi dar com a mão no copo e na salva; entornou-se-lhe o líquido no
regaço, a preta deu um grito, eu bradei-lhe que se fosse embora.
Ficando a sós, derramei todo o desespero de meu coração; disse-lhe
que ela era um monstro, que jamais me tivera amor, que me deixara
descer a tudo, sem ter ao menos a desculpa da sinceridade; chameilhe
muitos nomes feios, fazendo muitos gestos descompostos.
Marcela deixara-se estar sentada, a estalar as unhas nos dentes, fria
como um pedaço de mármore. Tive ímpetos de a estrangular, de a
humilhar ao menos, subjugando-a a meus pés. Ia talvez fazê-lo; mas
a ação trocou-se noutra; fui eu que me atirei aos pés dela, contrito e
súplice; beijei-lhos, recordei aqueles meses da nossa felicidade
solitária, repeti-lhe os nomes queridos de outro tempo, sentado no
chão, com a cabeça entre os joelhos dela, apertando-lhe muito as
mãos; ofegante, desvairado, pedi-lhe com lágrimas que me não
desamparasse... Marcela esteve alguns instantes a olhar para mim,
calados ambos, até que brandamente me desviou e, com um ar
enfastiado:

— Não me aborreça, disse.

Levantou-se, sacudiu o vestido, ainda molhado, e caminhou para a
alcova. — Não! bradei eu; não hás de entrar... não quero... Ia a
lançar-lhe as mãos: era tarde; ela entrara e fechara-se.

Saí desatinado; gastei duas mortais horas em vaguear pelos bairros
mais excêntricos e desertos, onde fosse difícil dar comigo. Ia
mastigando o meu desespero, com uma espécie de gula mórbida;
evocava os dias, as horas, os instantes de delírio, e ora me
comprazia em crer que eles eram eternos, que tudo aquilo era um
pesadelo, ora, enganando-me a mim mesmo, tentava rejeitá-los de
mim, como um fardo inútil. Então resolvia embarcar imediatamente
para cortar a minha vida em duas metades, e deleitava-me com a
idéia de que Marcela, sabendo da partida, ficaria ralada de saudades
e remorsos. Que ela amara-me a tonta, devia de sentir alguma coisa,
uma lembrança qualquer, como do alferes Duarte... Nisto, o dente do
ciúme enterrava-se-me no coração; toda a natureza bradava que era
preciso levar Marcela comigo.

— Por força... por força... dizia eu ferindo o ar com uma punhada.

Enfim, tive uma idéia salvadora... Ah! trapézio dos meus pecados,
trapézio das concepções abstrusas! A idéia salvadora trabalhou nele,
como a do emplasto (capítulo II). Era nada menos que fasciná-la,
fasciná-la muito, deslumbrá-la, arrastá-la; lembrou-me pedir-lhe por
um meio mais concreto do que a súplica. Não medi as conseqüências;
recorri a um derradeiro empréstimo; fui à Rua dos Ourives, comprei a
melhor jóia da cidade, três diamantes grandes encastoados num
pente de marfim; corri à casa de Marcela.

Marcela estava reclinada numa rede, o gesto mole e cansado, uma
das pernas pendentes, a ver-se-lhe o pezinho calçado de meia de
seda, os cabelos soltos, derramados, o olhar quieto e sonolento.

— Vem comigo, disse eu, arranjei recursos... temos muito dinheiro,
terás tudo o que quiseres... Olha, toma.

E mostrei-lhe o pente com os diamantes... Marcela teve um leve
sobressalto, ergueu metade do corpo, e, apoiada num cotovelo, olhou
para o pente durante alguns instantes curtos; depois retirou os olhos;
tinha-se dominado. Então, eu lancei-lhe as mãos aos cabelos, coligios,
enlacei-os à pressa, improvisei um toucado, sem nenhum alinho,
e rematei-o com o pente de diamantes; recuei, tornei a aproximarme,
corrigi-lhe as madeixas, abaixei-as de um lado, busquei alguma
simetria naquela desordem, tudo com uma minuciosidade e um
carinho de mãe.

— Pronto, disse eu.

— Doudo! foi a sua primeira resposta.

A segunda foi puxar-me para si, e pagar-me o sacrifício com um
beijo, o mais ardente de todos. Depois tirou o pente, admirou muito a
matéria e o lavor, olhando a espaços para mim, e abanando a
cabeça, com um ar de repreensão:

— Ora você! dizia.

— Vens comigo?

Marcela refletiu um instante. Não gostei da expressão com que
passeava os olhos de mim para a parede, e da parede para a jóia;
mas toda a má impressão se desvaneceu, quando ela me respondeu
resolutamente:

— Vou. Quando embarcas?

— Daqui a dois ou três dias.

— Vou.

Agradeci-lho de joelhos. Tinha achado a minha Marcela dos primeiros
dias, e disse-lho; ela sorriu, e foi guardar a jóia, enquanto eu descia
a escada.

CAPÍTULO XVIII / VISÃO DO CORREDOR

No fim da escada, ao fundo do corredor escuro, parei alguns
instantes para respirar, apalpar-me, convocar as idéias dispersas,
reaver-me enfim no meio de tantas sensações profundas e
contrárias. Achava-me feliz. Certo é que os diamantes corrompiamme
um pouco a felicidade; mas não é menos certo que uma dama
bonita pode muito bem amar os gregos e os seus presentes. E depois
eu confiava na minha boa Marcela; podia ter defeitos, mas amavame...

— Um anjo! murmurei olhando para o teto do corredor.

E aí, como um escárnio, vi o olhar de Marcela, aquele olhar que
pouco antes me dera uma sombra de desconfiança, o qual chispava
de cima de um nariz, que era ao mesmo tempo o nariz de Bakbarah e
o meu. Pobre namorado das Mil e Uma Noites! Vi-te ali mesmo correr
atrás da mulher do vizir, ao longo da galeria, ela a acenar-te com a
posse, e tu a correr, a correr, a correr, até a alameda comprida,
donde saíste à rua, onde todos os correeiros te apuparam e
desancaram. Então pareceu-me que o corredor de Marcela era a
alameda, e que a rua era a de Bagdá. Com efeito, olhando para a
porta, vi na calçada três dos correeiros, um de batina, outro de libré,
outro à paisana, os quais todos três entraram no corredor, tomaramme
pelos braços, meteram-me numa sege, meu pai à direita, meu tio
cônego à esquerda, o da libré na boléia, e lá me levaram à casa do
intendente de polícia, donde fui transportado a uma galera que devia
seguir para Lisboa. Imaginem se resisti; mas toda a resistência era
inútil.

Três dias depois segui barra fora, abatido e mudo. Não chorava
sequer; tinha uma idéia fixa... Malditas idéias fixas! A dessa ocasião
era dar um mergulho no oceano, repetindo o nome de Marcela.

CAPÍTULO XIX / A BORDO

Éramos onze passageiros, um homem doido, acompanhado pela
mulher, dois rapazes que iam a passeio, quatro comerciantes e dois
criados. Meu pai recomendou-me a todos, começando pelo capitão do
navio, que aliás tinha muito que cuidar de si, porque, além do mais,
levava a mulher tísica em último grau.

Não sei se o capitão suspeitou alguma coisa do meu fúnebre projeto,
ou se meu pai o pôs de sobreaviso; sei que não me tirava os olhos de
cima; chamava-me para toda a parte. Quando não podia estar
comigo, levava-me para a mulher. A mulher ia quase sempre numa
camilha rasa, a tossir muito, e a afiançar que me havia de mostrar os
arredores de Lisboa. Não estava magra, estava transparente; era
impossível que não morresse de uma hora para outra. O capitão
fingia não crer na morte próxima, talvez por enganar-se a si mesmo.
Eu não sabia nem pensava nada. Que me importava a mim o destino
de uma mulher tísica, no meio do oceano? O mundo para mim era
Marcela.

Uma noite, logo no fim de uma semana, achei ensejo propício para
morrer. Subi cauteloso, mas encontrei o capitão, que junto à
amurada, tinha os olhos fitos no horizonte.

— Algum temporal? disse eu.

— Não, respondeu ele estremecendo; não; admiro o esplendor da
noite. Veja; está celestial!

O estilo desmentia da pessoa, assaz rude e aparentemente alheia a
locuções rebuscadas. Fitei-o; ele pareceu saborear o meu espanto.
No fim de alguns segundos, pegou-me na mão e apontou para a lua,
perguntando-me por que não fazia uma ode à noite; respondi-lhe que
não era poeta. O capitão rosnou alguma coisa, deu dois passos,
meteu a mão no bolso, sacou um pedaço de papel, muito
amarrotado; depois, à luz de uma lanterna, leu uma ode horaciana
sobre a liberdade da vida marítima. Eram versos dele.

— Que tal?

Não me lembra o que lhe disse; lembra-me que ele me apertou a
mão com muita força e muitos agradecimentos; logo depois recitoume
dois sonetos; ia recitar-me outro, quando o vieram chamar da
parte da mulher. — Lá vou, disse ele; e recitou-me o terceiro soneto,
com pausa, com amor.

Fiquei só; mas a musa do capitão varrera-me do espírito os
pensamentos maus; preferi dormir, que é um modo interino de
morrer. No dia seguinte, acordamos debaixo de um temporal, que
meteu medo a toda a gente, menos ao doido; esse entrou a dar
pulos, a dizer que a filha o mandava buscar, numa berlinda; a morte
de uma filha fora a causa da loucura. Não, nunca me há de esquecer
a figura hedionda do pobre homem, no meio do tumulto das gentes e
dos uivos do furacão, a cantarolar e a bailar, com os olhos a
saltarem-lhe da cara, pálido, cabelo arrepiado e longo. Às vezes
parava, erguia ao ar as mãos ossudas, fazia umas cruzes com os
dedos, depois um xadrez, depois umas argolas, e ria muito,
desesperadamente. A mulher não podia já cuidar dele; entregue ao
terror da morte, rezava por si mesma a todos os santos do Céu.
Enfim, a tempestade amainou. Confesso que foi uma diversão
excelente à tempestade do meu coração. Eu, que meditava ir ter com
a morte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo.

O capitão perguntou-me se tivera medo, se estivera em risco, se não
achara sublime o espetáculo: tudo isso com um interesse de amigo.
Naturalmente a conversa versou sobre a vida do mar; o capitão
perguntou-me se não gostava de idílios piscatórios; eu respondi-lhe
ingenuamente que não sabia o que era.

— Vai ver, respondeu.

E recitou-me um poemazinho, depois outro, — uma égloga, — e
enfim cinco sonetos, com os quais rematou nesse dia a confidência
literária. No dia seguinte, antes de me recitar nada, explicou-me o
capitão que só por motivos graves abraçara a profissão marítima,
porque a avó queria que ele fosse padre, e com efeito possuía
algumas letras latinas; não chegou a ser padre, mas não deixou de
ser poeta, que era a sua vocação natural. Para prová-lo, recitou-me
logo, de corpo presente, uma centena de versos. Notei um
fenômeno: os ademanes que ele usava eram tais, que uma vez me
fizeram rir; mas o capitão, quando recitava, de tal sorte olhava para
dentro de si mesmo, que não viu nem ouviu nada.

Os dias passavam, e as águas, e os versos, e com eles ia também
passando a vida da mulher. Estava por pouco. Um dia, logo depois do
almoço, disse-me o capitão que a enferma talvez não chegasse ao
fim da semana.

— Já! exclamei.

— Passou muito mal a noite.

Fui vê-la; achei-a, na verdade, quase moribunda, mas falando ainda
de descansar em Lisboa alguns dias, antes de ir comigo a Coimbra,
porque era seu propósito levar-me à Universidade. Deixei-a
consternado; fui achar o marido a olhar para as vagas, que vinham
morrer no costado do navio, e tratei de o consolar; ele agradeceume,
relatou-me a história dos seus amores, elogiou a fidelidade e a
dedicação da mulher, relembrou os versos que lhe fez, e recitou-mos.
Neste ponto vieram buscá-lo da parte dela; corremos ambos; era
uma crise. Esse e o dia seguinte foram cruéis; o terceiro foi o da
morte; eu fugi ao espetáculo, tinha-lhe repugnância. Meia hora
depois encontrei o capitão, sentado num molho de cabos, com a
cabeça nas mãos, disse-lhe alguma coisa de conforto.

— Morreu como uma santa, respondeu ele; e, para que estas
palavras não pudessem ser levadas à conta de fraqueza, ergueu-se
logo, sacudiu a cabeça, e fitou o horizonte, com um gesto longo e
profundo. — Vamos, continuou, entreguemo-la à cova que nunca
mais se abre.

Efetivamente, poucas horas depois, era o cadáver lançado ao mar,
com as cerimônias do costume. A tristeza murchara todos os rostos;
o do viúvo trazia a expressão de um cabeço rijamente lascado pelo
raio. Grande silêncio. A vaga abriu o ventre, acolheu o despojo,
fechou-se, — uma leve ruga, — e a galera foi andando. Eu deixei-me
estar alguns minutos à popa, com os olhos naquele ponto incerto do
mar em que ficava um de nós... Fui dali ter com o capitão, para
distraí-lo.

— Obrigado, disse-me ele compreendendo a intenção; creia que
nunca me esquecerei dos seus bons serviços. Deus é que lhos há de
pagar. Pobre Leocádia! tu te lembrarás de nós no Céu.

Enxugou com a manga uma lágrima importuna; eu busquei um
derivativo na poesia, que era a paixão dele. Falei-lhe dos versos, que
me lera, e ofereci-me para imprimi-los. Os olhos do capitão
animaram-se um pouco. — Talvez aceite, disse ele; mas não sei...
são bem frouxos versos. Jurei-lhe que não; pedi que os reunisse e
mos desse antes do desembarque.

— Pobre Leocádia! murmurou sem responder ao pedido. Um
cadáver... o mar... o céu... o navio...

No dia seguinte veio ler-me um epicédio composto de fresco, em que
estavam memoradas as circunstâncias da morte e da sepultura da
mulher; leu-mo com a voz comovida deveras, e a mão trêmula; no
fim perguntou-me se os versos eram dignos do tesouro que perdera.

— São, disse eu.

— Não haverá estro, ponderou ele, no fim de um instante, mas
ninguém me negará sentimento, se não é que o próprio sentimento
prejudicou a perfeição...

— Não me parece; acho os versos perfeitos.

— Sim, eu creio que... Versos de marujo.

— De marujo poeta.

Ele levantou os ombros, olhou para o papel, e tornou a recitar a
composição, mas já então sem tremuras, acentuando as intenções
literárias, dando relevo às imagens e melodia aos versos. No fim,
confessou-me que era a sua obra mais acabada; eu disse-lhe que
sim; ele apertou-me muito a mão e predisse-me um grande futuro.

CAPÍTULO XX / BACHARELO-ME

Um grande futuro! Enquanto esta palavra me batia no ouvido,
devolvia eu os olhos, ao longe, no horizonte misterioso e vago. Uma
idéia expelia outra, a ambição desmontava Marcela. Grande futuro?
Talvez naturalista, literato, arqueólogo, banqueiro, político, ou até
bispo, — bispo que fosse, — uma vez que fosse um cargo, uma
preeminência, uma grande reputação, uma posição superior. A
ambição, dado que fosse águia, quebrou nessa ocasião o ovo, e
desvendou a pupila fulva e penetrante. Adeus, amores! adeus,
Marcela! dias de delírio, jóias sem preço, vida sem regímen, adeus!
Cá me vou às fadigas e à glória; deixo-vos com as calcinhas da
primeira idade.

E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A
Universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as
muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel;
deram-mo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela
festa que me encheu de orgulho e de saudades, — principalmente de
saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada
de folião; era um acadêmico estróina, superficial, tumultuário e
petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e
liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das
constituições escritas. No dia em que a Universidade me atestou, em
pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no
cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que
orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me
dava a liberdade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixei as
margens do Mondego, e vim por ali fora assaz desconsolado, mas
sentindo já uns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar
os outros, de influir, de gozar, de viver, — de prolongar a
Universidade pela vida adiante...

CAPÍTULO XXI / O ALMOCREVE

Vai então, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustigueio,
ele deu dois corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me
sacudiu fora da sela, com tal desastre, que o pé esquerdo me ficou
preso no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas já
então, espantado, disparou pela estrada fora. Digo mal: tentou
disparar, e efetivamente deu dois saltos, mas um almocreve, que ali
estava, acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem
esforço nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e
pus-me de pé.

— Olhe do que vosmecê escapou, disse o almocreve.

E era verdade; se o jumento corre por ali fora, contundia-me
deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça
partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro, lá se me ia a
ciência em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo;
eu sentia-no no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve!
enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele cuidava de
consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi darlhe
três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não porque tal
fosse o preço da minha vida, — essa era inestimável; mas porque era
uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou. Está
dito, dou-lhe as três moedas.

— Pronto, disse ele, apresentando-me a rédea da cavalgadura.

— Daqui a nada, respondi; deixa-me, que ainda não estou em mim...

— Ora qual!

— Pois não é certo que ia morrendo?

— Se o jumento corre por aí fora, é possível; mas, com a ajuda do
Senhor, viu vosmecê que não aconteceu nada.

Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco
moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a
gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com efeito,
uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria.
Examinei-lhe a roupa; era um pobre-diabo, que nunca jamais vira
uma moeda de ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, vi-a reluzir à luz
do sol; não a viu o almocreve, porque eu tinha-lhe voltado as costas;
mas suspeitou-o talvez, entrou a falar ao jumento de um modo
significativo; dava-lhe conselhos, dizia-lhe que tomasse juízo, que o
“senhor doutor” podia castigá-lo; um monólogo paternal. Valha-me
Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve que lhe beijava a
testa.

— Olé! exclamei.

— Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a
gente com tanta graça...

Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o
jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um
pouco incerto do efeito da pratinha. Mas a algumas braças de
distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias,
com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser
assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os
dedos no bolso do colete que trazia no corpo e senti umas moedas de
cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em
lugar do cruzado em prata. Porque, enfim, ele não levou em mira
nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao
temperamento, aos hábitos do ofício; acresce que a circunstância de
estar, não mais adiante nem mais atrás, mas justamente no ponto do
desastre, parecia constituí-lo simples instrumento da Providência; e
de um ou de outro modo, o mérito do ato era positivamente nenhum.
Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei-me pródigo, lancei o
cruzado à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não
direi tudo?) tive remorsos.

CAPÍTULO XXII / VOLTA AO RIO

Jumento de uma figa, cortaste-me o fio às reflexões. Já agora não
digo o que pensei dali até Lisboa, nem o que fiz em Lisboa, na
península e em outros lugares da Europa, da velha Europa, que nesse
tempo parecia remoçar. Não, não direi que assisti às alvoradas do
romantismo, que também eu fui fazer poesia efetiva no regaço da
Itália; não direi coisa nenhuma. Teria de escrever um diário de
viagem e não umas memórias, como estas são, nas quais só entra a
substância da vida.

Ao cabo de alguns anos de peregrinação, atendi às súplicas de meu
pai: — “Vem, dizia ele na última carta; se não vieres depressa,
acharás tua mãe morta!” Esta última palavra foi para mim um golpe.
Eu amava minha mãe; tinha ainda diante dos olhos as circunstâncias
da última bênção que ela me dera, a bordo do navio. “Meu triste
filho, nunca mais te verei”, soluçava a pobre senhora apertando-me
ao peito. E essas palavras ressoavam-me agora, como uma profecia
realizada.

Note-se que eu estava em Veneza, ainda recendente aos versos de
lord Byron; lá estava, mergulhado em pleno sonho, revivendo o
pretérito, crendo-me na Sereníssima República. É verdade; uma vez
aconteceu-me perguntar ao locandeiro se o doge ia a passeio nesse
dia. — Que doge, signor mio? Caí em mim, mas não confessei a
ilusão; disse-lhe que a minha pergunta era um gênero de charada
americana; ele mostrou compreender, e acrescentou que gostava
muito das charadas americanas. Era um locandeiro. Pois deixei tudo
isso, o locandeiro, o doge, a Ponte dos Suspiros, a gôndola, os versos
do lorde, as damas do Rialto, deixei tudo e disparei como uma bala
na direção do Rio de Janeiro.

Vim... Mas não; não alonguemos este capítulo. Às vezes, esqueço-me
a escrever, e a pena vai comendo papel, com grave prejuízo meu,
que sou autor. Capítulos compridos quadram melhor a leitores
pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-12, pouco
texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas... Não,
não alonguemos o capítulo.

CAPÍTULO XXIII / TRISTE, MAS CURTO

Vim. Não nego que, ao avistar a cidade natal, tive uma sensação
nova. Não era efeito da minha pátria política; era-o do lugar da
infância, a rua, a torre, o chafariz da esquina, a mulher de mantilha,
o preto do ganho, as coisas e cenas da meninice, buriladas na
memória. Nada menos que uma renascença. O espírito, como um
pássaro, não se lhe deu da corrente dos anos, arrepiou o vôo na
direção da fonte original, e foi beber da água fresca e pura, ainda não
mesclada do enxurro da vida.

Reparando bem, há aí um lugar-comum. Outro lugar-comum,
tristemente comum, foi a consternação da família. Meu pai abraçoume
com lágrimas. — Tua mãe não pode viver, disse-me. Com efeito,
não era já o reumatismo que a matava, era um cancro no estômago.
A infeliz padecia de um modo cru, porque o cancro é indiferente às
virtudes do sujeito; quando rói, rói; roer é o seu ofício. Minha irmã
Sabina, já então casada com o Cotrim, andava a cair de fadiga. Pobre
moça! dormia três horas por noite, nada mais. O próprio tio João
estava abatido e triste. D. Eusébia e algumas outras senhoras lá
estavam também, não menos tristes e não menos dedicadas.

— Meu filho!

A dor suspendeu por um pouco as tenazes; um sorriso alumiou o
rosto da enferma, sobre o qual a morte batia a asa eterna. Era
menos um rosto do que uma caveira: a beleza passara, como um dia
brilhante; restavam os ossos, que não emagrecem nunca. Mal
poderia conhecê-la; havia oito ou nove anos que nos não víamos.
Ajoelhado, ao pé da cama, com as mãos dela entre as minhas, fiquei
mudo e quieto, sem ousar falar, porque cada palavra seria um
soluço, e nós temíamos avisá-la do fim. Vão temor! Ela sabia que
estava prestes a acabar; disse-mo; verificamo-lo na seguinte manhã.

Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade minuciosa, fria,
repisada, que me encheu de dor e estupefação. Era a primeira vez
que eu via morrer alguém. Conhecia a morte de outiva; quando
muito, tinha-a visto já petrificada no rosto de algum cadáver, que
acompanhei ao cemitério, ou trazia-lhe a idéia embrulhada nas
amplificações de retórica dos professores de coisas antigas, — a
morte aleivosa de César, a austera de Sócrates, a orgulhosa de
Catão. Mas esse duelo do ser e do não ser, a morte em ação,
dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou filosófico, a
morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude
encarar. Não chorei; lembra-me que não chorei durante o
espetáculo: tinha os olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência
boquiaberta. Quê? uma criatura tão dócil, tão meiga, tão santa, que
nunca jamais fizera verter uma lágrima de desgosto, mãe carinhosa,
esposa imaculada, era força que morresse assim, trateada, mordida
pelo dente tenaz de uma doença sem misericórdia? Confesso que
tudo aquilo me pareceu obscuro, incongruente, insano...

Triste capítulo; passemos a outro mais alegre.

CAPÍTULO XXIV / CURTO, MAS ALEGRE

Fiquei prostrado. E contudo era eu, nesse tempo, um fiel compêndio
de trivialidade e presunção. Jamais o problema da vida e da morte
me oprimira o cérebro; nunca até esse dia me debruçara sobre o
abismo do Inexplicável; faltava-me o essencial, que é o estímulo, a
vertigem...

Para lhes dizer a verdade toda, eu refletia as opiniões de um
cabeleireiro, que achei em Módena, e que se distinguia por não as ter
absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais demorada que
fosse a operação do toucado, não enfadava nunca; ele intercalava as
penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um
sabor... Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a
Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só
as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim;
embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de
locuções morais e políticas, para as despesas da conversação. Trateios
como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a
fraseologia, a casca, a ornamentação...

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a
minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de
um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a
luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar
os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações
que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de
embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em
tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a
hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença!
que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa,
deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitarse,
confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em
suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem
conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O olhar da opinião, esse
olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território
da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não
examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do
julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o
desdém dos finados.

CAPÍTULO XXV/ NA TIJUCA

Ui! Lá me ia a pena a escorregar para o enfático. Sejamos simples,
como era simples a vida que levei na Tijuca, durante as primeiras
semanas depois da morte de minha mãe.

No sétimo dia, acabada a missa fúnebre, travei de uma espingarda,
alguns livros, roupa, charutos, um moleque, — o Prudêncio do
capítulo XI, — e fui meter-me numa velha casa de nossa propriedade.
Meu pai forcejou por me torcer a resolução, mas eu é que não podia
nem queria obedecer-lhe. Sabina desejava que eu fosse morar com
ela algum tempo, — duas semanas, ao menos; meu cunhado esteve
a ponto de me levar à fina força. Era um bom rapaz este Cotrim;
passara de estróina a circunspecto. Agora comerciava em gêneros de
estiva, labutava de manhã até à noite, com ardor, com perseverança.
De noite, sentado à janela, a encaracolar as suíças, não pensava em
outra coisa. Amava a mulher e um filho, que então tinha, e que lhe
morreu alguns anos depois. Diziam que era avaro.

Renunciei tudo; tinha o espírito atônito. Creio que por então é que
começou a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela,
solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e sutil. — “Que bom que
é estar triste e não dizer coisa nenhuma!” — Quando esta palavra de
Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em mim um
eco, um eco delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de
um tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas mãos, e o espírito
ainda mais cabisbaixo do que a figura, — ou jururu, como dizemos
das galinhas tristes. Apertava ao peito a minha dor taciturna, com
uma sensação única, uma coisa a que poderia chamar volúpia do
aborrecimento. Volúpia do aborrecimento: decora esta expressão,
leitor; guarda-a, examina-a, e se não chegares a entendê-la, podes
concluir que ignoras uma das sensações mais sutis desse mundo e
daquele tempo.

Às vezes, caçava, outras dormia, outras lia, — lia muito, — outras
enfim não fazia nada; deixava-me atoar de idéia em idéia, de
imaginação em imaginação, como uma borboleta vadia ou faminta.
As horas iam pingando uma a uma, o sol caía, as sombras da noite
velavam a montanha e a cidade. Ninguém me visitava; recomendei
expressamente que me deixassem só. Um dia, dois dias, três dias,
uma semana inteira passada assim, sem dizer palavra, era bastante
para sacudir-me da Tijuca fora e restituir-me ao bulício. Com efeito,
ao cabo de sete dias, estava farto da solidão; a dor aplacara; o
espírito já se não contentava com o uso da espingarda e dos livros,
nem com a vista do arvoredo e do céu. Reagia a mocidade, era
preciso viver. Meti no baú o problema da vida e da morte, os
hipocondríacos do poeta, as camisas, as meditações, as gravatas, e
ia fechá-lo, quando o moleque Prudêncio me disse que uma pessoa
do meu conhecimento se mudara na véspera para uma casa roxa,
situada a duzentos passos da nossa.

— Quem?

— Nhonhô talvez não se lembre mais de D. Eusébia...

— Lembra-me... É ela?

— Ela e a filha. Vieram ontem de manhã.

Ocorreu-me logo o episódio de 1814, e senti-me vexado; mas adverti
que os acontecimentos tinham-me dado razão. Na verdade, fora
impossível evitar as relações íntimas do Vilaça com a irmã do
sargento-mor; antes mesmo do meu embarque, já se boquejava
misteriosamente no nascimento de uma menina. Meu tio João
mandou-me dizer depois que o Vilaça, ao morrer, deixara um bom
legado a D. Eusébia, coisa que deu muito que falar em todo o bairro.
O próprio tio João, guloso de escândalos, não tratou de outro assunto
na carta, aliás de muitas folhas. Tinham-me dado razão os
acontecimentos. Ainda porém que ma não dessem, 1814 lá ia longe,
e, com ele, a travessura, e o Vilaça, e o beijo da moita; finalmente,
nenhumas relações estreitas existiam entre mim e ela. Fiz comigo
essa reflexão e acabei de fechar o baú.

— Nhonhô não vai visitar sinhá D. Eusébia? perguntou-me o
Prudêncio. Foi ela quem vestiu o corpo da minha defunta senhora.

Lembrei-me que a vira, entre outras senhoras, por ocasião da morte
e do enterro; ignorava porém que ela houvesse prestado a minha
mãe esse derradeiro obséquio. A ponderação do moleque era
razoável; eu devia-lhe uma visita; determinei fazê-la imediatamente,
e descer.

CAPÍTULO XXVI / O AUTOR HESITA

Súbito ouço uma voz: — Olá, meu rapaz, isto não é vida! Era meu
pai, que chegava com duas propostas na algibeira. Sentei-me no baú
e recebi-o sem alvoroço. Ele esteve alguns instantes de pé, a olhar
para mim; depois estendeu-me a mão com um gesto comovido:

— Meu filho, conforma-te com a vontade de Deus.

— Já me conformei, foi a minha resposta, e beijei-lhe a mão.

Não tinha almoçado; almoçamos juntos. Nenhum de nós aludiu ao
triste motivo da minha reclusão. Uma só vez falamos nisso, de
passagem, quando meu pai fez recair a conversa na Regência: foi
então que aludiu à carta de pêsames que um dos Regentes lhe
mandara. Trazia a carta consigo, já bastante amarrotada, talvez por
havê-la lido a muitas outras pessoas. Creio haver dito que era de um
dos Regentes. Leu-ma duas vezes.

— Já lhe fui agradecer este sinal de consideração, concluiu meu pai, e
acho que deves ir também...

— Eu?

— Tu; é um homem notável, faz hoje as vezes de imperador. Demais
trago comigo uma idéia, um projeto, ou... sim, digo-te tudo; trago
dois projetos, um lugar de deputado e um casamento.

Meu pai disse isto com pausa, e não no mesmo tom, mas dando às
palavras um jeito e disposição, cujo fim era cavá-las mais
profundamente no meu espírito. A proposta, porém, desdizia tanto
das minhas sensações últimas, que eu cheguei a não entendê-la bem.
Meu pai não fraqueou e repetiu-a; encareceu o lugar e a noiva.

— Aceitas?

— Não entendo de política, disse eu depois de um instante; quanto à
noiva... deixe-me viver como um urso, que sou.

— Mas os ursos casam-se, replicou ele.

— Pois traga-me uma ursa. Olhe, a Ursa-Maior...

Riu-se meu pai, e depois de rir, tornou a falar sério. Era-me
necessária a carreira política, dizia ele, por vinte e tantas razões, que
deduziu com singular volubilidade, ilustrando-as com exemplos de
pessoas do nosso conhecimento. Quanto à noiva, bastava que eu a
visse; se a visse, iria logo pedi-la ao pai, logo, sem demora de um
dia. Experimentou assim a fascinação, depois a persuasão, depois a
intimação; eu não dava resposta, afiava a ponta de um palito ou fazia
bolas de miolo de pão, a sorrir ou a refletir; e, para tudo dizer, nem
dócil nem rebelde à proposta. Sentia-me aturdido. Uma parte de mim
mesmo dizia que sim, que uma esposa formosa e uma posição
política eram bens dignos de apreço; outra dizia que não; e a morte
de minha mãe me aparecia como um exemplo da fragilidade das
coisas, das afeições, da família...

— Não vou daqui sem uma resposta definitiva, disse meu pai. De-fini-ti-va!
repetiu, batendo as sílabas com o dedo.

Bebeu o último gole de café; repoltreou-se, e entrou a falar de tudo,
do Senado, da Câmara, da Regência, da restauração, do Evaristo, de
um coche que pretendia comprar, da nossa casa de Mata-cavalos...
Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente
num pedaço de papel, com uma ponta de lápis; traçava uma palavra,
uma frase, um verso, um nariz, um triângulo, e repetia-os muitas
vezes, sem ordem, ao acaso, assim:

arma virumque cano
A
Arma virumque cano
arma virumque cano
arma virumque
arma virumque cano
virumque

Maquinalmente tudo isto; e, não obstante, havia certa lógica, certa
dedução; por exemplo, foi o virumque que me fez chegar ao nome do
próprio poeta, por causa da primeira sílaba; ia a escrever virumque
— e sai-me Virgílio, então continuei:

Vir Virgílio

Virgílio Virgílio

Virgílio
Virgílio

Meu pai, um pouco despeitado com aquela indiferença, ergueu-se,
veio a mim, lançou os olhos ao papel...

— Virgílio! exclamou. És tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se
justamente Virgília.

CAPÍTULO XXVII / VIRGÍLIA?

Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois?...
A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos
meus últimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas
minhas mais íntimas sensações. Naquele tempo contava apenas uns
quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da
nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que ia lhe
coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque
isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha
os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe
maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita,
fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e
eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos
da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira,
ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e
alguma devoção, — devoção, ou talvez medo; creio que medo.

Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa
que devia influir mais tarde na minha vida; era aquilo com dezesseis
anos. Tu que me lês, se ainda fores viva, quando estas páginas
vierem à luz, — tu que me lês, Virgília amada, não reparas na
diferença entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei
quando te vi? Crê que era tão sincero então como agora; a morte não
me tornou rabugento, nem injusto.

— Mas, dirás tu, como é que podes assim discernir a verdade daquele
tempo, e exprimi-la depois de tantos anos?

Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz
senhores da Terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a
instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos.
Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é
uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição,
que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição
definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.

CAPÍTULO XXVIII / CONTANTO QUE...

— Virgília? interrompi eu.

— Sim, senhor; é o nome da noiva. Um anjo, meu pateta, um anjo
sem asas. Imagina uma moça assim, desta altura, viva como um
azougue, e uns olhos... filha do Dutra...

— Que Dutra?

— O Conselheiro Dutra, não conheces; uma influência política. Vamos
lá, aceitas?

Não respondi logo; fitei por alguns segundos a ponta do botim;
declarei depois que estava disposto a examinar as duas coisas, a
candidatura e o casamento, contanto que...

— Contanto quê?

— Contanto que não fique obrigado a aceitar as duas; creio que
posso ser separadamente homem casado ou homem público...

— Todo o homem público deve ser casado, interrompeu
sentenciosamente meu pai. Mas seja como queres; estou por tudo,
fico certo de que a vista fará fé! Demais, a noiva e o Parlamento são
a mesma coisa... isto é, não... saberás depois... Vá; aceito a dilação,
contanto que...

— Contanto quê?... interrompi eu, imitando-lhe a voz.

— Ah! brejeiro! Contanto que não te deixes ficar aí inútil, obscuro, e
triste; não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver
brilhar, como deves, e te convém, e a todos nós; é preciso continuar
o nosso nome, continuá-lo e ilustrá-lo ainda mais. Olha, estou com
sessenta anos, mas se fosse necessário começar vida nova,
começava, sem hesitar um só minuto. Teme a obscuridade, Brás;
foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes
modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros
homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...

E foi por diante o mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como
me faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da
hipocondria recolheu-se ao botão para deixar a outra flor menos
amarela, e nada mórbida, — o amor da nomeada, o emplasto Brás
Cubas.

CAPÍTULO XXIX / A VISITA

Vencera meu pai; dispus-me a aceitar o diploma e o casamento,
Virgília e a Câmara dos Deputados. — As duas Virgílias, disse ele num
assomo de ternura política. Aceitei-os; meu pai deu-me dois fortes
abraços. Era o seu próprio sangue que ele, enfim, reconhecia.

— Desces comigo?

— Desço amanhã. Vou fazer primeiramente uma visita a D. Eusébia...

Meu pai torceu o nariz, mas não disse nada; despediu-se e desceu.
Eu, na tarde desse mesmo dia, fui visitar D. Eusébia. Achei-a a
repreender um preto jardineiro, mas deixou tudo para vir falar-me,
com um alvoroço, um prazer tão sincero, que me desacanhou logo.
Creio que chegou a cingir-me com o seu par de braços robustos. Fezme
sentar ao pé de si, na varanda, entre muitas exclamações de
contentamento:

— Ora, o Brasinho! Um homem! Quem diria, há anos... Um
homenzarrão! E bonito! Qual! Você não se lembra de mim...

Disse-lhe que sim, que não era possível esquecer uma amiga tão
familiar de nossa casa. D. Eusébia começou a falar de minha mãe,
com muitas saudades, com tantas saudades, que me cativou logo,
posto me entristecesse. Ela percebeu-o nos meus olhos, e torceu a
rédea à conversação; pediu-me que lhe contasse a viagem, os
estudos, os namoros... Sim, os namoros também; confessou-me que
era uma velha patusca. Nisto recordei-me do episódio de 1814, ela, o
Vilaça, a moita, o beijo, o meu grito; e estando a recordá-lo, ouço um
ranger de porta, um farfalhar de saias e esta palavra:

— Mamãe... mamãe...

CAPÍTULO XXX / A FLOR DA MOITA

A voz a as saias pertenciam a uma mocinha morena, que se deteve à
porta, alguns instantes, ao ver gente estranha. Silêncio curto e
constrangido. D. Eusébia quebrou-o, enfim, com resolução e
franqueza:

— Vem cá, Eugênia, disse ela, cumprimenta o Dr. Brás Cubas, filho
do Sr. Cubas; veio da Europa.

E voltando-se para mim:

— Minha filha Eugênia.

Eugênia, a flor da moita, mal respondeu ao gesto de cortesia que lhe
fiz; olhou-me admirada e acanhada, e lentamente se aproximou da
cadeira da mãe. A mãe arranjou-lhe uma das tranças do cabelo, cuja
ponta se desmanchara. — Ah! travessa! dizia. Não imagina, doutor, o
que isto é... E beijou-a com tão expansiva ternura que me comoveu
um pouco; lembrou-me minha mãe, e, — direi tudo, — tive umas
cócegas de ser pai.

— Travessa? disse eu. Pois já não está em idade própria, ao que
parece.

— Quantos lhe dá?

— Dezessete.

— Menos um.

— Dezesseis. Pois então! é uma moça.

Não pôde Eugênia encobrir a satisfação que sentia com esta minha
palavra, mas emendou-se logo, e ficou como dantes, ereta, fria e
muda. Em verdade, parecia ainda mais mulher do que era; seria
criança nos seus folgares de moça; mas assim quieta, impassível,
tinha a compostura da mulher casada. Talvez essa circunstância lhe
diminuía um pouco da graça virginal. Depressa nos familiarizamos; a
mãe fazia-lhe grandes elogios, eu escutava-os de boa sombra, e ela
sorria com os olhos fúlgidos, como se lá dentro do cérebro lhe
estivesse a voar uma borboletinha de asas de ouro e olhos de
diamante...

Digo lá dentro, porque cá fora o que esvoaçou foi uma borboleta
preta, que subitamente penetrou na varanda, e começou a bater as
asas em derredor de D. Eusébia. D. Eusébia deu um grito, levantouse,
praguejou umas palavras soltas: — T'esconjuro!... Sai, diabo!...
Virgem Nossa Senhora!...

— Não tenha medo, disse eu; e, tirando o lenço, expeli a borboleta.
D. Eusébia sentou-se outra vez, ofegante, um pouco envergonhada;
a filha, pode ser que pálida de medo, dissimulava a impressão com
muita força de vontade. Apertei-lhes a mão e saí, a rir comigo da
superstição das duas mulheres, um rir filosófico, desinteressado,
superior. De tarde, vi passar a cavalo a filha de D. Eusébia, seguida
de um pajem; fez-me um cumprimento com a ponta do chicote.
Confesso que me lisonjeei com a idéia de que, alguns passos adiante,
ela voltaria a cabeça para trás; mas não voltou.

CAPÍTULO XXXI / A BORBOLETA PRETA

Na dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer,
entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e
muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me;
entrei logo a pensar na filha de D. Eusébia, no susto que tivera, e na
dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de
esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela
foi pousar na vidraça; e, porque eu a sacudisse de novo, saiu dali e
veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como
a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover
as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei
de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e
achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos,
lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça.
Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da
janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei
um pouco aborrecido, incomodado.

— Também por que diabo não era ela azul? disse comigo.

E esta reflexão, — uma das mais profundas que se tem feito, desde a
invenção das borboletas, — me consolou do malefício, e me
reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver,
com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato,
almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e
negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um
céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha
janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um
homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas
voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos,
braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse
consigo: “Este é provavelmente o inventor das borboletas.” A idéia
subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo,
insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-
lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi
pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível
que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do
inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.

Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a
imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas
verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de linho cru. Vejam
como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se
ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não
era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio
dos olhos. Não era. Esta última idéia restituiu-me a consolação; uni o
dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no
jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas formigas... Não, volto à
primeira idéia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.

CAPÍTULO XXXII / COXA DE NASCENÇA

Fui dali acabar os preparativos da viagem. Já agora não me demoro
mais. Desço imediatamente; desço, ainda que algum leitor
circunspecto me detenha para perguntar se o capítulo passado é
apenas uma sensaboria ou se chega a empulhação... Ai, não contava
com D. Eusébia. Estava pronto, quando me entrou por casa. Vinha
convidar-me para transferir a descida, e ir lá jantar nesse dia.
Cheguei a recusar; mas instou tanto, tanto, tanto, que não pude
deixar de aceitar; demais, era-lhe devida aquela compensação; fui.

Eugênia desataviou-se nesse dia por minha causa. Creio que foi por
minha causa, — se é que não andava muita vez assim. Sem as bichas
de ouro, que trazia na véspera, lhe pendiam agora das orelhas, duas
orelhas finamente recortadas numa cabeça de ninfa. Um simples
vestido branco, de cassa, sem enfeites, tendo ao colo, em vez de
broche, um botão de madrepérola, e outro botão nos punhos,
fechando as mangas, e nem sombra de pulseira.

Era isso no corpo; não era outra coisa no espírito. Idéias claras,
maneiras chãs, certa graça natural, um ar de senhora, e não sei se
alguma outra coisa; sim, a boca, exatamente a boca da mãe, a qual
me lembrava o episódio de 1814, e então dava-me ímpetos de glosar
o mesmo mote à filha...

— Agora vou mostrar-lhe a chácara, disse a mãe, logo que
esgotamos o último gole de café.

Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma
circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei
a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha
respondeu sem titubear:

— Não, senhor, sou coxa de nascença.

Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseirão.
Com efeito, a simples possibilidade de ser coxa era bastante para lhe
não perguntar nada. Então lembrou-me que da primeira vez que a vi
— na véspera — a moça chegara-se lentamente à cadeira da mãe, e
que naquele dia já a achei à mesa de jantar. Talvez fosse para
encobrir o defeito; mas por que razão o confessava agora? Olhei para
ela e reparei que ia triste.

Tratei de apagar os vestígios de meu desazo; — não me foi difícil,
porque a mãe era, segundo confessara, uma velha patusca, e
prontamente travou de conversa comigo. Vimos toda a chácara,
árvores, flores, tanque de patos, tanque de lavar, uma infinidade de
coisas, que ela me ia mostrando, e comentando, ao passo que eu, de
soslaio, perscrutava os olhos de Eugênia...

Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas direito,
perfeitamente são; vinha de uns olhos pretos e tranqüilos. Creio que
duas ou três vezes baixaram estes, um pouco turvados; mas duas ou
três vezes somente; em geral, fitavam-me com franqueza, sem
temeridade, nem biocos.

CAPÍTULO XXXIII / BEM-AVENTURADOS OS QUE NÃO DESCEM

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca,
uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar
que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se
coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha
fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com
a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um
enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de
uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no
cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta
do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e aí fiquei eu a noite
toda a cavar o mistério, sem explicá-lo.

Amanheceu chovendo, transferi a descida; mas no outro dia, a
manhã era límpida e azul, e apesar disso deixei-me ficar, não menos
que no terceiro dia, e no quarto, até o fim da semana. Manhãs
bonitas, frescas, convidativas; lá embaixo a família a chamar-me, e a
noiva, e o Parlamento, e eu sem acudir a coisa nenhuma, enlevado
ao pé da minha Vênus Manca. Enlevado é uma maneira de realçar o
estilo; não havia enlevo, mas gosto, uma certa satisfação física e
moral. Queria-lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha
espúria e coxa, feita de amor e desprezo, ao pé dela sentia-me bem,
e ela creio que ainda se sentia melhor ao pé de mim. E isto na Tijuca.
Uma simples égloga. D. Eusébia vigiava-nos, mas pouco; temperava
a necessidade com a conveniência. A filha, nessa primeira explosão
da natureza, entregava-me a alma em flor.

— O senhor desce amanhã? disse-me ela no sábado.

— Pretendo.

— Não desça.

Não desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: — Bemaventurados
os que não descem, porque deles é o primeiro beijo das
moças. Com efeito, foi no domingo esse primeiro beijo de Eugênia, —
o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e não furtado
ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor
honesto paga uma dívida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses que idéias
me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de
comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o
teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos de 1814, na moita, no
Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua
origem...

D. Eusébia entrou inesperadamente, mas não tão súbita, que nos
apanhasse ao pé um do outro. Eu fui até à janela; Eugênia sentou-se
a concertar uma das tranças. Que dissimulação graciosa! que arte
infinita e delicada! que tartufice profunda! e tudo isso natural, vivo,
não estudado, natural como o apetite, natural como o sono. Tanto
melhor! D. Eusébia não suspeitou nada.

CAPÍTULO XXXIV / A UMA ALMA SENSÍVEL

Há aí, entre as cinco ou dez pessoas que me lêem, há aí uma alma
sensível, que está decerto um tanto agastada com o capítulo anterior,
começa a tremer pela sorte de Eugênia, e talvez... sim, talvez, lá no
fundo de si mesma, me chame cínico. Eu cínico, alma sensível? Pela
coxa de Diana! esta injúria merecia ser lavada com sangue, se o
sangue lavasse alguma coisa nesse mundo. Não, alma sensível, eu
não sou cínico, eu fui homem; meu cérebro foi um tablado em que se
deram peças de todo gênero, o drama sacro, o austero, o piegas, a
comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as bufonerias, um
pandemônio, alma sensível, uma barafunda de coisas e pessoas, em
que podias ver tudo, desde a rosa de Esmirna até a arruda do teu
quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra até o recanto da praia
em que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se nele pensamentos
de vária casta e feição. Não havia ali a atmosfera somente da águia e
do beija-flor; havia também a da lesma e do sapo. Retira, pois, a
expressão, alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos, — que
isso às vezes é dos óculos, — e acabemos de uma vez com esta flor
da moita.

CAPÍTULO XXXV / O CAMINHO DE DAMASCO

Ora aconteceu, que, oito dias depois, como eu estivesse no caminho
de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras
da Escritura (At. IX, 7): “Levanta-te, e entra na cidade.” Essa voz
saía de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me
desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar
deveras, e desposá-la. Uma mulher coxa! Quanto a este motivo da
minha descida, não há duvidar que ela o achou e mo disse. Foi na
varanda, na tarde de uma segunda-feira, ao anunciar-lhe que na
seguinte manhã viria para baixo. — Adeus, suspirou ela estendendome
a mão com simplicidade; faz bem. — E como eu nada dissesse,
continuou: — Faz bem em fugir ao ridículo de casar comigo. Ia dizerlhe
que não; ela retirou-se lentamente, engolindo as lágrimas.
Alcancei-a a poucos passos, e jurei-lhe por todos os santos do Céu
que eu era obrigado a descer, mas que não deixava de lhe querer e
muito; tudo hipérboles frias, que ela escutou sem dizer nada.

— Acredita-me? perguntei eu no fim.

— Não, e digo-lhe que faz bem.

Quis retê-la, mas o olhar que me lançou não foi já de súplica, senão
de império. Desci da Tijuca, na manhã seguinte, um pouco
amargurado, outro pouco satisfeito. Vinha dizendo a mim mesmo que
era justo obedecer a meu pai, que era conveniente abraçar a carreira
política... que a constituição... que a minha noiva... que o meu
cavalo...

CAPÍTULO XXXVI / A PROPÓSITO DE BOTAS

Meu pai, que me não esperava, abraçou-me cheio de ternura e
agradecimento. — Agora é deveras? disse ele. Posso enfim...?

Deixei-o nessa reticência, e fui descalçar as botas, que estavam
apertadas. Uma vez aliviado, respirei à larga, e deitei-me a fio
comprido, enquanto os pés, e todo eu atrás deles, entrávamos numa
relativa bem-aventurança. Então considerei que as botas apertadas
são uma das maiores venturas da Terra, porque, fazendo doer os
pés, dão azo ao prazer de as descalçar. Mortifica os pés, desgraçado,
desmortifica-os depois, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos
sapateiros e de Epicuro. Enquanto esta idéia me trabalhava no
famoso trapézio, lançava eu os olhos para a Tijuca, e via a
aleijadinha perder-se no horizonte do pretérito, e sentia que o meu
coração não tardaria também a descalçar as suas botas. E descalçouas
o lascivo. Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse rápido,
inefável e incoercível momento de gozo, que sucede a uma dor
pungente, a uma preocupação, a um incômodo... Daqui inferi eu que
a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome,
com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos,
senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos
digo que toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas.

Tu, minha Eugênia, é que não as descalçaste nunca; foste aí pela
estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os
enterros pobres, solitária, calada, laboriosa, até que vieste também
para esta outra margem... O que eu não sei é se a tua existência era
muito necessária ao século. Quem sabe? Talvez um comparsa de
menos fizesse patear a tragédia humana.

CAPÍTULO XXXVII / ENFIM!

Enfim! eis aqui Virgília. Antes de ir à casa do Conselheiro Dutra,
perguntei a meu pai se havia algum ajuste prévio de casamento.

— Nenhum ajuste. Há tempos, conversando com ele a teu respeito,
confessei-lhe o desejo que tinha de te ver deputado; e de tal modo
falei, que ele prometeu fazer alguma coisa, e creio que o fará.
Quanto à noiva, é o nome que dou a uma criaturinha, que é uma
jóia, uma flor, uma estrela, uma coisa rara... é a filha dele; imaginei
que, se casasses com ela, mais depressa serias deputado.

— Só isto?

— Só isto.

Fomos dali à casa do Dutra. Era uma pérola esse homem, risonho,
jovial, patriota, um pouco irritado com os males públicos, mas não
desesperando de os curar depressa. Achou que a minha candidatura
era legítima; convinha, porém, esperar alguns meses. E logo me
apresentou à mulher, — uma estimável senhora, — e à filha, que não
desmentiu em nada o panegírico de meu pai. Juro-vos que em nada.
Relede o capítulo XXVII. Eu, que levava idéias a respeito da pequena,
fitei-a de certo modo; ela, que não sei se as tinha, não me fitou de
modo diferente; e o nosso olhar primeiro foi pura e simplesmente
conjugal. No fim de um mês estávamos íntimos.

CAPÍTULO XXXVIII / A QUARTA EDIÇÃO

— Venha cá jantar amanhã, disse-me o Dutra uma noite.

Aceitei o convite. No dia seguinte, mandei que a sege me esperasse
no Largo de São Francisco de Paula, e fui dar várias voltas. Lembravos
ainda a minha teoria das edições humanas? Pois sabei que,
naquele tempo, estava eu na quarta edição, revista e emendada, mas
ainda inçada de descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava
alguma compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação,
que era luxuosa. Dadas as voltas, ao passar pela Rua dos Ourives,
consulto o relógio e cai-me o vidro na calçada. Entro na primeira loja
que tinha à mão; era um cubículo, — pouco mais, — empoeirado e
escuro.

Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto
amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas
logo que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido
feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a
doença e uma velhice precoce, destruíam-lhe a flor das graças. As
bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam
saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de
lixa grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do
vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que
mudou, entretanto, logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo,
estava ruço e quase tão poento como os portais da loja. Num dos
dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis, pósteros?
essa mulher era Marcela.

Não a conheci logo; era difícil; ela porém conheceu-me apenas lhe
dirigi a palavra. Os olhos chisparam e trocaram a expressão usual por
outra, meio doce e meio triste. Vi-lhe um movimento como para
esconder-se ou fugir; era o instinto da vaidade, que não durou mais
de um instante. Marcela acomodou-se e sorriu.

— Quer comprar alguma coisa? disse ela estendendo-me a mão.

Não respondi nada. Marcela compreendeu a causa do meu silêncio
(não era difícil), e só hesitou, creio eu, em decidir o que dominava
mais, se o assombro do presente, se a memória do passado. Deu-me
uma cadeira, e, com o balcão permeio, falou-me longamente de si,
da vida que levara, das lágrimas que eu lhe fizera verter, das
saudades, dos desastres, enfim das bexigas, que lhe escalavraram o
rosto, e do tempo, que ajudou a moléstia, adiantando-lhe a
decadência. Verdade é que tinha a alma decrépita. Vendera tudo,
quase tudo; um homem, que a amara outrora, e lhe morreu nos
braços, deixara-lhe aquela loja de ourivesaria, mas, para que a
desgraça fosse completa, era agora pouco buscada a loja — talvez
pela singularidade de a dirigir uma mulher. Em seguida pediu-me que
lhe contasse a minha vida. Gastei pouco tempo em dizer-lha; não era
longa, nem interessante.

— Casou? disse Marcela no fim de minha narração.

— Ainda não, respondi secamente.

Marcela lançou os olhos para a rua, com a atonia de quem reflete ou
relembra; eu deixei-me ir então ao passado, e, no meio das
recordações e saudades, perguntei a mim mesmo por que motivo
fizera tanto desatino. Não era esta certamente a Marcela de 1822;
mas a beleza de outro tempo valia uma terça parte dos meus
sacrifícios? Era o que eu buscava saber, interrogando o rosto de
Marcela. O rosto dizia-me que não; ao mesmo tempo os olhos me
contavam que, já outrora, como hoje, ardia neles a flama da cobiça.
Os meus é que não souberam ver-lha; eram olhos da primeira
edição.

— Mas por que entrou aqui? viu-me da rua? perguntou ela, saindo
daquela espécie de torpor.

— Não, supunha entrar numa casa de relojoeiro; queria comprar um
vidro para este relógio; vou a outra parte; desculpe-me; tenho
pressa.

Marcela suspirou com tristeza. A verdade é que eu me sentia pungido
e aborrecido, ao mesmo tempo, e ansiava por me ver fora daquela
casa. Marcela, entretanto, chamou um moleque, deu-lhe o relógio, e,
apesar da minha oposição, mandou-o, a uma loja na vizinhança,
comprar o vidro. Não havia remédio; sentei-me outra vez. Disse ela
então que desejava ter a proteção dos conhecidos de outro tempo;
ponderou que mais tarde ou mais cedo era natural que me casasse, e
afiançou que me daria finas jóias por preços baratos. Não disse
preços baratos, mas usou uma metáfora delicada e transparente.
Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a
moléstia), que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o
único fim de acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor
daquela existência; foi isso mesmo que me disseram depois.

CAPÍTULO XXXIX / O VIZINHO

Enquanto eu fazia comigo mesmo aquela reflexão, entrou na loja um
sujeito baixo, sem chapéu, trazendo pela mão uma menina de quatro
anos.

— Como passou de hoje de manhã? disse ele a Marcela.

— Assim, assim. Vem cá, Maricota.

O sujeito levantou a criança pelos braços e passou-a para dentro do
balcão.

— Anda, disse ele; pergunta a D. Marcela como passou a noite.
Estava ansiosa por vir cá, mas a mãe não tinha podido vesti-la..,
Então, Maricota? Toma a bênção... Olha a vara de marmelo! Assim...
Não imagina o que ela é lá em casa; fala na senhora a todos os
instantes, e aqui parece uma pamonha. Ainda ontem... Digo,
Maricota?

— Não, diga, não, papai.

— Então foi alguma coisa feia? perguntou Marcela batendo na cara da
menina.

— Eu lhe digo; a mãe ensina-lhe a rezar todas as noites um padrenosso
e uma ave-maria, oferecidos a Nossa Senhora; mas a pequena
ontem veio pedir-me com voz muito humilde... imagine o quê?... que
queria oferecê-los a Santa Marcela.

— Coitadinha! disse Marcela beijando-a.

— É um namoro, uma paixão, como a senhora não imagina... A mãe
diz que é feitiço...

Contou mais algumas coisas o sujeito, todas muito agradáveis, até
que saiu levando a menina, não sem deitar-me um olhar
interrogativo ou suspeitoso. Perguntei a Marcela quem era ele.

— É um relojoeiro da vizinhança, um bom homem; a mulher
também; e a filha é galante, não? Parecem gostar muito de mim... é
boa gente.

Ao proferir estas palavras havia um tremor de alegria na voz de
Marcela; e no rosto como que se lhe espraiou uma onda de ventura...

CAPÍTULO XL / NA SEGE

Nisto entrou o moleque trazendo o relógio com o vidro novo. Era
tempo; já me custava estar ali; dei uma moedinha de prata ao
moleque; disse a Marcela que voltaria noutra ocasião, e saí a passo
largo. Para dizer tudo, devo confessar que o coração me batia um
pouco; mas era uma espécie de dobre de finados. O espírito ia
travado de impressões opostas. Notem que aquele dia amanhecera
alegre para mim. Meu pai, ao almoço, repetiu-me, por antecipação, o
primeiro discurso que eu tinha de proferir na Câmara dos Deputados;
rimo-nos muito, e o sol também, que estava brilhante, como nos
mais belos dias do mundo; do mesmo modo que Virgília devia rir,
quando eu lhe contasse as nossas fantasias do almoço. Vai senão
quando, cai-me o vidro do relógio; entro na primeira loja que me fica
à mão; e eis me surge o passado, ei-lo que me lacera e beija; ei-lo
que me interroga, com um rosto cortado de saudades e bexigas...

Lá o deixei; meti-me às pressas na sege, que me esperava no Largo
de São Francisco de Paula, e ordenei ao boleeiro que rodasse pelas
ruas fora. O boleeiro atiçou as bestas, a sege entrou a sacolejar-me,
as molas gemiam, as rodas sulcavam rapidamente a lama que
deixara a chuva recente, e tudo isso me parecia estar parado. Não
há, às vezes, um certo vento morno, não forte nem áspero, mas
abafadiço, que nos não leva o chapéu da cabeça, nem rodomoinha
nas saias das mulheres, e todavia é ou parece ser pior do que se
fizesse uma e outra coisa, porque abate, afrouxa, e como que
dissolve os espíritos? Pois eu tinha esse vento comigo; e, certo de
que ele me soprava por achar-me naquela espécie de garganta entre
o passado e o presente, almejava por sair à planície do futuro. O pior
é que a sege não andava.

— João, bradei eu ao boleeiro. Esta sege anda ou não anda?

— Uê! nhonhô! Já estamos parados na porta de sinhô conselheiro.

CAPÍTULO XLI / A ALUCINAÇÃO

Era verdade. Entrei apressado; achei Virgília ansiosa, mau humor,
fronte nublada. A mãe, que era surda, estava na sala com ela. No fim
dos cumprimentos disse-me a moça com sequidão:

— Esperávamos que viesse mais cedo.

Defendi-me do melhor modo; falei do cavalo que empacara, e de um
amigo, que me detivera. De repente morre-me a voz nos lábios, fico
tolhido de assombro. Virgília... seria Virgília aquela moça? Fitei-a
muito, e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e desviei a
vista. Tornei a olhá-la. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a pele,
ainda na véspera tão fina, rosada e pura, aparecia-me agora
amarela, estigmada pelo mesmo flagelo, que devastara o rosto da
espanhola. Os olhos, que eram travessos, fizeram-se murchos; tinha
o lábio triste e a atitude cansada. Olhei-a bem; peguei-lhe na mão, e
chamei-a brandamente a mim. Não me enganava; eram as bexigas.
Creio que fiz um gesto de repulsa.

Virgília afastou-se, e foi sentar-se no sofá. Eu fiquei algum tempo a
olhar para os meus próprios pés. Devia sair ou ficar? Rejeitei o
primeiro alvitre, que era simplesmente absurdo, e encaminhei-me
para Virgília, que lá estava sentada e calada. Céus! Era outra vez a
fresca, a juvenil, a florida Virgília. Em vão procurei no rosto dela
algum vestígio da doença; nenhum havia; era a pele fina e branca do
costume.

— Nunca me viu? perguntou Virgília, vendo que a encarava com
insistência.

— Tão bonita, nunca.

Sentei-me, enquanto Virgília, calada, fazia estalar as unhas.
Seguiram-se alguns segundos de pausa. Falei-lhe de coisas estranhas
ao incidente; ela porém não me respondia nada, nem olhava para
mim. Menos o estalido, era a estátua do Silêncio. Uma só vez me
deitou os olhos, mas muito de cima, soerguendo a pontinha esquerda
do lábio, contraindo as sobrancelhas, ao ponto de as unir; todo esse
conjunto de coisas dava-lhe ao rosto uma expressão média, entre
cômica e trágica.

Havia alguma afetação naquele desdém; era um arrebique do gesto.
Lá dentro, ela padecia, e não pouco, — ou fosse mágoa pura, ou só
despeito; e porque a dor que se dissimula dói mais, é muito provável
que Virgília padecesse em dobro do que realmente devia padecer.
Creio que isto é metafísica.

CAPÍTULO XLII / QUE ESCAPOU A ARISTÓTELES

Outra coisa que também me parece metafísica é isto: — Dá-se
movimento a uma bola, por exemplo; rola esta, encontra outra bola,
transmite-lhe o impulso, e eis a segunda boa a rolar como a primeira
rolou. Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela, — é
uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; a terceira, Virgília.
Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até
tocar em Brás Cubas, — o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a
rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a
primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de uma força,
se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma coisa que
poderemos chamar — solidariedade do aborrecimento humano. Como
é que este capítulo escapou a Aristóteles?

CAPÍTULO XLIII / MARQUESA, PORQUE EU SEREI MARQUÊS

Positivamente, era um diabrete Virgília, um diabrete angélico, se
querem, mas era-o, e então...

Então apareceu o Lobo Neves, um homem que não era mais esbelto
que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e
todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura, dentro de
poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano. Não
precedeu nenhum despeito; não houve a menor violência de família.
Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a
candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes influências. Cedi;
tal foi o começo da minha derrota. Uma semana depois, Virgília
perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria ele ministro.

— Pela minha vontade, já; pelas dos outros, daqui a um ano.

Virgília replicou:

— Promete que algum dia me fará baronesa?

— Marquesa, porque eu serei marquês.

Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e
elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito,
e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez
que fossem não queria dizer coisa nenhuma. O lábio do homem não é
como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia;
é justamente o contrário.

CAPÍTULO XLIV / UM CUBAS!

Meu pai ficou atônito com o desenlace, e quer-me parecer que não
morreu de outra coisa. Eram tantos os castelos que engenhara,
tantos e tantíssimos os sonhos, que não podia vê-los assim
esboroados, sem padecer um forte abalo no organismo. A princípio
não quis crê-lo. Um Cubas! um galho da árvore ilustre dos Cubas! E
dizia isto com tal convicção, que eu, já então informado da nossa
tanoaria, esqueci um instante a volúvel dama, para só contemplar
aquele fenômeno, não raro, mas curioso: uma imaginação graduada
em consciência.

— Um Cubas! repetia-me ele na seguinte manhã, ao almoço.

Não foi alegre o almoço; eu próprio estava a cair de sono. Tinha
velado uma parte da noite. De amor? Era impossível; não se ama
duas vezes a mesma mulher, e eu, que tinha de amar aquela, tempos
depois, não lhe estava agora preso por nenhum outro vínculo, além
de uma fantasia passageira, alguma obediência e muita fatuidade. E
isto basta a explicar a vigília; era despeito, um despeitozinho agudo
como ponta de alfinete, o qual se desfez, com charutos, murros,
leituras truncadas, até romper a aurora, a mais tranqüila das
auroras.

Mas eu era moço, tinha o remédio em mim mesmo. Meu pai é que
não pôde suportar facilmente a pancada. Pensando bem, pode ser
que não morresse precisamente do desastre; mas que o desastre lhe
complicou as últimas dores, é positivo. Morreu daí a quatro meses, —
acabrunhado, triste, com uma preocupação intensa e contínua, à
semelhança de remorso, um desencanto mortal, que lhe substituiu os
reumatismos e tosses. Teve ainda meia hora de alegria; foi quando
um dos ministros o visitou. Vi-lhe, — lembra-me bem, — vi-lhe o
grato sorriso de outro tempo, e nos olhos uma concentração de 1uz,
que era, por assim dizer, o último lampejo da alma expirante. Mas a
tristeza tornou logo, a tristeza de morrer sem me ver posto em
algum lugar alto, como aliás me cabia.

— Um Cubas!

Morreu alguns dias depois da visita do ministro, uma manhã de maio,
entre os dois filhos, Sabina e eu, e mais o tio Ildefonso e meu
cunhado. Morreu sem lhe poder valer a ciência dos médicos, nem o
nosso amor, nem os cuidados, que foram muitos, nem coisa
nenhuma; tinha de morrer, morreu.

— Um Cubas!

CAPÍTULO XLV / NOTAS

Soluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem
que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão,
caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam,
lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns
tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões
d’água benta, o fechar do caixão, a prego e martelo, seis pessoas que
o tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não
obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o
coche fúnebre, e o colocam em cima e traspassam e apertam as
correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um... Isto que
parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para
um capítulo triste e vulgar que não escrevo.

CAPÍTULO XLVI / A HERANÇA

Veja-nos agora o leitor, oito dias depois da morte de meu pai, —
minha irmã sentada num sofá, — pouco adiante, Cotrim, de pé,
encostado a um consolo, com os braços cruzados e a morder o
bigode, — eu a passear de um lado para outro, com os olhos no
chão. Luto pesado. Profundo silêncio.

— Mas afinal, disse Cotrim; esta casa pouco mais pode valer de trinta
contos; demos que valha trinta e cinco...

— Vale cinqüenta, ponderei; Sabina sabe que custou cinqüenta e
oito...

— Podia custar até sessenta, tornou Cotrim; mas não se segue que
os valesse, e menos ainda que os valha hoje. Você sabe que as
casas, aqui há anos, baixaram muito. Olhe, se esta vale os cinqüenta
contos, quantos não vale a que você deseja para si, a do Campo?

— Não fale nisso! Uma casa velha.

— Velha! exclamou Sabina, levantando as mãos ao teto.

— Parece-lhe nova, aposto?

— Ora, mano, deixe-se dessas coisas, disse Sabina, erguendo-se do
sofá; podemos arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por
exemplo, Cotrim não aceita os pretos, quer só o boleeiro de papai e o
Paulo...

— O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar
outro.

— Bem; fico com o Paulo e o Prudêncio.

— O Prudêncio está livre.

— Livre?

— Há dois anos.

— Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar
parte a ninguém! Está direito. Quanto à prata... creio que não
libertou a prata?

Tínhamos falado na prata, a velha prataria do tempo de D. José I, a
porção mais grave da herança, já pelo lavor, já pela vetustez, já pela
origem da propriedade; dizia meu pai que o Conde da Cunha, quando
vice-rei do Brasil, a dera de presente a meu bisavô Luís Cubas.

— Quanto à prata, continuou Cotrim, eu não faria questão nenhuma,
se não fosse o desejo que sua irmã tem de ficar com ela; e acho-lhe
razão. Sabina é casada, e precisa de uma copa digna, apresentável.
Você é solteiro, não recebe, não...

— Mas posso casar.

— Para quê? interrompeu Sabina.

Era tão sublime esta pergunta, que por alguns instantes me fez
esquecer os interesses. Sorri; peguei na mão de Sabina, bati-lhe
levemente na palma, tudo isso com tão boa sombra, que o Cotrim
interpretou o gesto como de aquiescência, e agradeceu-mo.

— Que é lá? redargüi; não cedi coisa nenhuma, nem cedo.

— Nem cede?

Abanei a cabeça.

— Deixa, Cotrim, disse minha irmã ao marido; vê se ele quer ficar
também com a nossa roupa do corpo; é só o que falta.

— Não falta mais nada. Quer a sege, quer o boleeiro, quer a prata,
quer tudo. Olhe, é muito mais sumário citar-nos a juízo e provar com
testemunhas que Sabina não é sua irmã, que eu não sou seu
cunhado e que Deus não é Deus. Faça isto, e não perde nada, nem
uma colherinha. Ora, meu amigo, outro ofício!

Estava tão agastado, e eu não menos, que entendi oferecer um meio
de conciliação; dividir a prata. Riu-se e perguntou-me a quem caberia
o bule e a quem o açucareiro; e depois desta pergunta, declarou que
teríamos tempo de liquidar a pretensão, quando menos em juízo.
Entretanto, Sabina fora até à janela que dava para a chácara, — e
depois de um instante, voltou, e propôs ceder o Paulo e outro preto,
com a condição de ficar com a prata; eu ia dizer que não me
convinha, mas Cotrim adiantou-se e disse a mesma coisa.

— Isso nunca! não faço esmolas! disse ele.

Jantamos tristes. Meu tio cônego apareceu à sobremesa, e ainda
presenciou uma pequena altercação.

— Meus filhos, disse ele, lembrem-se que meu irmão deixou um pão
bem grande para ser repartido por todos.

Mas Cotrim:

— Creio, creio. A questão, porém, não é de pão, é de manteiga. Pão
seco é que eu não engulo.

Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamos brigados. E
digo-lhes que, ainda assim, custou-me muito a brigar com Sabina.
Éramos tão amigos! Jogos pueris, fúrias de criança, risos e tristezas
da idade adulta, dividimos muita vez esse pão da alegria e da
miséria, irmãmente, como bons irmãos que éramos. Mas estávamos
brigados. Tal qual a beleza de Marcela, que se esvaiu com as bexigas.

CAPÍTULO XLVII / O RECLUSO

Marcela, Sabina, Virgília... aí estou eu a fundir todos os contrastes,
como se esses nomes e pessoas não fossem mais do que modos de
ser da minha afeição interior. Pena de maus costumes, ata uma
gravata ao estilo, veste-lhe um colete menos sórdido; e depois sim,
depois vem comigo, entra nessa casa, estira-te nessa rede que me
embalou a melhor parte dos anos que decorreram desde o inventário
de meu pai até 1842. Vem; se te cheirar a algum aroma de toucador,
não cuides que o mandei derramar para meu regalo; é um vestígio
da N. ou da Z. ou da U. — que todas essas letras maiúsculas
embalaram aí a sua elegante abjeção. Mas, se além do aroma,
quiseres outra coisa, fica-te com o desejo, porque eu não guardei
retratos, nem cartas, nem memórias, a mesma comoção esvaiu-se, e
só me ficaram as letras iniciais.

Vivi meio recluso, indo de longe em longe a algum baile, ou teatro,
ou palestra, mas a maior parte do tempo passei-a comigo mesmo.
Vivia; deixava-me ir ao curso e recurso dos sucessos e dos dias, ora
buliçoso, ora apático, entre a ambição e o desânimo. Escrevia política
e fazia literatura. Mandava artigos e versos para as folhas públicas, e
cheguei a alcançar certa reputação de polemista e de poeta. Quando
me lembrava do Lobo Neves, que era já deputado, e de Virgília,
futura marquesa, perguntava a mim mesmo por que não seria melhor
deputado e melhor marquês do que o Lobo Neves, — eu, que valia
mais, muito mais do que ele, — e dizia isto a olhar para a ponta do
nariz...

CAPÍTULO XLVIII / UM PRIMO DE VIRGÍLIA

— Sabe quem chegou ontem de São Paulo? perguntou-me uma noite
Luís Dutra.

Luís Dutra era um primo de Virgília, que também privava com as
musas. Os versos dele agradavam e valiam mais do que os meus;
mas ele tinha necessidade da sanção de alguns, que lhe confirmasse
o aplauso dos outros. Como fosse acanhado, não interrogava a
ninguém; mas deleitava-se com ouvir alguma palavra de apreço;
então criava novas forças e arremetia juvenilmente ao trabalho.

Pobre Luís Dutra! Apenas publicava alguma coisa, corria à minha
casa, e entrava a girar em volta de mim, à espreita de um juízo, de
uma palavra, de um gesto, que lhe aprovasse a recente produção, e
eu falava-lhe de mil coisas diferentes, — do último baile do Catete,
da discussão das câmaras, de berlindas e cavalos, — de tudo, menos
dos seus versos ou prosas. Ele respondia-me, a princípio com
animação, depois mais frouxo, torcia a rédea da conversa para o seu
assunto dele, abria um livro, perguntava-me se tinha algum trabalho
novo, e eu dizia-lhe que sim ou que não, mas torcia a rédea para o
outro lado, e lá ia ele atrás de mim, até que empacava de todo e saía
triste. Minha intenção era fazê-lo duvidar de si mesmo, desanimá-lo,
eliminá-lo. E tudo isto a olhar para a ponta do nariz...

CAPÍTULO XLIX / A PONTA DO NARIZ

Nariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida... Já
meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explicação
do Doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso dos óculos, — e
tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva;
mas veio um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos
obscuros de filosofia, atinei com a única, verdadeira e definitiva
explicação.

Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor
que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com o
fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do
nariz, perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se no
invisível, aprende o impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se,
eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno
mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao
faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder
de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e
tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um
nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se
contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano
não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras
tribos.

Ouço daqui uma objeção do leitor: — Como pode ser assim, diz ele se
nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar o
seu próprio nariz?

Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um
chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus; é a loja de
um rival, que a abriu há dois anos; tinha então duas portas, hoje tem
quatro; promete ter seis a oito. Nas vidraças ostentam-se os chapéus
do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro
compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas
portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que
de igual preço. Mortifica-se naturalmente; mas vai andando,
concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as
causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele
chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro...
Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.

A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que
multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo.
Procriação, equilíbrio.

CAPÍTULO L / VIRGÍLIA CASADA

— Quem chegou de São Paulo foi minha prima Virgília, casada com o
Lobo Neves, continuou Luís Dutra.

— Ah!

— E só hoje é que eu soube uma coisa, seu maganão...

— Que foi?

— Que você quis casar com ela.

— Idéias de meu pai. Quem lhe disse isso?

— Ela mesma. Falei-lhe muito em você, e ela então contou-me tudo.

No dia seguinte, estando na Rua do Ouvidor, à porta da tipografia do
Plancher, vi assomar, a distância, uma mulher esplêndida. Era ela; só
a reconheci a poucos passos, tão outra estava, a tal ponto a natureza
e a arte lhe haviam dado o último apuro. Cortejamo-nos; ela seguiu;
entrou com o marido na carruagem, que os esperava um pouco
acima; fiquei atônito.

Oito dias depois, encontrei-a num baile; creio que chegamos a trocar
duas ou três palavras. Mas noutro baile, dado daí a um mês, em casa
de uma senhora, que ornara os salões do primeiro reinado, e não
desornava então os do segundo, a aproximação foi maior e mais
longa, porque conversamos e valsamos. A valsa é uma deliciosa
coisa. Valsamos; não nego que, ao conchegar ao meu corpo aquele
corpo flexível e magnífico, tive uma singular sensação, uma sensação
de homem roubado.

— Está muito calor, disse ela, logo que acabamos. Vamos ao terraço?

— Não; pode constipar-se. Vamos a outra sala.

Na outra sala estava Lobo Neves, que me fez muitos cumprimentos,
acerca dos meus escritos políticos, acrescentando que nada dizia dos
literários por não entender deles; mas os políticos eram excelentes,
bem pensados e bem escritos. Respondi-lhe com iguais esmeros de
cortesia, e separamo-nos contentes um do outro.

Cerca de três semanas depois recebi um convite dele para uma
reunião íntima. Fui; Virgília recebeu-me com esta graciosa palavra: —
O senhor hoje há de valsar comigo. — Em verdade, eu tinha fama e
era valsista emérito; não admira que ela me preferisse. Valsamos
uma vez, e mais outra vez. Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa
que nos perdeu. Creio que essa noite apertei-lhe a mão com muita
força, e ela deixou-a ficar, como esquecida, e eu a abraçá-la, e todos
com os olhos em nós, e nos outros que também se abraçavam e
giravam... Um delírio.

CAPÍTULO LI / É MINHA!

— É minha! disse eu comigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e
confesso que durante o resto da noite, foi-se-me a idéia entranhando
no espírito, não à força de martelo, mas de verruma, que é mais
insinuativa.

— É minha! dizia eu ao chegar à porta de casa.

Mas aí, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fosse, se
lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessórios,
luziu-me no chão uma coisa redonda e amarela. Abaixei-me; era uma
moeda de ouro, uma meia dobra.

— É minha! repeti eu a rir-me, e meti-a no bolso.

Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte,
recordando o caso, senti uns repelões da consciência, e uma voz que
me perguntava por que diabo seria minha uma moeda que eu não
herdara nem ganhara, mas somente achara na rua. Evidentemente
não era minha; era de outro, daquele que a perdera, rico ou pobre, e
talvez fosse pobre, algum operário que não teria com que dar de
comer à mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o
mesmo. Cumpria restituir a moeda, e o melhor meio, o único meio,
era fazê-lo por intermédio de um anúncio ou da polícia. Enviei uma
carta ao chefe de polícia, remetendo-lhe o achado, e rogando-lhe
que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvê-lo às mãos do
verdadeiro dono.

Mandei a carta e almocei tranqüilo, posso até dizer que jubiloso.
Minha consciência valsara tanto na véspera, que chegou a ficar
sufocada, sem respiração; mas a restituição da meia dobra foi uma
janela que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de
ar puro, e a pobre dama respirou à larga. Ventilai as consciências!
não vos digo mais nada. Todavia, despido de quaisquer outras
circunstâncias, o meu ato era bonito, porque exprimia um justo
escrúpulo, um sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a
minha dama interior, com um modo austero e meigo a um tempo; é
o que ela me dizia, reclinada ao peitoril da janela aberta.

— Fizeste bem, Cubas; andaste perfeitamente. Este ar não é só puro,
é balsâmico, é uma transpiração dos eternos jardins. Queres ver o
que fizeste, Cubas?

E a boa dama sacou um espelho e abriu-mo diante dos olhos. Vi,
claramente vista, a meia dobra da véspera, redonda, brilhante,
multiplicando-se por si mesma, — ser dez — depois trinta — depois
quinhentas, — exprimindo assim o benefício que me daria na vida e
na morte o simples ato da restituição. E eu espraiava todo o meu ser
na contemplação daquele ato, revia-me nele, achava-me bom, talvez
grande. Uma simples moeda, hem? Vejam o que é ter valsado um
poucochinho mais.

Assim eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência
das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela
fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar
continuamente a consciência. Talvez não entendas o que aí fica;
talvez queiras uma coisa mais concreta, um embrulho, por exemplo,
um embrulho misterioso. Pois toma lá o embrulho misterioso.

CAPÍTULO LII / O EMBRULHO MISTERIOSO

Foi o caso que, alguns dias depois, indo eu a Botafogo, tropecei num
embrulho, que estava na praia. Não digo bem; houve menos
tropeção que pontapé. Vendo um embrulho, pão grande, mas limpo e
corretamente feito, atado com um barbante rijo, uma coisa que
parecia alguma coisa, lembrou-me bater-lhe com o pé, assim por
experiência, e bati, e o embrulho resistiu. Relanceei os olhos em volta
de mim; a praia estava deserta; ao longe uns meninos brincavam, —
um pescador curava as redes ainda mais longe, — ninguém que
pudesse ver a minha ação; inclinei-me, apanhei o embrulho e segui.

Segui, mas não sem receio. Podia ser uma pulha de rapazes. Tive
idéia de devolver o achado à praia, mas apalpei-o e rejeitei a idéia.
Um pouco adiante, desandei o caminho e guiei para casa.

— Vejamos, disse eu ao entrar no gabinete.

E hesitei um instante, creio que por vergonha; assaltou-me outra vez
o receio da pulha. É certo que não havia ali nenhuma testemunha
externa; mas eu tinha dentro de mim mesmo um garoto, que havia
de assobiar, guinchar, grunhir, patear, apupar, cacarejar, fazer o
diabo, se me visse abrir o embrulho e achar dentro uma dúzia de
lenços velhos ou duas dúzias de goiabas podres. Era tarde; a
curiosidade estava aguçada, como deve estar a do leitor; desfiz o
embrulho, e vi... achei... contei... recontei nada menos de cinco
contos de réis. Nada menos. Talvez uns dez mil-réis mais. Cinco
contos em boas notas e moedas, tudo asseadinho e arranjadinho, um
achado raro. Embrulhei-as de novo. Ao jantar pareceu-me que um
dos moleques falara a outro com os olhos. Ter-me-iam espreitado?
Interroguei-os discretamente, e concluí que não. Sobre o jantar fui
outra vez ao gabinete, examinei o dinheiro, e ri-me dos meus
cuidados maternais a respeito de cinco contos, — eu, que era
abastado.

Para não pensar mais naquilo fui de noite à casa do Lobo Neves, que
instara muito comigo não deixasse de freqüentar as recepções da
mulher. Lá encontrei o chefe de polícia; fui-lhe apresentado; ele
lembrou-se logo da carta e da meia dobra que eu lhe remetera
alguns dias antes. Aventou o caso; Virgília pareceu saborear o meu
procedimento, e cada um dos presentes acertou de contar uma
anedota análoga, que eu ouvi com impaciência de mulher histérica.

De noite, no dia seguinte, em toda aquela semana pensei o menos
que pude nos cinco contos, e até confesso que os deixei muito
quietinhos na gaveta da secretária. Gostava de falar de todas as
coisas, menos de dinheiro, e principalmente de dinheiro achado;
todavia não era crime achar dinheiro, era uma felicidade, um bom
acaso, era talvez um lance da Providência. Não podia ser outra coisa.
Não se perdem cinco contos, como se perde um lenço de tabaco.
Cinco contos levam-se com trinta mil sentidos, apalpam-se a miúdo,
não se lhes tiram os olhos de cima, nem as mãos, nem o
pensamento, e para se perderem assim tolamente, numa praia, é
necessário que... Crime é que não podia ser o achado; nem crime,
nem desonra, nem nada que embaciasse o caráter de um homem.
Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as
apostas de cavalo, como os ganhos de um jogo honesto e até direi
que a minha felicidade era merecida, porque eu não me sentia mau,
nem indigno dos benefícios da Providência.

— Estes cinco contos, dizia eu comigo, três semanas depois, hei de
empregá-los em alguma ação boa, talvez um dote a alguma menina
pobre, ou outra coisa assim... hei de ver...

Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brasil. Lá me receberam com
muitas e delicadas alusões ao caso da meia dobra, cuja notícia
andava já espalhada entre as pessoas do meu conhecimento;
respondi enfadado que a coisa não valia a pena de tamanho
estrondo; louvaram-me então a modéstia, — e porque eu me
encolerizasse, replicaram-me que era simplesmente grande.

CAPÍTULO LIII / . . . . .

Virgília é que já se não lembrava da meia dobra; toda ela estava
concentrada em mim, nos meus olhos, na minha vida, no meu
pensamento; — era o que dizia, e era verdade.

Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias
e pecas. O nosso amor era daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta
seiva, que, dentro em pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante
criatura dos bosques. Não lhes poderei dizer, ao certo, os dias que
durou esse crescimento. Lembra-me, sim, que, em certa noite,
abotoou-se a flor, ou o beijo, se assim lhe quiserem chamar, um
beijo que ela me deu, trêmula, — coitadinha, — trêmula de medo,
porque era ao portão da chácara. Uniu-nos esse beijo único, — breve
como a ocasião, ardente como o amor, prólogo de uma vida de
delícias, de terrores, de remorsos, de prazeres que rematavam em
dor, de aflições que desabrochavam em alegria, — uma hipocrisia
paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio, — vida
de agitações, de cóleras, de desesperos e de ciúmes, que uma hora
pagava à farta e de sobra; mas outra hora vinha e engolia aquela,
como tudo mais, para deixar à tona as agitações e o resto, e o resto
do resto, que é o fastio e a saciedade: tal foi o livro daquele prólogo.

CAPÍTULO LIV / A PÊNDULA

Saí dali a saborear o beijo. Não pude dormir; estirei-me na cama, é
certo, mas foi o mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite.
Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me
muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer a
cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava
então um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e o da
morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las
assim:

— Outra de menos...

— Outra de menos...

— Outra de menos...

— Outra de menos...

O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para
que ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os
meus instantes perdidos. Invenções há, que se transformam ou
acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e
perpétuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há
de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que
morre.

Naquela noite não padeci essa triste sensação de enfado, mas outra,
e deleitosa. As fantasias tumultuavam-me cá dentro, vinham umas
sobre outras, à semelhança de devotas que se abalroam para ver o
anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes perdidos, mas os
minutos ganhados. De certo tempo em diante não ouvi coisa
nenhuma, porque o meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou
pela janela fora e bateu as asas na direção da casa de Virgília. Aí
achou no peitoril de uma janela o pensamento de Virgília, saudaramse
e ficaram de palestra. Nós a rolarmos na cama, talvez com frio,
necessitados de repouso, e os dois vadios ali postos, a repetirem o
velho diálogo de Adão e Eva.

CAPÍTULO LV / O VELHO DIÁLOGO DE ADÃO E EVA

BRÁS CUBAS................................?

VIRGÍLIA...............................

BRÁS
CUBAS.......................................................................................
.........

........................................................

VIRGÍLIA..........................................!

BRÁS CUBAS.................................

VIRGÍLIA....................................................................................
......................................................................?
..................................................

.......................................................

BRÁS CUBAS.................................

VIRGÍLIA...............................................

BRÁS
CUBAS.......................................................................................
.......

.............................
..........!..............................!...........................!

VIRGÍLIA....................................................?

BRÁS CUBAS..............................................!

VIRGÍLIA...................................................!

CAPÍTULO LVI / O MOMENTO OPORTUNO

Mas, com a breca! quem me explicará a razão desta diferença? Um
dia vimo-nos, tratamos o casamento, desfizemo-lo e separamo-nos, a
frio, sem dor, porque não houvera paixão nenhuma; mordeu-me
apenas algum despeito e nada mais. Correm anos, torno a vê-la,
damos três ou quatro giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro
com delírio. A beleza de Virgília chegara, é certo, a um alto grau de
apuro, mas nós éramos substancialmente os mesmos, e eu, à minha
parte, não me tornara mais bonito nem mais elegante. Quem me
explicará a razão dessa diferença?

A razão não podia ser outra senão o momento oportuno. Não era
oportuno o primeiro momento, porque, se nenhum de nós estava
verde para o amor, ambos o estávamos para o nosso amor: distinção
fundamental. Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos.
Esta explicação achei-a eu mesmo, dois anos depois do beijo, um dia
em que Virgília se me queixava de um pintalegrete que lá ia e
tenazmente a galanteava.

— Que importuno! dizia ela fazendo uma careta de raiva.

Estremeci, fitei-a, vi que a indignação era sincera; então ocorreu-me
que talvez eu tivesse provocado alguma vez aquela mesma careta, e
compreendi logo toda a grandeza da minha evolução. Tinha vindo de
importuno a oportuno.

CAPÍTULO LVII / DESTINO

Sim, senhor, amávamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo
impediam, agora é que nos amávamos deveras. Achávamo-nos
jungidos um ao outro, como as duas almas que o poeta encontrou no
Purgatório:

Di pari, come buoi, che vanno a giogo;

e digo mal, comparando-nos a bois, porque nós éramos outra espécie
de animal menos tardo, mais velhaco e lascivo. Eis-nos a caminhar
sem saber até onde, nem por que estradas escusas; problema que
me assustou, durante algumas semanas, mas cuja solução entreguei
ao destino. Pobre Destino! Onde andarás agora, grande procurador
dos negócios humanos? Talvez estejas a criar pele nova, outra cara,
outras maneiras, outro nome, e não é impossível que... Já me não
lembra onde estava... Ah! nas estradas escusas. Disse eu comigo que
já agora seria o que Deus quisesse. Era a nossa sorte amar-nos; se
assim não fora, como explicaríamos a valsa e o resto? Virgília
pensava a mesma coisa. Um dia, depois de me confessar que tinha
momentos de remorsos, como eu lhe dissesse que, se tinha
remorsos, é porque me não tinha amor, Virgília cingiu-me com os
seus magníficos braços, murmurando:

— Amo-te, é a vontade do Céu.

E esta palavra não vinha à toa; Virgília era um pouco religiosa. Não
ouvia missa aos domingos, é verdade, e creio até que só ia às igrejas
em dia de festa, e quando havia lugar vago em alguma tribuna. Mas
rezava todas as noites, com fervor, ou, pelo menos, com sono. Tinha
medo às trovoadas; nessas ocasiões, tapava os ouvidos, e
resmoneava todas as orações do catecismo. Na alcova dela havia um
oratoriozinho de jacarandá, obra de talha, de três palmos de altura,
com três imagens dentro; mas não falava dele às amigas; ao
contrário, tachava de beatas as que eram só religiosas. Algum tempo
desconfiei que havia nela certo vexame de crer, e que a sua religião
era uma espécie de camisa de flanela, preservativa e clandestina;
mas evidentemente era engano meu.

CAPÍTULO LVIII / CONFIDÊNCIA

Lobo Neves, a princípio, metia-me grandes sustos. Pura ilusão! Como
adorasse a mulher, não se vexava de mo dizer muitas vezes; achava
que Virgília era a perfeição mesma, um conjunto de qualidades
sólidas e finas, amorável, elegante, austera, um modelo. E a
confiança não parava aí. De fresta que era, chegou a porta
escancarada. Um dia confessou-me que trazia uma triste carcoma na
existência; faltava-lhe a glória pública. Animei-o; disse-lhe muitas
coisas bonitas, que ele ouviu com aquela unção religiosa de um
desejo que não quer acabar de morrer; então compreendi que a
ambição dele andava cansada de bater as asas, sem poder abrir o
vôo. Dias depois disse-me todos os seus tédios e desfalecimentos, as
amarguras engolidas, as raivas sopitadas; contou-me que a vida
política era um tecido de invejas, despeitos, intrigas, perfídias,
interesses, vaidades. Evidentemente havia aí uma crise de
melancolia; tratei de combatê-la.

— Sei o que lhe digo, replicou-me com tristeza. Não pode imaginar o
que tenho passado. Entrei na política por gosto, por família, por
ambição, e um pouco por vaidade. Já vê que reuni em mim só todos
os motivos que levam o homem à vida pública; faltou-me só o
interesse de outra natureza. Vira o teatro pelo lado da platéia; e,
palavra, que era bonito! Soberbo cenário, vida, movimento e graça
na representação. Escriturei-me; deram-me um papel que... Mas
para que o estou a fatigar com isto? Deixe-me ficar com as minhas
amofinações. Creia que tenho passado horas e dias... Não há
constância de sentimentos, não há gratidão, não há nada... nada....
nada...

Calou-se, profundamente abatido, com os olhos no ar, parecendo não
ouvir coisa nenhuma, a não ser o eco de seus próprios pensamentos.
Após alguns instantes, ergueu-se e estendeu-me a mão: — O senhor
há de rir-se de mim, disse ele; mas desculpe aquele desabafo; tinha
um negócio, que me mordia o espírito. E ria, de um jeito sombrio e
triste; depois pediu-me que não referisse a ninguém o que se passara
entre nós; ponderei-lhe que a rigor não se passara nada. Entraram
dois deputados e um chefe político da paróquia. Lobo Neves recebeuos
com alegria, a princípio um tanto postiça, mas logo depois natural.
No fim de meia hora, ninguém diria que ele não era o mais
afortunado dos homens; conversava, chasqueava, e ria, e riam todos.

CAPÍTULO LIX / UM ENCONTRO

Deve ser um vinho enérgico a política, dizia eu comigo, ao sair da
casa de Lobo Neves; e fui andando, fui andando, até que na Rua dos
Barbonos vi uma sege, e dentro um dos ministros, meu antigo
companheiro de colégio. Cortejamo-nos afetuosamente, a sege
seguiu, e eu fui andando... andando... andando...

— Por que não serei eu ministro?

Esta idéia, rútila e grande, — trajada ao bizarro, como diria o Padre
Bernardes, — esta idéia começou uma vertigem de cabriolas e eu
deixei-me estar com os olhos nela, a achar-lhe graça. Não pensei
mais na tristeza de Lobo Neves; sentia a atração do abismo. Recordei
aquele companheiro de colégio, as correrias nos morros, as alegrias e
travessuras, e comparei o menino com o homem, e perguntei a mim
mesmo por que não seria eu como ele. Entrava então no Passeio
Público, e tudo me parecia dizer a mesma coisa. — Por que não serás
ministro, Cubas? — Cubas, por que não serás ministro de Estado? Ao
ouvi-lo, uma deliciosa sensação me refrescava todo o organismo.
Entrei, fui sentar-me num banco, a remoer aquela idéia. E Virgília
que havia de gostar! Alguns minutos depois vejo encaminhar-se para
mim uma cara, que não me pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse
donde fosse.

Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e
pálido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro
de Babilônia; o chapéu era contemporâneo do de Gessler. Imaginem
agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes, — ou,
literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a
um amarelo sem brilho; o pêlo desaparecia aos poucos; dos oito
primitivos botões restavam três. As calças, de brim pardo, tinham
duas fortes joelheiras, enquanto as bainhas eram roídas pelo tacão
de um botim sem misericórdia nem graxa. Ao pescoço flutuavam as
pontas de uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando
um colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete, um colete
de seda escura, roto a espaços, e desabotoado.

— Aposto que me não conhece, Sr. Dr. Cubas? disse ele.

— Não me lembra...

— Sou o Borba, o Quincas Borba.

Recuei espantado... Quem me dera agora o verbo solene de um
Bossuet ou de Vieira, para contar tamanha desolação! Era o Quincas
Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de
colégio, tão inteligente e abastado. Quincas Borba! Não; impossível;
não pode ser. Não podia acabar de crer que essa figura esquálida,
essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que
toda essa ruína fosse o Quincas Borba. Mas era. Os olhos tinham um
resto da expressão de outro tempo, e o sorriso não perdera certo ar
escarninho, que lhe era peculiar. Entretanto, ele suportava com
firmeza o meu espanto. No fim de algum tempo arredei os olhos; se
a figura repelia, a comparação acabrunhava.

— Não é preciso contar-lhe nada, disse ele enfim; o senhor adivinha
tudo. Uma vida de misérias, de atribulações e de lutas. Lembra-se
das nossas festas, em que eu figurava de rei? Que trambolhão! Acabo
mendigo...

E alçando a mão direita e os ombros, com um ar de indiferença,
parecia resignado aos golpes da fortuna, e não sei até se contente.
Talvez contente. Com certeza, impassível. Não havia nele a
resignação cristã, nem a conformidade filosófica. Parece que a
miséria lhe calejara a alma, a ponto de lhe tirar a sensação de lama.
Arrastava os andrajos, como outrora a púrpura: com certa graça
indolente.

— Procure-me, disse eu, poderei arranjar-lhe alguma coisa.

Um sorriso magnífico lhe abriu os lábios. — Não é o primeiro que me
promete alguma coisa, replicou, e não sei se será o último que não
me fará nada. E para quê? Eu nada peço, a não ser dinheiro; dinheiro
sim, porque é necessário comer, e as casas de pasto não fiam. Nem
as quitandeiras. Uma coisa de nada, uns dois vinténs de angu, nem
isso fiam as malditas quitandeiras... Um inferno, meu... ia dizer meu
amigo... Um inferno! o diabo! todos os diabos! Olhe, ainda hoje não
almocei.

— Não?

— Não; saí muito cedo de casa. Sabe onde moro? No terceiro degrau
das escadas de São Francisco, à esquerda de quem sobe; não precisa
bater na porta. Casa fresca, extremamente fresca. Pois saí cedo, e
ainda não comi...

Tirei a carteira, escolhi uma nota de cinco mil-réis, — a menos limpa,
— e dei-lha. Ele recebeu-ma com os olhos cintilantes de cobiça.
Levantou a nota ao ar, e agitou-a entusiasmado.

— In hoc signo vinces! bradou.

E depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e tão ruidosa
expansão, que me produziu um sentimento misto de nojo e lástima.
Ele, que era arguto, entendeu-me; ficou sério, grotescamente sério, e
pediu-me desculpa da alegria, dizendo que era alegria de pobre que
não via, desde muitos anos, uma nota de cinco mil-réis.

— Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu.

— Sim? acudiu ele, dando um bote para mim.

— Trabalhando, concluí eu.

Fez um gesto de desdém; calou-se alguns instantes; depois disse-me
positivamente que não queria trabalhar. Eu estava enjoado dessa
abjeção tão cômica e tão triste, e preparei-me para sair.

— Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele,
escarranchando-se diante de mim.

CAPÍTULO LX / O ABRAÇO

Cuidei que o pobre diabo estivesse doido, e ia afastar-me, quando ele
me pegou no pulso, e olhou alguns instantes para o brilhante que eu
trazia no dedo. Senti-lhe na mão uns estremeções de cobiça, uns
pruridos de posse.

— Magnífico! disse ele.

Depois começou a andar à roda de mim e a examinar-me muito.

— O senhor trata-se, disse ele. Jóias, roupa fina, elegante e..
Compare esses sapatos aos meus; que diferença! Pudera não! Digolhe
que se trata. E moças? Como vão elas? Está casado?

— Não...

— Nem eu.

— Moro na rua...

— Não quero saber onde mora, atalhou Quincas Borba. Se alguma
vez nos virmos, dê-me outra nota de cinco mil-réis; mas permita-me
que não a vá buscar à sua casa. É uma espécie de orgulho... Agora,
adeus; vejo que está impaciente.

— Adeus!

— E obrigado. Deixa-me agradecer-lhe de mais perto?

E dizendo isto abraçou-me com tal ímpeto, que não pude evitá-lo.
Separamo-nos finalmente, eu a passo largo, com a camisa
amarrotada do abraço, enfadado e triste. Já não dominava em mim a
parte simpática da sensação, mas a outra. Quisera ver-lhe a miséria
digna. Contudo, não pude deixar de comparar outra vez o homem de
agora com o de outrora, entristecer-me e encarar o abismo que
separa as esperanças de um tempo da realidade de outro tempo...

— Ora adeus! Vamos jantar, disse comigo.

Meto a mão no colete e não acho o relógio. Última desilusão! O Borba
furtara-mo no abraço.

CAPÍTULO LXI / UM PROJETO

Jantei triste. Não era a falta do relógio que me pungia, era a imagem
do autor do furto, e as reminiscências de criança, e outra vez a
comparação, e a conclusão... Desde a sopa, começou a abrir em mim
a flor amarela e mórbida do capítulo XXV, e então jantei depressa,
para correr à casa de Virgília. Virgília era o presente; eu queria
refugiar-me nele, para escapar às opressões do passado, porque o
encontro do Quincas Borba, tornara-me aos olhos o passado, não
qual fora deveras, mas um passado roto, abjeto, mendigo e gatuno.

Saí de casa, mas era cedo; iria achá-los à mesa. Outra vez pensei no
Quincas Borba, e tive então um desejo de tornar ao Passeio Público,
a ver se o achava; a idéia de o regenerar surgiu-me como uma forte
necessidade. Fui; mas já não o achei. Indaguei do guarda; disse-me
que efetivamente “esse sujeito” ia por ali às vezes.

— A que horas?

— Não tem hora certa.

Não era impossível encontrá-lo noutra ocasião; prometi a mim
mesmo lá voltar. A necessidade de o regenerar, de o trazer ao
trabalho e ao respeito de sua pessoa enchia-me o coração; eu
começava a sentir um bem-estar, uma elevação, uma admiração de
mim próprio... Nisto caía a noite; fui ter com Virgília.

CAPÍTULO LXII / O TRAVESSEIRO

Fui ter com Virgília; depressa esqueci o Quincas Borba. Virgília era o
travesseiro do meu espírito, um travesseiro mole, tépido, aromático,
enfronhado em cambraia e bruxelas. Era ali que ele costumava
repousar de todas as sensações más, simplesmente enfadonhas, ou
até dolorosas. E, bem pesadas as coisas, não era outra a razão da
existência de Virgília; não podia ser. Cinco minutos bastaram para
olvidar inteiramente o Quincas Borba; cinco minutos de uma
contemplação mútua, com as mãos presas umas nas outras; cinco
minutos e um beijo. E lá se foi a lembrança do Quincas Borba...
Escrófula da vida, andrajo do passado, que me importa que existas,
que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dois palmos de um
travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir?

CAPÍTULO LXIII / FUJAMOS!

Ai! Nem sempre dormir. Três semanas depois, indo à casa de Virgília,
— eram quatro horas da tarde, — achei-a triste e abatida. Não me
quis dizer o que era; mas, como eu instasse muito:

— Creio que o Damião desconfia alguma coisa. Noto agora umas
esquisitices nele... Não sei. Trata-me bem, não há dúvida; mas o
olhar parece que não é o mesmo. Durmo mal; ainda esta noite
acordei, aterrada; estava sonhando que ele me ia matar. Talvez seja
ilusão, mas eu penso que ele desconfia...

Tranqüilizei-a como pude; disse que podiam ser cuidados políticos.
Virgília concordou que seriam, mas ficou ainda muito excitada e
nervosa. Estávamos na sala de visitas, que dava justamente para a
chácara, onde trocáramos o beijo inicial. Uma janela aberta deixava
entrar o vento, que sacudia frouxamente as cortinas, e eu fiquei a
olhar para as cortinas, sem as ver. Empunhara o binóculo da
imaginação; lobrigava, ao longe, uma casa nossa, uma vida nossa,
um mundo nosso, em que não havia Lobo Neves, nem casamento,
nem moral, nem nenhum outro liame, que nos tolhesse a expansão
da vontade. Esta idéia embriagou-me; eliminados assim o mundo, a
moral e o marido, bastava penetrar naquela habitação dos anjos.

— Virgília, disse eu, proponho-te uma coisa.

— Que é?

— Amas-me?

— Oh! suspirou ela, cingindo-me os braços ao pescoço.

Virgília amava-me com fúria; aquela resposta era a verdade patente.
Com os braços ao meu pescoço, calada, respirando muito, deixou-se
ficar a olhar para mim, com os seus grandes e belos olhos, que
davam uma sensação singular de luz úmida; eu deixei-me estar a vê-
los, a namorar-lhe a boca, fresca como a madrugada, e insaciável
como a morte. A beleza de Virgília tinha agora um tom grandioso,
que não possuíra antes de casar. Era dessas figuras talhadas em
pentélico, de um lavor nobre, rasgado e puro, tranqüilamente bela,
como as estátuas, mas não apática nem fria. Ao contrário, tinha o
aspecto das naturezas cálidas, e podia-se dizer que, na realidade,
resumia todo o amor. Resumia-o sobretudo naquela ocasião, em que
exprimia mudamente tudo quanto pode dizer a pupila humana. Mas o
tempo urgia; deslacei-lhe as mãos, peguei-lhe nos pulsos, e, fito
nela, perguntei se tinha coragem.

— De quê?

— De fugir. Iremos para onde nos for mais cômodo, uma casa grande
ou pequena, à tua vontade, na roça ou na cidade, ou na Europa,
onde te parecer, onde ninguém nos aborreça, e não haja perigos para
ti, onde vivamos um para o outro... Sim? fujamos. Tarde ou cedo, ele
pode descobrir alguma coisa, e estarás perdida...ouves? perdida...
morta... e ele também, porque eu o matarei, juro-te.

Interrompi-me; Virgília empalidecera muito, deixou cair os braços e
sentou-se no canapé. Esteve assim alguns instantes, sem me dizer
palavra, não sei se vacilante na escolha, se aterrada com a idéia da
descoberta e da morte. Fui-me a ela, insisti na proposta, disse-lhe
todas as vantagens de uma vida a sós, sem zelos, nem terrores, nem
aflições. Virgília ouvia-me calada; depois disse:

— Não escaparíamos talvez; ele iria ter comigo e matava-me do
mesmo modo.

Mostrei-lhe que não. O mundo era assaz vasto, e eu tinha os meios
de viver onde quer que houvesse ar puro e muito sol; ele não
chegaria até lá; só as grandes paixões são capazes de grandes ações,
e ele não a amava tanto que pudesse ir buscá-la, se ela estivesse
longe. Virgília fez um gesto de espanto e quase indignação;
murmurou que o marido gostava muito dela.

— Pode ser, respondi eu; pode ser que sim...

Fui até a janela, e comecei a rufar com os dedos no peitoril. Virgília
chamou-me; deixei-me estar, a remoer os meus zelos, a desejar
estrangular o marido, se o tivesse ali à mão... Justamente, nesse
instante, apareceu na chácara o Lobo Neves. Não tremas assim,
leitora pálida; descansa, que não hei de rubricar esta lauda com um
pingo de sangue. Logo que apareceu na chácara, fiz-lhe um gesto
amigo, acompanhado de uma palavra graciosa; Virgília retirou-se
apressadamente da sala, onde ele entrou daí a três minutos.

— Está cá há muito tempo? disse-me ele.

— Não.

Entrara sério, pesado, derramando os olhos de um modo distraído,
costume seu, que trocou logo por uma verdadeira expansão de
jovialidade, quando viu chegar o filho, o Nhonhô, o futuro bacharel do
capítulo VI; tomou-o nos braços, levantou-o ao ar, beijou-o muitas
vezes. Eu, que tinha ódio ao menino, afastei-me de ambos. Virgília
tornou à sala.

— Ah! respirou Lobo Neves, sentando-se preguiçosamente no sofá.

— Cansado? perguntei eu.

— Muito; aturei duas maçadas de primeira ordem, uma na câmara e
outra na rua. E ainda temos terceira, acrescentou, olhando para a
mulher.

— Que é? perguntou Virgília.

— Um... Adivinha!

Virgília sentara-se ao lado dele, pegou-lhe numa das mãos, compôslhe
a gravata, e tornou a perguntar o que era.

— Nada menos que um camarote.

— Para a Candiani?

— Para a Candiani.

Virgília bateu palmas, levantou-se, deu um beijo no filho, com um ar
de alegria pueril, que destoava muito da figura; depois perguntou se
o camarote era de boca ou do centro, consultou o marido, em voz
baixa, acerca da toilette que faria, da ópera que se cantava, e de não
sei que outras coisas.

— Você janta conosco, doutor, disse-me Lobo Neves.

— Veio para isso mesmo, confirmou a mulher; diz que você possui o
melhor vinho do Rio de Janeiro.

— Nem por isso bebe muito.

Ao jantar, desmenti-o; bebi mais do que costumava; ainda assim,
menos do que era preciso para perder a razão. Já estava excitado,
fiquei um pouco mais. Era a primeira grande cólera que eu sentia
contra Virgília. Não olhei uma só vez para ela durante o jantar; falei
de política, da imprensa, do ministério, creio que falaria de teologia,
se a soubesse, ou se me lembrasse. Lobo Neves acompanhava-me
com muita placidez e dignidade, e até com certa benevolência
superior; e tudo aquilo me irritava também, e me tornava mais
amargo e longo o jantar. Despedi-me apenas nos levantamos da
mesa.

— Até logo, não? perguntou Lobo Neves.

— Pode ser.

E saí.

CAPÍTULO LXIV / A TRANSAÇÃO

Vaguei pelas ruas e recolhi-me às nove horas. Não podendo dormir,
atirei-me a ler e escrever. Às onze horas estava arrependido de não
ter ido ao teatro, consultei o relógio, quis vestir-me, e sair. Julguei,
porém, que chegaria tarde; demais, era dar prova de fraqueza.
Evidentemente, Virgília começava a aborrecer-se de mim, pensava
eu. E esta idéia fez-me sucessivamente desesperado e frio, disposto
a esquecê-la e a matá-la. Via-a dali mesmo, reclinada no camarote,
com os seus magníficos braços nus, — os braços que eram meus, só
meus, — fascinando os olhos de todos, com o vestido soberbo que
havia de ter, o colo de leite, os cabelos postos em bandos, à maneira
do tempo, e os brilhantes, menos luzidios que os olhos dela... Via-a
assim, e doía-me que a vissem outros. Depois, começava a despi-la,
a pôr de lado as jóias e sedas, a despenteá-la com as minhas mãos
sôfregas e lascivas, a torná-la, — não sei se mais bela, se mais
natural, — a torná-la minha, somente minha, unicamente minha.

No dia seguinte, não me pude ter; fui cedo à casa de Virgília; achei-a
com os olhos vermelhos de chorar.

— Que houve? perguntei.

— Você não me ama, foi a sua resposta; nunca me teve a menor
soma de amor. Tratou-me ontem como se me tivesse ódio. Se eu ao
menos soubesse o que é que fiz! Mas não sei. Não me dirá o que foi?

— Que foi o quê? Creio que não houve nada.

— Nada? Tratou-me como não se trata um cachorro...

A esta palavra, peguei-lhe nas mãos, beijei-as, e duas lágrimas
rebentaram-lhe dos olhos.

— Acabou, acabou, disse eu.

Não tive ânimo de argüir, e, aliás, argüi-la de quê? Não era culpa
dela se o marido a amava. Disse-lhe que não me fizera coisa
nenhuma, que eu tinha necessariamente ciúmes do outro, que nem
sempre o podia suportar de cara alegre; acrescentei que talvez
houvesse nele muita dissimulação, e que o melhor meio de fechar a
porta aos sustos e às dissensões era aceitar a minha idéia da
véspera.

— Pensei nisso, acudiu Virgília; uma casinha só nossa, solitária,
metida num jardim, em alguma rua escondida, não é? Acho a idéia
boa; mas para que fugir?

Disse isto com o tom ingênuo e preguiçoso de quem não cuida em
mal, e o sorriso que lhe derreava os cantos da boca trazia a mesma
expressão de candidez. Então, afastando-me, respondi:

— Você é que nunca me teve amor.

— Eu?

— Sim, é uma egoísta! prefere ver-me padecer todos os dias... é uma
egoísta sem nome!

Virgília desatou a chorar, e para não atrair gente, metia o lenço na
boca, recalcava os soluços; explosão que me desconcertou. Se
alguém a ouvisse, perdia-se tudo. Inclinei-me para ela, travei-lhe dos
pulsos, sussurrei-lhe os nomes mais doces da nossa intimidade;
mostrei-lhe o perigo; o terror apaziguou-a.

— Não posso, disse ela daí a alguns instantes; não deixo meu filho;
se o levar, estou certa de que ele me irá buscar ao fim do mundo.
Não posso; mate-me você, se o quiser, ou deixe-me morrer... Ah!
meu Deus! meu Deus!

— Sossegue; olhe que podem ouvi-la.

— Que ouçam! Não me importa.

Estava ainda excitada; pedi-lhe que esquecesse tudo, que me
perdoasse, que eu era um doido, mas que a minha insânia provinha
dela e com ela acabaria. Virgília enxugou os olhos e estendeu-me a
mão. Sorrimos ambos; minutos depois, tornávamos ao assunto da
casinha solitária, em alguma rua escusa...

CAPÍTULO LXV / OLHEIROS E ESCUTAS

Interrompeu-nos o rumor de um carro na chácara. Veio um escravo
dizer que era a baronesa X. Virgília consultou-me com os olhos.

— Se a senhora está assim com dor de cabeça, disse eu, parece que
o melhor é não receber.

— Já se apeou? perguntou Virgília ao escravo.

— Já se apeou; diz que precisa muito de falar com sinhá!

— Que entre!

A baronesa entrou daí a pouco. Não sei se contava comigo na sala;
mas era impossível mostrar maior alvoroço.

— Bons olhos o vejam! exclamou. Onde se mete o senhor que não
aparece em parte nenhuma? Pois olhe, ontem admirou-me não o ver
no teatro. A Candiani esteve deliciosa. Que mulher! Gosta da
Candiani? É natural. Os senhores são todos os mesmos. O barão dizia
ontem, no camarote, que uma só italiana vale por cinco brasileiras.
Que desaforo! e desaforo de velho, que é pior. Mas por que é que o
senhor não foi ontem ao teatro?

— Uma enxaqueca.

— Qual! Algum namoro; não acha, Virgília? Pois, meu amigo,
apresse-se, porque o senhor deve estar com quarenta anos... ou
perto disso. .. Não tem quarenta anos?

— Não lhe posso dizer com certeza, respondi eu; mas se me dá
licença, vou consultar a certidão de batismo.

— Vá, vá... E estendendo-me a mão: — Até quando? Sábado ficamos
em casa; o barão está com umas saudades suas...

Chegando à rua, arrependi-me de ter saído. A baronesa era uma das
pessoas que mais desconfiavam de nós. Cinqüenta e cinco anos, que
pareciam quarenta, macia, risonha, vestígios de beleza, porte
elegante e maneiras finas. Não falava muito nem sempre; possuía a
grande arte de escutar os outros, espiando-os; reclinava-se então na
cadeira, desembainhava um olhar afiado e comprido, e deixava-se
estar. Os outros, não sabendo o que era, falavam, olhavam,
gesticulavam, ao tempo que ela olhava só, ora fixa, ora móbil,
levando a astúcia ao ponto de olhar às vezes para dentro de si,
porque deixava cair as pálpebras; mas, como as pestanas eram
rótulas, o olhar continuava o seu ofício, remexendo a alma e a vida
dos outros.

A segunda pessoa era um parente de Virgília, o Viegas, um cangalho
de setenta invernos, chupado e amarelado, que padecia de um
reumatismo teimoso, de uma asma não menos teimosa e de uma
lesão de coração: era um hospital concentrado. Os olhos, porém
luziam de muita vida e saúde. Virgília, nas primeiras semanas, lhe
tinha medo nenhum; dizia-me que, quando o Viegas parecia
espreitar, com o olhar fixo, estava simplesmente contando dinheiro.
Com efeito, era um grande avaro.

Havia ainda o primo de Virgília, o Luís Dutra, que eu agora
desarmava à força de lhe falar nos versos e prosas, e de o apresentar
aos conhecidos. Quando estes, ligando o nome à pessoa, se
mostravam contentes da apresentação, não há dúvida que Luís Dutra
exultava de felicidade; mas eu curava-me da felicidade com a
esperança de que ele nos não denunciasse nunca. Havia, enfim,
umas duas ou três senhoras, vários gamenhos, e os fâmulos, que
naturalmente se desforravam assim da condição servil, e tudo isso
constituía uma verdadeira floresta de olheiros e escutas, por entre os
quais tínhamos de resvalar com a tática e maciez das cobras.

CAPÍTULO LXVI / AS PERNAS

Ora, enquanto eu pensava naquela gente, iam-me pernas levando,
ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei à porta do Hotel
Pharoux. De costume jantava aí; mas, não tendo deliberadamente
andado, nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às pernas,
que a fizeram. Abençoadas pernas! E há quem vos trate com desdém
ou indiferença. Eu mesmo, até então, tinha-vos em má conta,
zangava-me quando vos fatigáveis, quando não podíeis ir além de
certo ponto, e me deixáveis com o desejo a avoaçar, à semelhança
de galinha atada pelos pés.

Aquele caso, porém, foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, vós
deixastes à minha cabeça o trabalho de pensar em Virgília, e
dissestes uma à outra: — Ele precisa comer, são horas de jantar,
vamos levá-lo ao Pharoux; dividamos a consciência dele, uma parte
fique lá com a dama, tomemos nós a outra, para que ele vá direito,
não abalroe as gentes e as carroças, tire o chapéu aos conhecidos, e
finalmente chegue são e salvo ao hotel. E cumpristes à risca o vosso
propósito, amáveis pernas, o que me obriga a imortalizar-vos nesta
página.

CAPÍTULO LXVII / A CASINHA

Jantei e fui a casa. Lá achei uma caixa de charutos, que me mandara
o Lobo Neves, embrulhada em papel de seda, e ornada de fitinhas
cor-de-rosa. Entendi, abri-a, e tirei este bilhete:

Meu B...

Desconfiam de nós; tudo está perdido; esqueça-me
para sempre. Não nos veremos mais. Adeus; esqueçase
da infeliz

V...a”.

Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri à
casa de Virgília. Era tempo; estava arrependida. Ao vão de uma
janela, contou-me o que se passara com a baronesa. A baronesa
disse-lhe francamente que se falara muito, no teatro, na noite
anterior, a propósito da minha ausência do camarote do Lobo Neves;
tinham comentado as minhas relações na casa; em suma, éramos
objeto da suspeita pública. Concluiu dizendo que não sabia que fazer.

— O melhor é fugirmos, insinuei.

— Nunca, respondeu ela abanando a cabeça.

Vi que era impossível separar duas coisas que no espírito dela
estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração
pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios para
conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe deixava uma. Talvez
senti alguma coisa semelhante a despeito; mas as comoções
daqueles dois dias eram já muitas, e o despeito morreu depressa. Vá
lá; arranjemos a casinha.

Com efeito, achei-a, dias depois, expressamente feita, em um
recanto da Gamboa. Um brinco! Nova, caiada de fresco, com quatro
janelas na frente e duas de cada lado, — todas com venezianas cor
de tijolo, — trepadeira nos cantos, jardim na frente; mistério e
solidão. Um brinco!

Convencionamos que iria morar ali uma mulher, conhecida de
Virgília, em cuja casa fora costureira e agregada. Virgília exercia
sobre ela verdadeira fascinação. Não se lhe diria tudo; ela aceitaria
facilmente o resto.

Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma
aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma coisa que
me faria adormecer a consciência e resguardar o decoro. Já estava
cansado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do canapé,
de todas essas coisas, que me traziam aos olhos constantemente a
nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares freqüentes, o chá
de todas as noites, enfim a presença do filho deles, meu cúmplice e
meu inimigo. A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria à
porta; — dali para dentro era o infinito, um mundo eterno, superior,
excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem
baronesas, sem olheiros, sem escutas, — um só mundo, um só casal,
uma só vida, uma só vontade, uma só afeição, — a unidade moral de
todas as coisas pela exclusão das que me eram contrárias.

CAPÍTULO LXVIII / O VERGALHO

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo
fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um
ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro
não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — “Não,
perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia
caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.

— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!

— Meu senhor! gemia o outro.

— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.

Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada
menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara
alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a
bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

— É, sim, nhonhô.

— Fez-te alguma coisa?

— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na
quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a
quitanda para ir na venda beber.

— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa,
bêbado!

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas
conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que
sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom
capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu
fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só
exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio acheilhe
um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o
Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, —
transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um
freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria.
Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das
pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga
condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ialhe
pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam
as sutilezas do maroto!

CAPÍTULO LXIX / UM GRÃO DE SANDICE

Este caso faz-me lembrar um doido que conheci. Chamava-se
Romualdo e dizia ser Tamerlão. Era a sua grande e única mania, e
tinha uma curiosa maneira de a explicar.

— Eu sou o ilustre Tamerlão, dizia ele. Outrora fui Romualdo, mas
adoeci, e tomei tanto tártaro, tanto tártaro, tanto tártaro, que fiquei
Tártaro, e até rei dos Tártaros. O tártaro tem a virtude de fazer
Tártaros.

Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas é provável que o leitor
não se ria, e com razão; eu não lhe acho graça nenhuma. Ouvida,
tinha algum chiste; mas assim contada, no papel, e a propósito de
um vergalho recebido e transferido, força é confessar que é muito
melhor voltar à casinha da Gamboa; deixemos os Romualdos e
Prudêncios.

CAPÍTULO LXX / D. PLÁCIDA

Voltemos à casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor;
envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o proprietário deitou-a abaixo
para substituí-la por outra, três vezes maior, mas juro-te que muito
menor que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um
desvão de telhado é o infinito para as andorinhas.

Vê agora a neutralidade deste globo, que nos leva, através dos
espaços, como uma lancha de náufragos, que vai dar à costa: dorme
hoje um casal de virtudes no mesmo espaço de chão que sofreu um
casal de pecados. Amanhã pode lá dormir um eclesiástico, depois um
assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos abençoarão
esse canto de Terra, que lhes deu algumas ilusões.

Virgília fez daquilo um brinco; designou as alfaias mais idôneas, e
dispô-las com a intuição estética da mulher elegante; eu levei para lá
alguns livros, e tudo ficou sob a guarda de D. Plácida, suposta, e, a
certos respeitos, verdadeira dona da casa.

Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejara a intenção e doía-lhe o
ofício; mas afinal cedeu. Creio que chorava, a princípio: tinha nojo de
si mesma. Ao menos, é certo que não levantou os olhos para mim
durante os primeiros dois meses; falava-me com eles baixos, séria,
carrancuda, às vezes triste. Eu queria angariá-la, e não me dava por
ofendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a
benevolência, depois a confiança. Quando obtive a confiança,
imaginei uma história patética dos meus amores com Virgília, um
caso anterior ao casamento, a resistência do pai, a dureza do marido,
e não sei que outros toques de novela. D. Plácida não rejeitou uma só
página da novela; aceitou-as todas. Era uma necessidade da
consciência. Ao cabo de seis meses, quem nos visse a todos três
juntos diria que D. Plácida era minha sogra.

Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos, — os cinco contos
achados em Botafogo, — como um pão para a velhice. D. Plácida
agradeceu-me com lágrimas nos olhos, e nunca mais deixou de rezar
por mim, todas as noites, diante de uma imagem da Virgem, que
tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.

CAPÍTULO LXXI / O SENÃO DO LIVRO

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não
tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para
esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas
o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração
cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste
livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda
devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e
fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à
direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram,
gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...

E caem! — Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como
quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia
uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que,
se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar...
Heis de cair.

CAPÍTULO LXXII / O BIBLIÔMANO

Talvez suprima o capítulo anterior; entre outros motivos, há aí, nas
últimas linhas, uma frase muito parecida com despropósito, e eu não
quero dar pasto à crítica do futuro.

Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho,
que não ama nenhuma outra coisa além dos livros, inclina-se sobre a
página anterior, a ver se lhe descobre o despropósito; lê, relê, treslê,
desengonça as palavras, saca uma sílaba, depois outra, mais outra e
as restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos os lados,
contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada; não
acha o despropósito.

É um bibliômano. Não conhece o autor; este nome de Brás Cubas não
vem nos seus dicionários biográficos. Achou o volume, por acaso, no
pardieiro de um alfarrabista. Comprou-o por duzentos réis. Indagou,
pesquisou, esgaravatou, e veio a descobrir que era um exemplar
único... Único! Vós, que não só amais os livros, senão que padeceis a
mania deles, vós sabeis muito bem o valor desta palavra, e
adivinhais, portanto, as delícias de meu bibliômano. Ele rejeitaria a
coroa das Índias, o papado, todos os museus da Itália e da Holanda,
se os houvesse de trocar por esse único exemplar; e não porque seja
o das minhas Memórias; faria a mesma coisa com o Almanaque de
Laemmert, uma vez que fosse único.

O pior é o despropósito. Lá continua o homem inclinado sobre a
página, com uma lente no olho direito, todo entregue à nobre e
áspera função de decifrar o despropósito. Já prometeu a si mesmo
escrever uma breve memória, na qual relate o achado do livro e a
descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquela frase
obscura. Ao cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse.
Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao sol.
Um exemplar único! Nesse momento passa-lhe por baixo da janela
um César ou um Cromwell, a caminho do poder. Ele dá de ombros,
fecha a janela, estira-se na rede e folheia o livro devagar, com amor,
aos goles... Um exemplar único!

CAPÍTULO LXXIII / O “LUNCHEON”

O despropósito fez-me perder outro capítulo. Que melhor não era
dizer as coisas lisamente, sem todos estes solavancos! Já comparei o
meu estilo ao andar dos ébrios. Se a idéia vos parece indecorosa,
direi que ele é o que eram as minhas refeições com Virgília, na
casinha da Gamboa, onde às vezes fazíamos a nossa patuscada, o
nosso luncheon. Vinho, fruta, compotas. Comíamos, é verdade, mas
era um comer virgulado de palavrinhas doces, de olhares ternos, de
criancices, uma infinidade desses apartes do coração, aliás o
verdadeiro, o ininterrupto discurso do amor. Às vezes vinha o arrufo
temperar o nímio adocicado da situação. Ela deixava-me, refugiavase
num canto do canapé, ou ia para o interior ouvir as denguices de
Dona Plácida. Cinco ou dez minutos depois, reatávamos a palestra,
como eu reato a narração, para desatá-la outra vez. Note-se que,
longe de termos horror ao método, era nosso costume convidá-lo, na
pessoa de D. Plácida, a sentar-se conosco à mesa; mas D. Plácida
não aceitava nunca.

— Você parece que não gosta mais de mim, disse-lhe um dia Virgília.

— Virgem Nossa Senhora! exclamou a boa dama alçando as mãos
para o teto. Não gosto de Iaiá! Mas então de quem é que eu gostaria
neste mundo?

E, pegando-lhe nas mãos, olhou-a fixamente, fixamente, fixamente,
até molharem-se-lhe os olhos, de tão fixo que era. Virgília acariciou-a
muito; eu deixei-lhe uma pratinha na algibeira do vestido.

CAPÍTULO LXXIV / HISTÓRIA DE D. PLÁCIDA

Não te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma
confidência de D. Plácida, e conseguintemente este capítulo. Dias
depois, como eu a achasse só em casa, travamos palestra, e ela
contou-me em breves termos a sua história. Era filha natural de um
sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora. Perdeu o
pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei que outros
trabalhos de doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou
dezesseis casou com um alfaiate, que morreu tísico algum tempo
depois, deixando-lhe uma filha. Viúva e moça, ficaram a seu cargo a
filha, com dois anos, e a mãe, cansada de trabalhar. Tinha de
sustentar a três pessoas. Fazia doces, que era o seu ofício, mas cosia
também, de dia e de noite, com afinco, para três ou quatro lojas, e
ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mês. Com isto
iam-se passando os anos, não a beleza, porque não a tivera nunca.
Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a que resistia.

— Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ela, creia que me
teria casado; mas ninguém queria casar comigo.

Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém,
mais delicado que os outros, D. Plácida despediu-o do mesmo modo,
e, depois de o despedir, chorou muito. Continuou a coser para fora e
a escumar os tachos. A mãe tinha a rabugem do temperamento, dos
anos e da necessidade; mortificava a filha para que tomasse um dos
maridos de empréstimo e de ocasião que lha pediam. E bradava:

— Queres ser melhor do que eu? Não sei donde te vêm essas fidúcias
de pessoa rica. Minha camarada, a vida não se arranja à toa; não se
come vento. Ora esta! Moços tão bons como o Policarpo da venda,
coitado... Esperas algum fidalgo, não é?

D. Plácida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum. Era gênio.
Queria ser casada. Sabia muito bem que a mãe o não fora, e
conhecia algumas que tinham só o seu moço delas; mas era gênio e
queria ser casada. Não queria também que a filha fosse outra coisa.
Trabalhava muito, queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao
candeeiro, para comer e não cair. Emagreceu, adoeceu, perdeu a
mãe, enterrou-a por subscrição, e continuou a trabalhar. A filha
estava com quatorze anos; mas era muito fraquinha, e não fazia
nada, a não ser namorar os capadócios que lhe rondavam a rótula. D.
Plácida vivia com imensos cuidados, levando-a consigo, quando tinha
de ir entregar costuras. A gente das lojas arregalava e piscava os
olhos, convencida de que ela a levava para colher marido ou outra
coisa. Alguns diziam graçolas, faziam cumprimentos; a mãe chegou a
receber propostas de dinheiro...

Interrompeu-se um instante, e continuou logo:

— Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber...
Deixou-me só, mas tão triste, tão triste, que pensei morrer. Não
tinha ninguém mais no mundo e estava quase velha e doente. Foi por
esse tempo que conheci a família de Iaiá; boa gente, que me deu que
fazer, e até chegou a me dar casa. Estive lá muitos meses, um ano,
mais de um ano, agregada, costurando. Saí quando Iaiá casou.
Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas
mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos
dedos picadas da agulha. — Não se cria isto à toa, meu senhor; Deus
sabe como é que isto se cria... Felizmente, Iaiá me protegeu, e o
senhor doutor também... Eu tinha um medo de acabar na rua,
pedindo esmola...

Ao soltar a última frase, D. Plácida teve um calafrio. Depois, como se
tornasse a si, pareceu atentar na inconveniência daquela confissão ao
amante de uma mulher casada, e começou a rir, a desdizer-se, a
chamar-se tola, “cheia de fidúcias”, como lhe dizia a mãe; enfim,
cansada do meu silêncio, retirou-se da sala. Eu fiquei a olhar para a
ponta do botim.

CAPÍTULO LXXV / COMIGO

Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o
capítulo anterior, observo que é preciso lê-lo para entender o que eu
disse comigo, logo depois que D. Plácida saiu da sala. O que eu disse
foi isto:

— Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu
entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de D. Plácida.
Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe
alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de
festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção
de luxúrias vadias brotou D. Plácida. É de crer que D. Plácida não
falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores
de seus dias: — Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e
a sacristã naturalmente lhe responderiam. — Chamamos-te para
queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não
comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando,
com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo
desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho
e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi
para isso que te chamamos, num momento de simpatia.

CAPÍTULO LXXVI / O ESTRUME

Súbito deu-me a consciência um repelão, acusou-me de ter feito
capitular a probidade de D. Plácida, obrigando-a a um papel torpe,
depois de uma longa vida de trabalho e privações. Medianeira não era
melhor que concubina, e eu tinha-a baixado a esse ofício, à custa de
obséquios e dinheiros. Foi o que me disse a consciência; fiquei uns
dez minutos sem saber que lhe replicasse. Ela acrescentou que eu me
aproveitara da fascinação exercida por Virgília sobre a ex-costureira,
da gratidão desta, enfim da necessidade. Notou a resistência de D.
Plácida, as lágrimas dos primeiros dias, as caras feias, os silêncios, os
olhos baixos, e a minha arte em suportar tudo isso, até vencê-la. E
repuxou-me outra vez de um modo irritado e nervoso.

Concordei que assim era, mas aleguei que a velhice de D. Plácida
estava agora ao abrigo da mendicidade: era uma compensação. Se
não fossem os meus amores, provavelmente D. Plácida acabaria
como tantas outras criaturas humanas; donde se poderia deduzir que
o vício é muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a
virtude seja uma flor cheirosa e sã. A consciência concordou, e eu fui
abrir a porta a Virgília.

CAPÍTULO LXXVII / ENTREVISTA

Virgília entrou risonha e sossegada. Os tempos tinham levado os
sustos e vexames. Que doce que era vê-la chegar, nos primeiros
dias, envergonhada e trêmula! Ia de sege, velado o rosto, envolvida
numa espécie de mantéu, que lhe disfarçava as ondulações do talhe.
Da primeira vez deixou-se cair no canapé, ofegante, escarlate, com
os olhos no chão; e, palavra! em nenhuma outra ocasião a achei tão
bela, talvez porque nunca me senti mais lisonjeado.

Agora, porém, como eu dizia, tinham acabado os sustos e vexames;
as entrevistas entravam no período cronométrico. A intensidade do
amor era a mesma; a diferença é que a chama perdera o tresloucado
dos primeiros dias para constituir-se um simples feixe de raios,
tranqüilo e constante, como nos casamentos.

— Estou muito zangada com você, disse ela sentando-se.

— Por quê?

— Por que não foi lá ontem, como me tinha dito. O Damião
perguntou muitas vezes se você não iria, ao menos, tomar chá. Por
que é que não foi?

Com efeito, eu havia faltado à palavra que dera, e a culpa era toda
de Virgília. Questão de ciúmes. Essa mulher esplêndida sabia que o
era, e gostava de o ouvir dizer, fosse em voz alta ou baixa. Na
antevéspera, em casa da baronesa, valsara duas vezes com o mesmo
peralta, depois de lhe escutar as cortesanices, ao canto de uma
janela. Estava tão alegre! tão derramada! tão cheia de si! Quando
descobriu, entre as minhas sobrancelhas, a ruga interrogativa e
ameaçadora, não teve nenhum sobressalto, nem ficou subitamente
séria; mas deitou ao mar o peralta e as cortesanices. Veio depois a
mim, tomou-me o braço, e levou-me a outra sala, menos povoada,
onde se me queixou de cansaço, e disse muitas outras coisas, com o
ar pueril que costumava ter, em certas ocasiões, e eu ouvi-a quase
sem responder nada.

Agora mesmo, custava-me responder alguma coisa, mas enfim
contei-lhe o motivo da minha ausência... Não, eternas estrelas,
nunca vi olhos mais pasmados. A boca semi-aberta, as sobrancelhas
arqueadas, uma estupefação visível, tangível, que se não podia
negar, tal foi a primeira réplica de Virgília; abanou a cabeça com um
sorriso de piedade e ternura, que inteiramente me confundiu.

— Ora, você!

E foi tirar o chapéu, lépida, jovial como a menina que torna do
colégio; depois veio a mim, que estava sentado, deu-me pancadinha
na testa, com um só dedo, a repetir: — Isto, isto; — e eu não tive
remédio senão rir também, e tudo acabou em galhofa. Era claro que
me enganara.

CAPÍTULO LXXVIII / A PRESIDÊNCIA

Certo dia, meses depois, entrou Lobo Neves em casa, dizendo que
iria talvez ocupar uma presidência de província. Olhei para Virgília,
que empalideceu; ele, que a viu empalidecer, perguntou-lhe:

— A modo que não gostaste, Virgília?

Virgília abanou a cabeça.

— Não me agrada muito, foi a sua resposta.

Não se disse mais nada; mas de noite Lobo Neves insistiu no projeto
um pouco mais resolutamente do que de tarde; dois dias depois
declarou à mulher que a presidência era coisa definitiva. Virgília não
pôde dissimular a repugnância que isto lhe causava. O marido
respondia a tudo com as necessidades políticas.

— Não posso recusar o que me pedem; é até conveniência nossa, do
nosso futuro, dos teus brasões, meu amor, porque eu prometi que
serias marquesa, e nem baronesa estás. Dirás que sou ambicioso?
Sou-o deveras, mas é preciso que me não ponhas um peso nas asas
da ambição.

Virgília ficou desorientada. No dia seguinte achei-a triste, na casa da
Gamboa, à minha espera; tinha dito tudo a D. Plácida, que buscava
consolá-la como podia. Não fiquei menos abatido.

— Você há de ir conosco, disse-me Virgília.

— Está doida? Seria uma insensatez.

— Mas então...?

— Então, é preciso desfazer o projeto.

— É impossível.

— Já aceitou?

— Parece que sim.

Levantei-me, atirei o chapéu a uma cadeira, e entrei a passear de um
lado para outro, sem saber o que faria. Cogitei largamente, e não
achei nada. Enfim, cheguei-me a Virgília, que estava sentada, e
travei-lhe da mão; D. Plácida foi à janela.

— Nesta pequenina mão está toda a minha existência, disse eu; você
é responsável por ela; faça o que lhe parecer.

Virgília teve um gesto aflitivo; eu fui encostar-me ao consolo
fronteiro. Decorreram alguns instantes de silêncio; ouvíamos
somente o latir de um cão, e não sei se o rumor da água, que morria
na praia. Vendo que não falava, olhei para ela. Virgília tinha os olhos
no chão, parados, sem luz, as mãos deixadas sobre os joelhos, com
os dedos cruzados, na atitude da suprema desesperança. Noutra
ocasião, por diferente motivo, é certo que eu me lançaria aos pés
dela, e a ampararia com a minha razão e a minha ternura; agora,
porém, era preciso compeli-la ao esforço de si mesma, ao sacrifício, à
responsabilidade da nossa vida comum, e conseguintemente
desampará-la, deixá-la, e sair; foi o que fiz.

— Repito, a minha felicidade está nas tuas mãos, disse eu.

Virgília quis agarrar-me, mas eu já estava fora da porta. Cheguei a
ouvir um prorromper de lágrimas, e digo-lhes que estive a ponto de
voltar, para as enxugar com um beijo; mas subjuguei-me e saí.

CAPÍTULO LXXIX / COMPROMISSO

Não acabaria se houvesse de contar pelo miúdo o que padeci nas
primeiras horas. Vacilava entre um querer e um não querer, entre a
piedade que me empuxava à casa de Virgília e outro sentimento, —
egoísmo, supunhamos, — que me dizia: — Fica; deixa-a a sós com o
problema, deixa-a que ela o resolverá no sentido do amor. Creio que
essas duas forças tinham igual intensidade, investiam e resistiam ao
mesmo tempo, com ardor, com tenacidade, e nenhuma cedia
definitivamente. Às vezes sentia um dentezinho de remorso; pareciame
que abusava da fraqueza de uma mulher amante e culpada, sem
nada sacrificar nem arriscar de mim próprio; e, quando ia a capitular,
vinha outra vez o amor, e me repetia o conselho egoísta, e eu ficava
irresoluto e inquieto, desejoso de a ver, e receoso de que a vista me
levasse a compartir a responsabilidade da solução.

Por fim interveio um compromisso entre o egoísmo e a piedade; eu
iria vê-la em casa, e só em casa, em presença do marido, para lhe
não dizer nada, à véspera do efeito da minha intimação. Deste modo
poderia conciliar as duas forças. Agora, que isto escrevo, quer-me
parecer que o compromisso era uma burla, que essa piedade era
ainda uma forma de egoísmo, e que a resolução de ir consolar Virgília
não passava de uma sugestão de meu próprio padecimento.

CAPÍTULO LXXX / DE SECRETÁRIO

Na noite seguinte fui efetivamente à casa do Lobo Neves; estavam
ambos, Virgília muito triste, ele muito jovial. Juro que ela sentiu certo
alívio, quando os nossos olhos se encontraram, cheios de curiosidade
e ternura. Lobo Neves contou-me os planos que levava para a
presidência, as dificuldades locais, as esperanças, as resoluções;
estava tão contente! tão esperançado! Virgília, ao pé da mesa, fingia
ler um livro, mas por cima da página olhava-me de quando em
quando, interrogativa e ansiosa.

— O pior, disse-me de repente o Lobo Neves, é que ainda não achei
secretário.

— Não?

— Não, e tenho uma idéia.

— Ah!

— Uma idéia... Quer você dar um passeio ao Norte?

Não sei o que lhe disse.

— Você é rico, continuou ele, não precisa de um magro ordenado;
mas se quisesse obsequiar-me, ia de secretário comigo.

Meu espírito deu um salto para trás, como se descobrisse uma
serpente diante de si. Encarei o Lobo Neves, fixamente,
imperiosamente a ver se lhe apanhava algum pensamento oculto...
Nem sombra disso; o olhar vinha direito e franco, a placidez do rosto
era natural, não violenta, uma placidez salpicada de alegria. Respirei,
e não tive ânimo de olhar para Virgília; senti por cima da página o
olhar dela, que me pedia também a mesma coisa, e disse que sim,
que iria. Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário,
era resolver as coisas de um modo administrativo.

CAPÍTULO LXXXI / A RECONCILIAÇÃO

Contudo, ao sair de lá, tive umas sombras de dúvida; cogitei se não
ia expor insanamente a reputação de Virgília, se não haveria outro
meio razoável de combinar o Estado e a Gamboa. Não achei nada. No
dia seguinte, ao levantar-me da cama, trazia o espírito feito e
resoluto a aceitar a nomeação. Ao meio-dia, veio o criado dizer-me
que estava na sala uma senhora, coberta com um véu. Corro; era
minha irmã Sabina.

— Isto não pode continuar assim, disse ela; é preciso que, de uma
vez por todas, façamos as pazes. Nossa família está acabando; não
havemos de ficar como dois inimigos.

— Mas se eu não te peço outra coisa, mana! bradei estendendo-lhe
os braços.

Sentei-a ao pé de mim, falei-lhe do marido, da filha, dos negócios, de
tudo. Tudo ia bem; a filha estava linda como os amores. O marido
viria mostrar-ma, se eu consentisse.

— Ora essa! irei eu mesmo vê-la.

— Sim?

— Palavra.

— Tanto melhor! respirou Sabina. É tempo de acabar com isto.

Achei-a mais gorda, e talvez mais moça. Parecia ter vinte anos, e
contava mais de trinta. Graciosa, afável, nenhum acanhamento,
nenhum ressentimento. Olhávamos um para o outro, com as mãos
seguras, falando de tudo e de nada, como dois namorados. Era
minha infância que ressurgia, fresca, travessa e loura; os anos iam
caindo como as fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que eu
brincava em pequeno, e deixavam-me ver a nossa casa, a nossa
família, as nossas festas. Suportei a recordação com algum esforço;
mas um barbeiro da vizinhança lembrou-se de zangarrear na clássica
rabeca, e essa voz — porque até então a recordação era muda —
essa voz do passado, fanhosa e saudosa, a tal ponto me comoveu,
que...

Os olhos dela estavam secos. Sabina não herdara a flor amarela e
mórbida. Que importa? Era minha irmã, meu sangue, um pedaço de
minha mãe, e eu disse-lho com ternura, com sinceridade... Súbito,
ouço bater à porta da sala; vou abrir; era um anjinho de cinco anos.

— Entra, Sara, disse Sabina.

Era minha sobrinha. Apanhei-a do chão, beijei-a muitas vezes; a
pequena, espantada, empurrava-me o ombro com a mãozinha,
quebrando o corpo para descer... Nisto, aparece-me à porta um
chapéu, e logo um homem, o Cotrim, nada menos que o Cotrim. Eu
estava tão comovido, que deixei a filha e lancei-me aos braços do
pai. Talvez essa efusão o desconcertou um pouco; é certo que me
pareceu acanhado. Simples prólogo. Daí a pouco falávamos como
bons amigos velhos. Nenhuma alusão ao passado, muitos planos de
futuro, promessa de jantarmos em casa um do outro. Não deixei de
dizer que essa troca de jantares podia ser que tivesse uma curta
interrupção, porque eu andava com idéias de uma viagem ao Norte.
Sabina olhou para o Cotrim, o Cotrim para Sabina; ambos
concordaram que essas idéias não tinham senso comum. Que diacho
podia eu achar no Norte? Pois não era na corte, em plena corte, que
devia continuar a luzir, a meter num chinelo os rapazes do tempo?
Que, na verdade, nenhum havia que se me comparasse; ele, Cotrim,
acompanhava-me de longe, e, não obstante uma briga ridícula, teve
sempre interesse, orgulho, vaidade nos meus triunfos. Ouvia o que
se dizia a meu respeito, nas ruas e nas salas; era um concerto de
louvores e admirações. E deixa-se isso para ir passar alguns meses
na província, sem necessidade, sem motivo sério? A menos que não
fosse política...

— Justamente política, disse eu.

— Nem assim, replicou ele daí a um instante. — E depois de outro
silêncio: — Seja como for, venha jantar hoje conosco.

— Certamente que vou; mas, amanhã ou depois, hão de vir jantar
comigo.

— Não sei, não sei, objetou Sabina; casa de homem solteiro... Você
precisa casar, mano. Também eu quero uma sobrinha, ouviu?

Cotrim reprimiu-a com um gesto, que não entendi bem. Não importa;
a reconciliação de uma família vale bem um gesto enigmático.

CAPÍTULO LXXXII / QUESTÃO DE BOTÂNICA

Digam o que quiserem dizer os hipocondríacos: a vida é uma coisa
doce. Foi o que eu pensei comigo, ao ver Sabina, o marido e a filha
descerem de tropel as escadas, dizendo muitas palavras afetuosas
para cima, onde eu ficava — no patamar, — a dizer-lhes outras
tantas para baixo. Continuei a pensar que, na verdade, era feliz.
Amava-me uma mulher, tinha a confiança do marido, ia por
secretário de ambos, reconciliava-me com os meus. Que podia
desejar mais, em vinte e quatro horas?

Nesse mesmo dia, tratando de aparelhar os ânimos, comecei a
espalhar que talvez fosse para o Norte como secretário de província,
a fim de realizar certos desígnios políticos, que me eram pessoais.
Disse-o na Rua do Ouvidor, repeti-o no dia seguinte, no Pharoux e no
teatro. Alguns, ligando a minha nomeação à do Lobo Neves, que já
andava em boatos, sorriam maliciosamente, outros batiam-me no
ombro. No teatro disse-me uma senhora que era levar muito longe o
amor da escultura. Referia-se às belas formas de Virgília.

Mas a alusão mais rasgada que me fizeram foi em casa de Sabina,
três dias depois. Fê-la um certo Garcez, velho cirurgião, pequenino,
trivial e grulha, que podia chegar aos setenta, aos oitenta, aos
noventa anos, sem adquirir jamais aquela compostura austera, que é
a gentileza do ancião. A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e
derradeira surpresa da natureza humana.

— Já sei, desta vez vai ler Cícero, disse-me ele, ao saber da viagem.

— Cícero! exclamou Sabina.

— Pois então? Seu mano é um grande latinista. Traduz Virgílio de
relance. Olhe que é Virgílio, e não Virgília... não confunda...

E ria, de um riso grosso, rasteiro e frívolo. Sabina olhou para mim,
receosa de alguma réplica; mas sorriu, quando me viu sorrir, e voltou
o rosto para disfarçá-lo. As outras pessoas olhavam-me com um ar
de curiosidade, indulgência e simpatia; era transparente que não
acabavam de ouvir nenhuma novidade. O caso dos meus amores
andava mais público do que eu podia supor. Entretanto sorri, um
sorriso curto, fugitivo e guloso, — palreiro como as pegas de Sintra.
Virgília era um belo erro, e é tão fácil confessar um belo erro!
Costumava ficar carrancudo, a princípio, quando ouvia alguma alusão
aos nossos amores; mas, palavra de honra! sentia cá dentro uma
impressão suave e lisonjeira. Uma vez, porém, aconteceu-me sorrir,
e continuei a fazê-lo das outras vezes. Não sei se há aí alguém que
explique o fenômeno. Eu explico-o assim: a princípio, o
contentamento, sendo interior, era por assim dizer o mesmo sorriso,
mas abotoado; andando o tempo, desabotoou-se em flor, e apareceu
aos olhos do próximo. Simples questão de botânica.

CAPÍTULO LXXXIII / 13

Cotrim tirou-me daquele gozo, levando-me à janela. — Você quer
que lhe diga uma coisa? perguntou ele; — não faça essa viagem; é
insensata, é perigosa.

— Por quê?

— Você bem sabe por que, tornou ele: é, sobretudo, perigosa, muito
perigosa. Aqui na corte, um caso desses perde-se na multidão da
gente e dos interesses; mas na província muda de figura; e tratandose
de personagens políticos, é realmente insensatez. As gazetas de
oposição, logo que farejarem o negócio, passam a imprimi-lo com
todas as letras, e aí virão as chufas, os remoques, as alcunhas...

— Mas não entendo...

— Entende, entende. Em verdade, seria bem pouco amigo nosso, se
me negasse o que toda a gente sabe. Eu sei disso há longos meses.
Repito, não faça semelhante viagem; suporte a ausência, que é
melhor, e evite algum grande escândalo e maior desgosto...

Disse isto, e foi para dentro. Eu deixei-me estar com os olhos no
lampião da esquina, — um antigo lampião de azeite, — triste,
obscuro e recurvado, como um ponto de interrogação. Que me
cumpria fazer? Era o caso de Hamlet: ou dobrar-me à fortuna, ou
lutar com ela e subjugá-la. Por outros termos: embarcar ou não
embarcar. Esta era a questão. O lampião não me dizia nada. As
palavras do Cotrim ressoavam-me aos ouvidos da memória, de um
modo muito diverso do das palavras do Garcez. Talvez Cotrim tivesse
razão; mas podia eu separar-me de Virgília?

Sabina veio ter comigo, e perguntou-me em que estava pensando.
Respondi que em coisa nenhuma, que tinha sono e ia para casa.
Sabina esteve um instante calada. — O que você precisa, sei eu; é
uma noiva. Deixe, que eu ainda arranjo uma noiva para você. Saí de
lá opresso, desorientado. Tudo pronto para embarcar, — espírito e
coração, — e eis aí me surge esse porteiro das conveniências, que
me pede o cartão de ingresso. Dei ao diabo as conveniências, e com
elas a constituição, o corpo legislativo, o ministério, tudo.

No dia seguinte, abro uma folha política e leio a notícia de que, por
decretos de 13, tínhamos sido nomeados presidente e secretário da
província de *** o Lobo Neves e eu. Escrevi imediatamente a Virgília,
e segui duas horas depois para a Gamboa. Coitada de D. Plácida!
Estava cada vez mais aflita; perguntou-me se esqueceríamos a nossa
velha, se a ausência era grande e se a província ficava longe.
Consolei-a; mas eu próprio precisava de consolações; a objeção de
Cotrim afligia-me. Virgília chegou daí a pouco, lépida como uma
andorinha; mas, ao ver-me triste, ficou muito séria.

— Que aconteceu?

— Vacilo, disse eu; não sei se devo aceitar...

Virgília deixou-se cair, no canapé, a rir. — Por quê? disse ela.

— Não é conveniente, dá muito na vista...

— Mas nós não já vamos.

— Como assim?

Contou-me que o marido ia recusar a nomeação, e por motivo que só
lhe disse, a ela, pedindo-lhe o maior segredo; não podia confessá-lo
a ninguém mais. — É pueril, observou ele, é ridículo; mas em suma,
é um motivo poderoso para mim. Referiu-lhe que o decreto trazia a
data de 13, e que esse número significava para ele uma recordação
fúnebre. O pai morreu num dia 13, treze dias depois de um jantar em
que havia treze pessoas. A casa em que morrera a mãe tinha o n.°
13. Et coetera. Era um algarismo fatídico. Não podia alegar
semelhante coisa ao ministro; dir-lhe-ia que tinha razões particulares
para não aceitar. Eu fiquei como há de estar o leitor, — um pouco
assombrado com esse sacrifício a um número; mas, sendo ele
ambicioso, o sacrifício devia ser sincero...

CAPÍTULO LXXXIV / O CONFLITO

Número fatídico, lembras-te que te abençoei muitas vezes? Assim
também as virgens ruivas de Tebas deviam abençoar a égua, de
ruiva crina, que as substituiu no sacrifício de Pelópidas, — uma
donosa égua, que lá morreu, coberta de flores, sem que ninguém lhe
desse nunca uma palavra de saudade. Pois dou-ta eu, égua piedosa,
não só pela morte havida, como porque, entre as donzelas escapas,
não é impossível que figurasse uma avó dos Cubas... Número
fatídico, tu foste a nossa salvação. Não me confessou o marido a
causa da recusa; disse-me também que eram negócios particulares,
e o rosto sério, convencido, com que eu o escutei, fez honra à
dissimulação humana. Ele é que mal podia encobrir a tristeza
profunda que o minava; falava pouco, absorvia-se, metia-se em casa,
a ler. Outras vezes recebia, e então conversava e ria muito, com
estrépito e afetação. Oprimiam-no duas coisas, — a ambição, que um
escrúpulo desasara, e logo depois a dúvida, e talvez o
arrependimento, — mas um arrependimento, que viria outra vez, se
repetisse a hipótese, porque o fundo supersticioso existia. Duvidava
da superstição, sem chegar a rejeitá-la. Essa persistência de um
sentimento, que repugna ao mesmo indivíduo, era um fenômeno
digno de alguma atenção. Mas eu preferia a pura ingenuidade de D.
Plácida, quando confessava não poder ver um sapato voltado para o
ar.

— Que tem isso? perguntava-lhe eu.

— Faz mal, era a sua resposta.

Isto somente, esta única resposta, que valia para ela o livro dos sete
selos. Faz mal. Disseram-lhe isso em criança, sem outra explicação, e
ela contentava-se com a certeza do mal. Já não acontecia mesma
coisa quando se falava de apontar uma estrela com o dedo; aí sabia
perfeitamente que era caso de criar uma verruga.

Ou verruga ou outra coisa, que valia isso, para quem não perde uma
presidência de província? Tolera-se uma superstição gratuita ou
barata; é insuportável a que leva uma parte da vida. Este era o caso
do Lobo Neves com o acréscimo da dúvida e do terror de haver sido
ridículo. E mais este outro acréscimo, que o ministro não acreditou
nos motivos particulares; atribuiu a recusa do Lobo Neves a manejos
políticos, ilusão complicada de algumas aparências; tratou-o mal,
comunicou a desconfiança aos colegas; sobrevieram incidentes;
enfim, com o tempo, o presidente resignatário foi para a oposição.

CAPÍTULO LXXXV / O CIMO DA MONTANHA

Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade. Entrei a
amar Virgília com muito mais ardor, depois que estive a pique de a
perder, e a mesma coisa lhe aconteceu a ela. Assim, a presidência
não fez mais do que avivar a afeição primitiva; foi a droga com que
tornamos mais saboroso o nosso amor, e mais prezado também. Nos
primeiros dias, depois daquele incidente, folgávamos de imaginar a
dor da separação, se houvesse separação, a tristeza de um e de
outro, à proporção que o mar, como uma toalha elástica, se fosse
dilatando entre nós; e, semelhantes às crianças, que se achegam ao
regaço das mães, para fugir a uma simples careta, fugíamos do
suposto perigo, apertando-nos com abraços.

— Minha boa Virgília!

— Meu amor!

— Tu és minha, não?

— Tua, tua...

E assim reatamos o fio da aventura como a sultana Scheherazade o
dos seus contos. Esse foi, cuido eu, o ponto máximo do nosso amor,
o cimo da montanha, donde por algum tempo divisamos os vale de
leste e de oeste, e por cima de nós o céu tranqüilo e azul. Repousado
esse tempo, começamos a descer a encosta, com as mãos presas ou
soltas, mas a descer, a descer...

CAPÍTULO LXXXVI / O MISTÉRIO

Serra abaixo, como eu a visse um pouco diferente, não sei se abatida
ou outra coisa, perguntei-lhe o que tinha; calou-se, fez um gesto de
enfado, de mal-estar, de fadiga; ateimei, ela disse-me que... Um
fluido sutil percorreu todo o meu corpo: sensação forte, rápida,
singular, que eu não chegarei jamais a fixar no papel. Travei-lhe das
mãos, puxei-a levemente a mim, e beijei-a na testa, com uma
delicadeza de zéfiro e uma gravidade de Abraão. Ela estremeceu,
colheu-me a cabeça entre as palmas, fitou-me os olhos, depois
afagou-me com um gesto maternal... Eis aí um mistério; deixemos
ao leitor o tempo de decifrar este mistério.

CAPÍTULO LXXXVII / GEOLOGIA

Sucedeu por esse tempo um desastre; a morte do Viegas. O Viegas
passou aí de relance, com os seus setenta anos, abafados de asma,
desconjuntados de reumatismo, e uma lesão de coração por quebra.
Foi um dos finos espreitadores da nossa aventura. Virgília nutria
grandes esperanças em que esse velho parente, avaro como um
sepulcro, lhe amparasse o futuro do filho, com algum legado; e, se o
marido tinha iguais pensamentos, encobria-os ou estrangulava-os.
Tudo se deve dizer: havia no Lobo Neves certa dignidade
fundamental, uma camada de rocha, que resistia ao comércio dos
homens. As outras, as camadas de cima, terra solta e areia, levoulhas
a vida, que é um enxurro perpétuo. Se o leitor ainda se lembra
do capítulo XXIII, observará que é agora a segunda vez que eu
comparo a vida a um enxurro; mas também há de reparar que desta
vez acrescento-lhe um adjetivo — perpétuo. E Deus sabe a força de
um adjetivo, principalmente em países novos e cálidos.

O que é novo neste livro é a geologia moral do Lobo Neves, e
provavelmente a do cavalheiro, que me está lendo. Sim, essas
camadas de caráter, que a vida altera, conserva ou dissolve,
conforme a resistência delas, essas camadas mereceriam um
capítulo, que eu não escrevo, por não alongar a narração. Digo
apenas que o homem mais probo que conheci em minha vida foi um
certo Jacó Medeiros ou Jacó Valadares, não me recorda bem o nome.
Talvez fosse Jacó Rodrigues; em suma, Jacó. Era a probidade em
pessoa; podia ser rico, violentando um pequenino escrúpulo, e não
quis; deixou ir pelas mãos fora nada menos de uns quatrocentos
contos; tinha a probidade tão exemplar, que chegava a ser miúda e
cansativa. Um dia, como nos achássemos, a sós, em casa dele, em
boa palestra, vieram dizer que o procurava o Dr. B., um sujeito
enfadonho. Jacó mandou dizer que não estava em casa.

— Não pega, bradou uma voz do corredor; cá estou de dentro.

E, com efeito, era o Dr. B., que apareceu logo à porta da sala. Jacó
foi recebê-lo, afirmando que cuidava ser outra pessoa, e não ele, e
acrescentando que tinha muito prazer com a visita, o que nos rendeu
hora e meia de enfado mortal, e isto mesmo, porque Jacó tirou o
relógio; o Dr. B. perguntou-lhe então se ia sair.

— Com minha mulher, disse Jacó.

Retirou-se o Dr. B. e respiramos. Uma vez respirados, disse eu ao
Jacó que ele acabava de mentir quatro vezes, em menos de duas
horas: a primeira, negando-se, a segunda, alegrando-se com a
presença do importuno; a terceira, dizendo que ia sair; a quarta,
acrescentando que com a mulher. Jacó refletiu um instante, depois
confessou a justeza da minha observação, mas desculpou-se dizendo
que a veracidade absoluta era incompatível com um estado social
adiantado, e que a paz das cidades só se podia obter à custa de
embaçadelas recíprocas... Ah! lembra-me agora: chamava-se Jacó
Tavares.

CAPÍTULO LXXXVIII / O ENFERMO

Não é preciso dizer que refutei tão perniciosa doutrina, com os mais
elementares argumentos; mas ele estava tão vexado do meu reparo,
que resistiu até o fim, mostrando certo calor fictício, talvez para
atordoar a consciência.

O caso de Virgília tinha alguma gravidade mais. Ela era menos
escrupulosa que o marido: manifestava claramente as esperanças
que trazia no legado, cumulava o parente de todas as cortesias,
atenções e afagos que poderiam render, pelo menos, um codicilo.
Propriamente, adulava-o; mas eu observei que a adulação das
mulheres não é a mesma coisa que a dos homens. Esta orça pela
servilidade; a outra confunde-se com a afeição. As formas
graciosamente curvas, a palavra doce, a mesma fraqueza física dão à
ação lisonjeira da mulher, uma cor local, um aspecto legítimo. Não
importa a idade do adulado; a mulher há de ter sempre para ele uns
ares de mãe ou de irmã, — ou ainda de enfermeira, outro ofício
feminil, em que o mais hábil dos homens carecerá sempre de um
quid, um fluido, alguma coisa.

Era o que eu pensava comigo, quando Virgília se desfazia toda em
afagos ao velho parente. Ela ia recebê-lo à porta, falando e rindo,
tirava-lhe o chapéu e a bengala, dava-lhe o braço e levava-o a uma
cadeira, ou à cadeira, porque havia lá em casa a “cadeira do Viegas”,
obra especial, conchegada, feita para gente enferma ou anciã. Ia
fechar a janela próxima, se havia alguma brisa, ou abri-la, se estava
calor, mas com cuidado, combinando de modo que lhe não desse um
golpe de ar.

— Então? Hoje está mais fortezinho...

— Qual! Passei mal a noite: o diabo da asma não me deixa.

E bufava o homem, repousando a pouco e pouco do cansaço da
entrada e da subida, não do caminho, porque ia sempre de sege. Ao
lado, um pouco mais para a frente, sentava-se Virgília, numa
banquinha, com as mãos nos joelhos do enfermo. Entretanto, o
nhonhô chegava à sala, sem os pulos do costume, mas discreto,
meigo, sério. Viegas gostava muito dele.

— Vem cá, nhonhô, dizia-lhe; e a custo introduzia a mão na ampla
algibeira, tirava uma caixinha de pastilhas, metia uma na boca e
dava outra ao pequeno. Pastilhas antiasmáticas. O pequeno dizia que
eram muito boas.

Repetia-se isto, com variantes. Como o Viegas gostasse de jogar
damas, Virgília cumpria-lhe o desejo, aturando-o por largo tempo, a
mover as pedras com a mão frouxa e tarda. Outras vezes, desciam a
passear na chácara, dando-lhe ela o braço, que ele nem sempre
aceitava, por dizer-se rijo e capaz de andar uma légua. Iam,
sentavam-se tornavam a ir, a falar de coisas várias, ora de um
negócio de família, ora de uma bisbilhotice de sala, ora enfim de uma
casa que ele meditava construir, para residência própria, casa de
feitio moderno, porque a dele era das antigas, contemporânea de elrei
D. João VI, à maneira de algumas que ainda hoje (creio eu) se
podem ver no bairro de São Cristóvão, com as suas grossas colunas
na frente. Parecia-lhe que o casarão em que morava podia ser
substituído, e já tinha encomendado o risco a um pedreiro de fama.
Ah! então sim, então é que Virgília chegaria a ver o que era um velho
de gosto.

Falava, como se pode supor, lentamente e a custo, intervalado de
uma arfagem incômoda para ele e para os outros. De quando em
quando, vinha um acesso de tosse; curvo, gemendo, levava o lenço à
boca, e investigava-o; passado o acesso, tornava ao plano da casa,
que devia ter tais e tais quartos, um terraço, cachoeira, um primor.

CAPÍTULO LXXXIX / IN EXTREMIS

— Amanhã vou passar o dia em casa do Viegas, disse-me ela uma
vez. Coitado! não tem ninguém...

Viegas caíra na cama, definitivamente; a filha, casada, adoecera
justamente agora, e não podia fazer-lhe companhia. Virgília ia lá de
quando em quando. Eu aproveitei a circunstância para passar todo
aquele dia ao pé dela. Eram duas horas da tarde quando cheguei.
Viegas tossia com tal força que me fazia arder o peito; no intervalo
dos acessos debatia o preço de uma casa, com um sujeito magro. O
sujeito oferecia trinta contos. Viegas exigia quarenta. O comprador
instava como quem receia perder o trem da estrada de ferro, mas
Viegas não cedia; recusou primeiramente os trinta contos, depois
mais dois, depois mais três, enfim teve um forte acesso, que lhe
tolheu a fala durante quinze minutos. O comprador acarinhou-o
muito, arranjou-lhe os travesseiros, ofereceu-lhe trinta e seis contos.

— Nunca! gemeu o enfermo.

Mandou buscar um maço de papéis à escrivaninha; não tendo forças
para tirar a fita de borracha que prendia os papéis, pediu-me que os
deslaçasse: fi-lo. Eram as contas das despesas com a construção da
casa: contas de pedreiro, de carpinteiro, de pintor; contas do papel
da sala de visitas, da sala de jantar, das alcovas, dos gabinetes;
contas das ferragens; custo do terreno. Ele abria-as, uma por uma,
com a mão trêmula, e pedia-me que as lesse, e eu lia-as.

— Veja; mil e duzentos, papel de mil e duzentos a peça. Dobradiças
francesas... Veja, é de graça, concluiu ele depois de lida a última
conta.

— Pois bem... mas...

— Quarenta contos; não lhe dou por menos. Só os juros... faça a
conta dos juros...

Vinham tossidas estas palavras, às golfadas, às sílabas, como se
fossem migalhas de um pulmão desfeito. Nas órbitas fundas rolavam
os olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da
madrugada. Sob o lençol desenhava-se a estrutura óssea do corpo,
pontudo em dois lugares, nos joelhos e nos pés; a pele amarelada,
bamba, rugosa, revestia apenas a caveira de um rosto sem
expressão; uma carapuça de algodão branco cobria-lhe o crânio
rapado pelo tempo.

— Então? disse o sujeito magro.

Fiz-lhe sinal para que não insistisse, e ele calou-se por alguns
instantes. O doente ficou a olhar para o teto, calado, a arfar muito:
Virgília empalideceu, levantou-se, foi até à janela. Suspeitara a morte
e tinha medo. Eu procurei falar de outras coisas. O sujeito magro
contou uma anedota, e tornou a tratar da casa, alteando a proposta.

— Trinta e oito contos, disse ele.

— Ahn?... gemeu o enfermo.

O sujeito magro aproximou-se da cama, pegou-lhe na mão, e sentiua
fria. Eu acheguei-me ao doente, perguntei-lhe se sentia alguma
coisa, se queria tomar um cálice de vinho.

— Não... não... quar... quaren... quar... quar...

Teve um acesso de tosse, e foi o último; daí a pouco expirava ele,
com grande consternação do sujeito magro, que me confessou depois
a disposição em que estava de oferecer os quarenta contos; mas era
tarde.

CAPÍTULO XC / O VELHO COLÓQUIO DE ADÃO E CAIM

Nada. Nenhuma lembrança testamentária, uma pastilha que fosse,
com que do todo em todo não parecesse ingrato ou esquecido. Nada.
Virgília travou raivosa esse malogro, e disse-mo com certa cautela,
não pela coisa em si, senão porque entendia com o filho, de quem
sabia que eu não gostava muito, nem pouco. Insinuei-lhe que não
devia pensar mais em semelhante negócio. O melhor de tudo era
esquecer o defunto, um lorpa, um cainho sem nome, e tratar de
coisas alegres; o nosso filho, por exemplo...

Lá me escapou a decifração do mistério, esse doce mistério de
algumas semanas antes, quando Virgília me pareceu um pouco
diferente do que era. Um filho! Um ser tirado do meu ser! Esta era a
minha preocupação exclusiva daquele tempo. Olhos do mundo, zelos
do marido, morte do Viegas, nada me interessava por então, nem
conflitos políticos, nem revoluções, nem terremotos, nem nada. Eu só
pensava naquele embrião anônimo, de obscura paternidade, e uma
voz secreta me dizia: é teu filho. Meu filho! E repetia estas duas
palavras, com certa voluptuosidade indefinível, e não sei que
assomos de orgulho. Sentia-me homem.

O melhor é que conversávamos os dois, o embrião e eu, falávamos
de coisas presentes e futuras. O maroto amava-me, era um pelintra
gracioso, dava-me pancadinhas na cara com as mãozinhas gordas, ou
então traçava a beca de bacharel, porque ele havia de ser bacharel e
fazia um discurso na Câmara dos Deputados. E o pai a ouvi-lo de
uma tribuna, com os olhos rasos de lágrimas. De bacharel passava
outra vez à escola, pequenino, lousa e livros debaixo do braço, ou
então caía no berço para tornar a erguer-se homem. Em vão buscava
fixar no espírito uma idade, uma atitude: esse embrião tinha a meus
olhos todos os tamanhos e gestos: ele mamava, ele escrevia, ele
valsava, ele era o interminável nos limites de um quarto de hora, —
baby e deputado, colegial e pintalegrete. Às vezes, ao pé de Virgília,
esquecia-me dela e de tudo; Virgília sacudia-me, reprochava-me o
silêncio; dizia que eu já lhe não queria nada. A verdade é que estava
em diálogo com o embrião; era o velho colóquio de Adão e Caim,
uma conversa sem palavras entre a vida e a vida, o mistério e o
mistério.

CAPÍTULO XCI / UMA CARTA EXTRAORDINÁRIA

Por esse tempo recebi uma carta extraordinária, acompanhada de um
objeto não menos extraordinário. Eis o que a carta dizia:

“Meu caro Brás Cubas,

Há tempos, no Passeio Público, tomei-lhe de
empréstimo um relógio. Tenho a satisfação de restituirlho
com esta carta. A diferença é que não é o mesmo,
porém outro, não digo superior, mas igual ao primeiro.
Que voulez-vous, monseigneur? — como dizia Fígaro,
— c'est la misère. Muitas coisas se deram depois do
nosso encontro; irei contá-las pelo miúdo, se me não
fechar a porta. Saiba que já não trago aquelas botas
caducas, nem envergo uma famosa sobrecasaca cujas
abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu
degrau da escada de São Francisco; finalmente,
almoço.

Dito isto, peço licença para ir um dia destes expor-lhe
um trabalho, fruto de longo estudo, um novo sistema
de filosofia, que não só explica e descreve a origem e a
consumação das coisas, como faz dar um grande passo
adiante de Zenon e Sêneca, cujo estoicismo era um
verdadeiro brinco de crianças ao pé da minha receita
moral. É singularmente espantoso esse meu sistema;
retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a
felicidade, e enche de imensa glória o nosso país.
Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das
coisas. Minha primeira idéia revelava uma grande
enfatuação: era chamar-lhe borbismo, de Borba;
denominação vaidosa, além de rude e molesta. E com
certeza exprimia menos. Verá, meu caro Brás Cubas,
verá que é deveras um monumento; e se alguma coisa
há que possa fazer-me esquecer as amarguras da vida,
é o gosto de haver enfim apanhado a verdade e a
felicidade. Ei-las na minha mão essas duas esquivas;
após tantos séculos de lutas, pesquisas, descobertas,
sistemas e quedas, ei-las nas mãos do homem. Até
breve, meu caro Brás Cubas. Saudades do

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Li esta carta sem entendê-la. Vinha com ela uma boceta contendo um
bonito relógio com as minhas iniciais gravadas, e esta frase:
Lembrança do velho Quincas. Voltei à carta, reli-a com pausa, com
atenção. A restituição do relógio excluía toda a idéia de burla; a
lucidez, a serenidade, a convicção, — um pouco jactanciosa, é certo,
— pareciam excluir a suspeita de insensatez. Naturalmente o Quincas
Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas, e a abastança
devolvera-lhe a primitiva dignidade. Não digo tanto; há coisas que se
não podem reaver integralmente; mas enfim a regeneração não era
impossível. Guardei a carta e o relógio, e esperei a filosofia.

CAPÍTULO XCII / UM HOMEM EXTRAORDINÁRIO

Já agora acabo com as coisas extraordinárias. Vinha de guardar a
carta e o relógio, quando me procurou um homem magro e meão,
com um bilhete do Cotrim, convidando-me para jantar. O portador
era casado com uma irmã do Cotrim, chegara poucos dias antes do
Norte, chamava-se Damasceno, e fizera a revolução de 1831. Foi ele
mesmo que me disse isto, no espaço de cinco minutos. Saíra do Rio
de Janeiro, por desacordo com o Regente, que era um asno, pouco
menos asno do que os ministros que serviram com ele. De resto, a
revolução estava outra vez às portas. Neste ponto, conquanto
trouxesse as idéias políticas um pouco baralhadas, consegui organizar
e formular o governo de suas preferências: era um despotismo
temperado, — não por cantigas, como dizem alhures, — mas por
penachos da guarda nacional. Só não pude alcançar se ele queria o
despotismo de um, de três, de trinta ou de trezentos. Opinava por
várias coisas, entre outras, o desenvolvimento do tráfico dos
africanos e a expulsão dos ingleses. Gostava muito de teatro; logo
que chegou foi ao Teatro de São Pedro, onde viu um drama soberbo,
a Maria Joana, e uma comédia muito interessante, Kettly, ou a volta
à Suíça. Também gostara muito da Deperini, na Safo, ou na Ana
Bolena, não se lembrava bem. Mas a Candiani! sim, senhor, era
papa-fina. Agora queria ouvir o Ernani, que a filha dele cantava em
casa, ao piano: Ernani, Ernani, involami... — E dizia isto levantandose
e cantarolando a meia voz. — No Norte essas coisas chegavam
como um eco. A filha morria por ouvir todas as óperas. Tinha uma
voz muito mimosa a filha. E gosto, muito gosto. Ah! ele estava
ansioso por voltar ao Rio de Janeiro. Já havia corrido a cidade toda,
com umas saudades... Palavra! em alguns lugares teve vontade de
chorar. Mas não embarcaria mais. Enjoara muito a bordo, como todos
os outros passageiros, exceto um inglês... Que os levasse o diabo os
ingleses! Isto não ficava direito sem irem todos eles barra fora. Que é
que a Inglaterra podia fazer-nos? Se ele encontrasse algumas
pessoas de boa vontade, era obra de uma noite a expulsão de tais
godemes... Graças a Deus, tinha patriotismo, — e batia no peito, — o
que não admirava porque era de família; descendia de um antigo
capitão-mor muito patriota. Sim, não era nenhum pé-rapado. Viesse
a ocasião, e ele havia de mostrar de que pau era a canoa... Mas
fazia-se tarde, ia dizer que eu não faltaria ao jantar, e lá me
esperava para maior palestra. — Levei-o até à porta da sala; ele
parou dizendo que simpatizava muito comigo. Quando casara, estava
eu na Europa. Conheceu meu pai, um homem às direitas, com quem
dançara num célebre baile da Praia Grande... Coisas! coisas! Falaria
depois, fazia-se tarde, tinha de ir levar a resposta ao Cotrim. Saiu;
fechei-lhe a porta...

CAPÍTULO XCIII / O JANTAR

Que suplício que foi o jantar! Felizmente, Sabina fez-me sentar ao pé
da filha do Damasceno, uma D. Eulália, ou mais familiarmente Nhã-
loló, moça graciosa, um tanto acanhada a princípio, mas só a
princípio. Faltava-lhe elegância, mas compensava-a com os olhos,
que eram soberbos e só tinham o defeito de se não arrancarem de
mim, exceto quando desciam ao prato; mas Nhã-loló comia tão
pouco, que quase não olhava para o prato. De noite cantou; a voz
era como dizia o pai, “muito mimosa”. Não obstante, esquivei-me.
Sabina veio até à porta, e perguntou-me que tal achara a filha do
Damasceno.

— Assim, assim.

— Muito simpática, não é? acudiu ela; falta-lhe um pouco mais de
corte. Mas que coração! é uma pérola. Bem boa noiva para você.

— Não gosto de pérolas.

— Casmurro! Para quando é que você se guarda? para quando
estiver a cair de maduro, já sei. Pois, meu rico, quer você queira quer
não, há de casar com Nhã-loló.

E dizia isto a bater-me na face com os dedos, meiga como uma
pomba, e ao mesmo tempo intimativa e resoluta. Santo Deus! seria
esse o motivo da reconciliação? Fiquei um pouco desconsolado com a
idéia, mas uma voz misteriosa chamava-me à casa do Lobo Neves;
disse adeus a Sabina e às suas ameaças.

CAPÍTULO XCIV / A CAUSA SECRETA

— Como está a minha querida mamãe? A esta palavra, Virgília
amuou-se, como sempre. Estava ao canto de uma janela, sozinha, a
olhar para a lua, e recebeu-me alegremente; mas quando lhe falei no
nosso filho amuou-se. Não gostava de semelhante alusão,
aborreciam-lhe as minhas antecipadas carícias paternais. Eu, para
quem ela era já uma pessoa sagrada, uma âmbula divina, deixava-a
estar quieta. Supus a princípio que o embrião, esse perfil do
incógnito, projetando-se na nossa aventura, lhe restituíra a
consciência do mal. Enganava-me. Nunca Virgília me parecera mais
expansiva, mais sem reservas, menos preocupada dos outros e do
marido. Não eram remorsos. Imaginei também que a concepção seria
um puro invento, um modo de prender-me a ela, recurso sem longa
eficácia, que talvez começava de oprimi-la. Não era absurda esta
hipótese; a minha doce Virgília mentia às vezes, com tanta graça!

Naquela noite descobri a causa verdadeira. Era medo do parto e
vexame da gravidez. Padecera muito quando lhe nasceu o primeiro
filho; e essa hora, feita de minutos de vida e minutos de morte,
dava-lhe já imaginariamente os calafrios do patíbulo. Quanto ao
vexame, complicava-se ainda da forçada privação de certos hábitos
da vida elegante. Com certeza, era isso mesmo; dei-lho a entender,
repreendendo-a, um pouco em nome dos meus direitos de pai.
Virgília fitou-me; em seguida desviou os olhos e sorriu de um jeito
incrédulo.

CAPÍTULO XCV / FLORES DE ANTANHO
Onde estão elas, as flores de antanho? Uma tarde, após algumas
semanas de gestação, esboroou-se todo o edifício das minhas
quimeras paternais. Foi-se o embrião, naquele ponto em que se não
distingue Laplace de uma tartaruga. Tive a notícia por boca do Lobo
Neves, que me deixou na sala e acompanhou o médico à alcova da
frustrada mãe. Eu encostei-me à janela, a olhar para a chácara, onde
verdejavam as laranjeiras sem flores. Onde iam elas as flores de
antanho?

CAPÍTULO XCVI / A CARTA ANÔNIMA

Senti tocar-me no ombro; era Lobo Neves. Encaramo-nos alguns
instantes, mudos, inconsoláveis. Indaguei de Virgília, depois ficamos
a conversar uma meia hora. No fim desse tempo, vieram trazer-lhe
uma carta; ele leu-a, empalideceu muito, e fechou-a com a mão
trêmula. Creio que lhe vi fazer um gesto, como se quisesse atirar-se
sobre mim; mas não me lembra bem. O que me lembra claramente é
que durante os dias seguintes recebeu-me frio e taciturno. Enfim,
Virgília contou-me tudo, daí a dias na Gamboa.

O marido mostrou-lhe a carta, logo que ela se restabeleceu. Era
anônima e denunciava-nos. Não dizia tudo; não falava, por exemplo,
das nossas entrevistas externas; limitava-se a precavê-lo contra a
minha intimidade, e acrescentava que a suspeita era pública. Virgília
leu a carta e disse com indignação que era uma calúnia infame.

— Calúnia? perguntou Lobo Neves.

— Infame.

O marido respirou; mas, tornando à carta, parece que cada palavra
dela lhe fazia com o dedo um sinal negativo, cada letra bradava
contra a indignação da mulher. Esse homem, aliás intrépido, era
agora a mais frágil das criaturas. Talvez a imaginação lhe mostrou,
ao longe, o famoso olho da opinião, a fitá-lo sarcasticamente, com
um ar de pulha; talvez uma boca invisível lhe repetiu ao ouvido as
chufas que ele escutara ou dissera outrora. Instou com a mulher que
lhe confessasse tudo, porque tudo lhe perdoaria. Virgília
compreendeu que estava salva; mostrou-se irritada com a
insistência, jurou que da minha parte só ouvira palavras de gracejo e
cortesia. A carta havia de ser de algum namorado sem-ventura. E
citou alguns, — um que a galanteara francamente, durante três
semanas, outro que lhe escrevera uma carta, e ainda outros e outros.
Citava-os pelo nome, com circunstâncias, estudando os olhos do
marido, e concluiu dizendo que, para não dar margem à calúnia,
tratar-me-ia de maneira que eu não voltaria lá.

Ouvi tudo isto um pouco turbado, não pelo acréscimo de dissimulação
que era preciso empregar de ora em diante, até afastar-me
inteiramente da casa do Lobo Neves, mas pela tranqüilidade moral de
Virgília, pela falta de comoção, de susto, de saudades, e até de
remorsos. Virgília notou a minha preocupação, levantou-me a cabeça,
porque eu olhava então para o soalho, e disse-me com certa
amargura:

— Você não merece os sacrifícios que lhe faço.

Não lhe disse nada; era ocioso ponderar-lhe que um pouco de
desespero e terror daria à nossa situação o sabor cáustico dos
primeiros dias; mas se lho dissesse, não é impossível que ela
chegasse lenta e artificiosamente até esse pouco de desespero e
terror. Não lhe disse nada. Ela batia nervosamente com a ponta do
pé no chão; aproximei-me e beijei-a na testa. Virgília recuou, como
se fosse um beijo de defunto.

CAPÍTULO XCVII / ENTRE A BOCA E A TESTA

Sinto que o leitor estremeceu, — ou devia estremecer. Naturalmente
a última palavra sugeriu-lhe três ou quatro reflexões. Veja bem o
quadro: numa casinha da Gamboa, duas pessoas que se amam há
muito tempo, uma inclinada para a outra, a dar-lhe um beijo na
testa, e a outra a recuar, como se sentisse o contato de uma boca de
cadáver. Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa, antes do
beijo e depois do beijo, há aí largo espaço para muita coisa, — a
contração de um ressentimento, — a ruga da desconfiança, — ou
enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade...

CAPÍTULO XCVIII / SUPRIMIDO

Separamo-nos alegremente. Jantei reconciliado com a situação. A
carta anônima restituía à nossa aventura o sal do mistério e a
pimenta do perigo; e afinal foi bem bom que Virgília não perdesse
naquela crise a posse de si mesma. De noite fui ao teatro de São
Pedro; representava-se uma grande peça, em que a Estela arrancava
lágrimas. Entro; corro os olhos pelos camarotes; vejo em um deles
Damasceno e a família. Trajava a filha com outra elegância e certo
apuro, coisa difícil de explicar, porque o pai ganhava apenas o
necessário para endividar-se; e daí, talvez fosse por isso mesmo.

No intervalo fui visitá-los. Damasceno recebeu-me com muitas
palavras, a mulher com muitos sorrisos. Quanto a Nhã-loló, não tirou
mais os olhos de mim. Parecia-me agora mais bonita que no dia do
jantar. Achei-lhe certa suavidade etérea casada ao polido das formas
terrenas: — expressão vaga, e condigna de um capítulo em que tudo
há de ser vago. Realmente, não sei como lhes diga que não me senti
mal, ao pé da moça, trajando garridamente um vestido fino, um
vestido que me dava cócegas de Tartufo. Ao contemplá-lo, cobrindo
casta e redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta sutil, a
saber, que a natureza previu a vestidura humana, condição
necessária ao desenvolvimento da nossa espécie. A nudez habitual,
dada a multiplicação das obras e dos cuidados do indivíduo, tenderia
a embotar os sentidos e a retardar os sexos, ao passo que o
vestuário, negaceando a natureza, aguça e atrai as vontades, ativa-
as, reprodu-las, e conseguintemente faz andar a civilização.
Abençoado uso que nos deu Otelo e os paquetes transatlânticos!

Estou com vontade de suprimir este capítulo. O declive é perigoso.
Mas enfim eu escrevo as minhas memórias e não as tuas, leitor
pacato. Ao pé da graciosa donzela, parecia-me tomado de uma
sensação dupla e indefinível. Ela exprimia inteiramente a dualidade
de Pascal, l'ange et la bête, com a diferença que o jansenista não
admitia a simultaneidade das duas naturezas, ao passo que elas aí
estavam bem juntinhas, — l'ange, que dizia algumas coisas do Céu,
— e la bête, que... Não; decididamente suprimo este capítulo.

CAPÍTULO XCIX / NA PLATÉIA

Na platéia achei Lobo Neves, de conversa com alguns amigos,
falamos por alto, a frio, constrangidos um e outro. Mas no intervalo
seguinte, prestes a levantar o pano, encontramo-nos num dos
corredores, em que não havia ninguém. Ele veio a mim, com muita
afabilidade e riso, puxou-me a um dos óculos do teatro, e falamos
muito, principalmente ele, que parecia o mais tranqüilo dos homens.
Cheguei a perguntar-lhe pela mulher; respondeu que estava boa,
mas torceu logo a conversação para assuntos gerais, expansivo,
quase risonho. Adivinhe quem quiser a causa da diferença; eu fujo ao
Damasceno que me espreita ali da porta do camarote.

Não ouvi nada do seguinte ato, nem as palavras dos atores, nem as
palmas do público. Reclinado na cadeira, apanhava de memória os
retalhos da conversação do Lobo Neves, refazia as maneiras dele, e
concluía que era muito melhor a nova situação. Bastava-nos a
Gamboa. A freqüência da outra casa aguçaria as invejas.
Rigorosamente podíamos dispensar-nos de falar todos os dias; era
até melhor, metia a saudade de permeio nos amores. Ao demais, eu
galgara os quarenta anos, e não era nada, nem simples eleitor de
paróquia. Urgia fazer alguma coisa, ainda por amor de Virgília, que
havia de ufanar-se quando visse luzir o meu nome... Creio que nessa
ocasião houve grandes aplausos, mas não juro; eu pensava em outra
coisa.

Multidão, cujo amor cobicei até à morte, era assim que eu me
vingava às vezes de ti; deixava burburinhar em volta do meu corpo a
gente humana, sem a ouvir, como o Prometeu de Ésquilo fazia aos
seus verdugos. Ah! tu cuidavas encadear-me ao rochedo da tua
frivolidade, da tua indiferença, ou da tua agitação? Frágeis cadeias,
amiga minha; eu rompia-as de um gesto de Gulliver. Vulgar coisa é ir
considerar no ermo. O voluptuoso, o esquisito, é insular-se o homem
no meio de um mar de gestos e palavras, de nervos e paixões,
decretar-se alheado, inacessível, ausente. O mais que podem dizer,
quando ele torna a si, — isto é, quando torna aos outros, — é que
baixa do mundo da lua; mas o mundo da lua, esse desvão luminoso e
recatado do cérebro, que outra coisa é senão a afirmação desdenhosa
da nossa liberdade espiritual? Vive Deus! eis um bom fecho de
capítulo.

CAPÍTULO C / O CASO PROVÁVEL

Se esse mundo não fosse uma região de espíritos desatentos, era
escusado lembrar ao leitor que eu só afirmo certas leis, quando as
possuo deveras; em relação a outras restrinjo-me à admissão da
probabilidade. Um exemplo da segunda classe constitui o presente
capítulo, cuja leitura recomendo a todas as pessoas que amam o
estudo dos fenômenos sociais. Segundo parece, e não é improvável,
existe entre os fatos da vida pública e os da vida particular uma certa
ação recíproca, regular, e talvez periódica, — ou para usar de uma
imagem, há alguma coisa semelhante às marés da Praia do Flamengo
e de outras igualmente marulhosas. Com efeito, quando a onda
investe a praia, alaga-a muitos palmos a dentro; mas essa mesma
água torna ao mar, com variável força, e vai engrossar a onda que há
de vir, e que terá de tornar como a primeira. Esta é a imagem;
vejamos a aplicação.

Deixei dito noutra página que o Lobo Neves, nomeado presidente de
província, recusou a nomeação por motivo da data do decreto que
era 13; ato grave, cuja conseqüência foi separar do ministério o
marido de Virgília. Assim, o fato particular da ojeriza de um número
produziu o fenômeno da dissidência política. Resta ver como, tempos
depois, um ato político determinou na vida particular uma cessação
de movimento. Não convindo ao método deste livro descrever
imediatamente esse outro fenômeno, limito-me a dizer por ora que o
Lobo Neves, quatro meses depois de nosso encontro no teatro,
reconciliou-se com o ministério; fato que o leitor não deve perder de
vista, se quiser penetrar a sutileza do meu pensamento.

CAPÍTULO CI / A REVOLUÇAO DÁLMATA

Foi Virgília quem me deu notícia da viravolta política do marido, certa
manhã de outubro, entre onze e meio-dia; falou-me de reuniões, de
conversas, de um discurso...

— De maneira, que desta vez fica você baronesa, interrompi eu.

Ela derreou os cantos da boca, e moveu a cabeça a um e outro lado;
mas esse gesto de indiferença era desmentido por alguma coisa
menos definível, menos clara, uma expressão de gosto e de
esperança. Não sei por que, imaginei que a carta imperial da
nomeação podia atraí-la à virtude, não digo pela virtude em si
mesma, mas por gratidão ao marido. Que ela amava cordialmente a
nobreza. Um dos maiores desgostos de nossa vida foi o aparecimento
de certo pelintra de legação, — da legação da Dalmácia,
suponhamos, — o Conde B. V., que a namorou durante três meses.
Esse homem, vero fidalgo de raça, transtornara um pouco a cabeça
de Virgília, que, além do mais, possuía a vocação diplomática. Não
chego a alcançar o que seria de mim, se não rebentasse na Dalmácia
uma revolução, que derrocou o governo e purificou as embaixadas.
Foi sangrenta a revolução, dolorosa, formidável; os jornais, a cada
navio que chegava da Europa, transcreviam os horrores, mediam o
sangue, contavam as cabeças; toda a gente fremia de indignação e
piedade... Eu não; eu abençoava interiormente essa tragédia, que me
tirara uma pedrinha do sapato. E depois a Dalmácia era tão longe!

CAPÍTULO CII / DE REPOUSO

Mas este mesmo homem, que se alegrou com a partida do outro,
praticou daí a tempos... Não, não hei de contá-lo nesta página; fique
esse capítulo para repouso do meu vexame. Uma ação grosseira,
baixa, sem explicação possível... Repito, não contarei o caso nesta
página.

CAPÍTULO CIII / DISTRAÇÃO

— Não, senhor doutor, isto não se faz. Perdoe-me, isto não se faz.

Tinha razão D. Plácida. Nenhum cavalheiro chega uma hora mais
tarde ao lugar em que o espera a sua dama. Entrei esbaforido;
Virgília tinha ido embora. D. Plácida contou-me que ela esperara
muito, que se irritara, que chorara, que jurara votar-me ao desprezo,
e outras mais coisas que a nossa caseira dizia com lágrimas na voz,
pedindo-me que não desamparasse Iaiá, que era ser muito injusto
com uma moça que me sacrificara tudo. Expliquei-lhe então que um
equívoco... E não era; cuido que foi simples distração. Um dito, uma
conversa, uma anedota, qualquer coisa; simples distração.

Coitada de D. Plácida! Estava aflita deveras. Andava de um lado para
outro, abanando a cabeça, suspirando com estrépito, espiando pela
rótula. Coitada de D. Plácida! Com que arte conchegava as roupas,
bafejava as faces, acalentava as manhas do nosso amor! que
imaginação fértil em tornar as horas mais aprazíveis e breves! Flores,
doces, — os bons doces de outros dias, — e muito riso, muito afago,
riso e afago que cresciam com o tempo, como se ela quisesse fixar a
nossa aventura, ou restituir-lhe a primeira flor. Nada esquecia a
nossa confidente e caseira; nada, nem a mentira, porque a um e
outro referia suspiros e saudades que não presenciara; nada, nem a
calúnia, porque uma vez chegou a atribuir-me uma paixão nova. —
Você sabe que não posso gostar de outra mulher, foi a minha
resposta, quando Virgília me falou em semelhante coisa. E esta só
palavra, sem nenhum protesto ou admoestação, dissipou o aleive de
D. Plácida, que ficou triste.

— Está bem, disse-lhe eu, depois de um quarto de hora; Virgília há
de reconhecer que não tive culpa nenhuma... Quer você levar-lhe
uma carta agora mesmo?

— Ela há de estar bem triste, coitadinha! Olhe, eu não desejo a morte
de ninguém; mas, se o senhor doutor algum dia chegar a casar com
Iaiá, então sim, é que há de ver o anjo que ela é!

Lembra-me que desviei o rosto e baixei os olhos ao chão. Recomendo
este gesto às pessoas que não tiverem uma palavra pronta para
responder, ou ainda às que recearem encarar a pupila de outros
olhos. Em tais casos, alguns preferem recitar uma oitava dos
Lusíadas, outros adotam o recurso de assobiar a Norma; eu atenhome
ao gesto indicado; é mais simples, exige menos esforço.

Três dias depois, estava tudo explicado. Suponho que Virgília ficou
um pouco admirada, quando lhe pedi desculpas das lágrimas que
derramara naquela triste ocasião. Nem me lembra se interiormente
as atribuí a D. Plácida. Com efeito, podia acontecer que D. Plácida
chorasse, ao vê-la desapontada, e, por um fenômeno da visão, as
lágrimas que tinha nos próprios olhos lhe parecessem cair dos olhos
de Virgília. Fosse como fosse, tudo estava explicado, mas não
perdoado, e menos ainda esquecido. Virgília dizia-me uma porção de
coisas duras, ameaçava-me com a separação, enfim louvava o
marido. Esse sim, era um homem digno, muito superior a mim,
delicado, um primor de cortesia e afeição; é o que ela dizia, enquanto
eu, sentado, com os braços fincados nos joelhos, olhava para o chão,
onde uma mosca arrastava uma formiga que lhe mordia o pé. Pobre
mosca! pobre formiga!

— Mas você não diz nada, nada? perguntou Virgília, parando diante
de mim.

— Que hei de dizer? Já expliquei tudo; você teima em zangar-se; que
hei de dizer? Sabe que me parece? Parece-me que você está
enfastiada, que se aborrece, que quer acabar...

— Justamente!

Foi dali pôr o chapéu, com a mão trêmula, raivosa... — Adeus, D.
Plácida, bradou ela para dentro. Depois foi até à porta, correu o
fecho, ia sair; agarrei-a pela cintura. — Está bom, está bom, disselhe.
Virgília ainda forcejou por sair. Eu retive-a, pedi-lhe que ficasse,
que esquecesse; ela afastou-se da porta e foi cair no canapé. Senteime
ao pé dela, disse-lhe muitas coisas meigas, outras humildes,
outras graciosas. Não afirmo se os nossos lábios chegaram à
distância de um fio de cambraia ou ainda menos; é matéria
controversa. Lembra-me, sim, que na agitação caiu um brinco de
Virgília, que eu inclinei-me a apanhá-lo, e que a mosca de há pouco
trepou ao brinco, levando sempre a formiga no pé. Então eu, com a
delicadeza nativa de um homem do nosso século, pus na palma da
mão aquele casal de mortificados; calculei toda a distância que ia da
minha mão ao planeta Saturno, e perguntei a mim mesmo que
interesse podia haver num episódio tão mofino. Se concluis daí que
eu era um bárbaro, enganas-te, porque eu pedi um grampo a Virgília,
a fim de separar os dois insetos; mas a mosca farejou a minha
intenção, abriu as asas e foi-se embora. Pobre mosca! pobre formiga!
E Deus viu que isto era bom, como se diz na Escritura.

CAPÍTULO CIV / ERA ELE!

Restituí o grampo a Virgília, que o repregou nos cabelos, e preparouse
para sair. Era tarde; tinham dado três horas. Tudo estava
esquecido e perdoado. D. Plácida, que espreitava a ocasião idônea
para a saída, fecha subitamente a janela e exclama:

— Virgem Nossa Senhora! aí vem o marido de Iaiá!

O momento de terror foi curto, mas completo. Virgília fez-se da cor
das rendas do vestido, correu até a porta da alcova; D. Plácida, que
fechara a rótula, queria fechar também a porta de dentro; eu dispusme
a esperar o Lobo Neves. Esse curto instante passou. Virgília
tornou a si, empurrou-me para a alcova, disse a D. Plácida que
voltasse à janela; a confidente obedeceu.

Era ele. D. Plácida abriu-lhe a porta com muitas exclamações de
pasmo: — O senhor por aqui! honrando a casa de sua velha! Entre,
faça favor. Adivinhe quem está cá... Não tem que adivinhar, não veio
por outra coisa... Apareça, Iaiá.

Virgília, que estava a um canto, atirou-se ao marido. Eu espreitavaos
pelo buraco da fechadura. O Lobo Neves entrou lentamente,
pálido, frio, quieto, sem explosão, sem arrebatamento, e circulou um
olhar em volta da sala.

— Que é isto? exclamou Virgília. Você por aqui?

— Ia passando, vi D. Plácida à janela, e vim cumprimentá-la.

— Muito obrigada, acudiu esta. E digam que as velhas não valem
alguma coisa... Olhai, gentes! Iaiá parece estar com ciúmes. E
acariciando-a muito: — Este anjinho é que nunca se esqueceu da
velha Plácida. Coitadinha! é mesmo a cara da mãe... Sente-se,
senhor doutor...

— Não me demoro.

— Você vai para casa? disse Virgília. Vamos juntos.

— Vou.

— Dê cá o meu chapéu, D. Plácida.

— Está aqui.

D. Plácida foi buscar um espelho, abriu-o diante dela. Virgília punha o
chapéu, atava as fitas, arranjava os cabelos, falando ao marido, que
não respondia nada. A nossa boa velha tagarelava demais; era um
modo de disfarçar as tremuras do corpo. Virgília, dominado o
primeiro instante, tornara à posse de si mesma.

— Pronta! disse ela. Adeus, D. Plácida; não se esqueça de aparecer,
ouviu? A outra prometeu que sim, e abriu-lhes a porta.

CAPÍTULO CV / EQUIVALÊNCIA DAS JANELAS

D. Plácida fechou a porta e caiu numa cadeira. Eu deixei
imediatamente a alcova, e dei dois passos para sair à rua, com o fim
de arrancar Virgília ao marido; foi o que disse, e em bem que o disse,
porque D. Plácida deteve-me por um braço. Tempo houve em que
cheguei a supor que não dissera aquilo senão para que ela me
detivesse; mas a simples reflexão basta para mostrar que, depois dos
dez minutos da alcova, o gesto mais genuíno e cordial não podia ser
senão esse. E isto por aquela famosa lei da equivalência das janelas,
que eu tive a satisfação de descobrir e formular, no capítulo LI. Era
preciso arejar a consciência. A alcova foi uma janela fechada; eu abri
outra com o gesto de sair, e respirei.

CAPÍTULO CVI / JOGO PERIGOSO

Respirei e sentei-me. D. Plácida atroava a sala com exclamações e
lástimas. Eu ouvia, sem lhe dizer coisa nenhuma; refletia comigo se
não era melhor ter fechado Virgília na alcova e ficado na sala; mas
adverti logo que seria pior; confirmaria a suspeita, chegaria o fogo à
pólvora, e uma cena de sangue... Foi muito melhor assim. Mas
depois? que ia acontecer em casa de Virgília? matá-la-ia o marido?
espancá-la-ia? encerrá-la-ia? expulsá-la-ia? Estas interrogações
percorriam lentamente o meu cérebro, como os pontinhos e vírgulas
escuras percorrem o campo visual dos olhos enfermos ou cansados.
Iam e vinham, com o seu aspecto seco e trágico, e eu não podia
agarrar um deles e dizer: és tu, tu e não outro.

De repente vejo um vulto negro; era D. Plácida, que fora dentro,
enfiara a mantinha, e vinha oferecer-se-me para ir à casa do Lobo
Neves. Ponderei que era arriscado, porque ele desconfiaria da visita
tão próxima.

— Sossegue, interrompeu ela; eu saberei arranjar as coisas. Se ele
estiver em casa não entro.

Saiu; eu fiquei a ruminar o sucesso e as conseqüências possíveis. Ao
cabo, parecia-me jogar um jogo perigoso, e perguntava a mim
mesmo se não era tempo de levantar e espairecer. Sentia-me
tomado de uma saudade do casamento, de um desejo de canalizar a
vida. Por que não? Meu coração tinha ainda que explorar; não me
sentia incapaz de um amor casto, severo e puro. Em verdade, as
aventuras são a parte torrencial e vertiginosa da vida, isto é, a
exceção; eu estava enfarado delas; não sei até se me pungia algum
remorso. Mal pensei naquilo, deixei-me ir atrás da imaginação; vi-me
logo casado, ao pé de uma mulher adorável, diante de um baby, que
dormia no regaço da ama, todos nós no fundo de uma chácara
sombria e verde, a espiarmos através da chácara uma nesga do céu
azul, extremamente azul...

CAPÍTULO CVII / BILHETE

Não houve nada, mas ele suspeita alguma coisa; está
muito sério e não fala; agora saiu. Sorriu uma vez
somente, para Nhonhô, depois de o fitar muito tempo,
carrancudo. Não me tratou mal nem bem. Não sei o
que vai acontecer; Deus queira que isto passe. Muita
cautela, por ora, muita cautela.

CAPÍTULO CVIII / QUE SE NÃO ENTENDE

Eis aí o drama, eis aí a ponta da orelha trágica de Shakespeare. Esse
retalhinho de papel, garatujado em partes, machucado das mãos, era
um documento de análise, que eu não farei neste capítulo, nem no
outro, nem talvez em todo o resto do livro. Poderia eu tirar ao leitor o
gosto de notar por si mesmo a frieza, a perspicácia e o ânimo dessas
poucas linhas traçadas à pressa; e por trás delas a tempestade de
outro cérebro, a raiva dissimulada, o desespero que se constrange e
medita, porque tem de resolver-se na lama ou no sangue, ou nas
lágrimas?

Quanto a mim, se vos disser que li o bilhete três ou quatro vezes,
naquele dia, acreditai-o, que é verdade; se vos disser mais que o reli
no dia seguinte, antes e depois do almoço, podeis crê-lo, é a
realidade pura. Mas se vos disser a comoção que tive, duvidai um
pouco da asserção, e não a aceiteis sem provas. Nem então, nem
ainda agora cheguei a discernir o que experimentei. Era medo, e não
era medo; era dó e não era dó; era vaidade e não era vaidade;
enfim, era amor sem amor, isto é, sem delírio; e tudo isso dava uma
combinação assaz complexa e vaga, uma coisa que não podereis
entender, como eu não entendi. Suponhamos que não disse nada.

CAPÍTULO CIX / O FILÓSOFO

Sabido que reli a carta, antes e depois do almoço, sabido fica que
almocei, e só resta dizer que essa refeição foi das mais parcas da
minha vida: um ovo, uma fatia de pão, uma xícara de chá. Não me
esqueceu esta circunstância mínima; no meio de tanta coisa
importante obliterada escapou esse almoço. A razão principal poderia
ser justamente o meu desastre; mas não foi; a principal razão foi a
reflexão que me fez o Quincas Borba, cuja visita recebi naquele dia.
Disse-me ele que a frugalidade não era necessária para entender o
Humanitismo, e menos ainda praticá-lo; que esta filosofia
acomodava-se facilmente com os prazeres da vida, inclusive a mesa,
o espetáculo e os amores; e que, ao contrário, a frugalidade podia
indicar certa tendência para o ascetismo, o que era a expressão
acabada de tolice humana.

— Veja São João, continuou ele; mantinha-se de gafanhotos, no
deserto, em vez de engordar tranqüilamente na cidade, e fazer
emagrecer o farisaísmo na sinagoga.

Deus me livre de contar a história do Quincas Borba, que aliás ouvi
toda naquela triste ocasião, uma história longa, complicada, mas
interessante. E se não conto a história, dispenso-me outrossim de
descrever-lhe a figura, aliás muito diversa da que me apareceu no
Passeio Público. Calo-me; digo somente que se a principal
característica do homem não são as feições, mas os vestuários, ele
não era o Quincas Borba; era um desembargador sem beca, um
general sem farda, um negociante sem deficit. Notei-lhe a perfeição
da sobrecasaca, a alvura da camisa, o asseio das botas. A mesma
voz, roufenha outrora, parecia restituída à primitiva sonoridade.
Quanto à gesticulação, sem que houvesse perdido a viveza de outro
tempo, não tinha já a desordem, sujeitava-se a um certo método.
Mas eu não quero descrevê-lo. Se falasse, por exemplo, no botão de
ouro que trazia ao peito, e na qualidade do couro das botas, iniciaria
uma descrição, que omito por brevidade. Contentem-se de saber que
as botas eram de verniz. Saibam mais que ele herdara alguns pares
de contos de réis de um velho tio de Barbacena.

Meu espírito, (permitam-me aqui uma comparação de criança!) meu
espírito era naquela ocasião uma espécie de peteca. A narração do
Quincas Borba dava-lhe uma palmada, ele subia; quando ia a cair, o
bilhete de Virgília dava-lhe outra palmada, e ele era de novo
arremessado aos ares, descia, e o episódio do Passeio Público
recebia-o com outra palmada, igualmente rija e eficaz. Cuido que não
nasci para situações complexas. Esse puxar e empuxar de coisas
opostas desequilibrava-me; tinha vontade de embrulhar o Quincas
Borba e Lobo Neves e o bilhete de Virgília na mesma filosofia, e
mandá-los de presente a Aristóteles. Contudo, era instrutiva a
narração do nosso filósofo; admirava-lhe sobretudo o talento de
observação com que descrevia a gestação e o crescimento do vício,
as lutas interiores, as capitulações vagarosas, o uso da lama.

— Olhe, observou ele; a primeira noite que passei, na escada de São
Francisco, dormi-a inteira, como se fosse a mais fina pluma. Por quê?
Porque fui gradualmente da cama de esteira ao catre de pau do
quarto próprio ao corpo da guarda do corpo da guarda à rua...

Quis expor-me finalmente a filosofia; pedi-lhe que não. — Estou
muito preocupado hoje e não poderia atendê-lo; venha depois; estou
sempre em casa. Quincas Borba sorriu de um modo malicioso; talvez
soubesse da minha aventura, mas não acrescentou nada. Só me
disse estas últimas palavras à porta:

— Venha para o Humanitismo; ele é o grande regaço dos espíritos, o
mar eterno em que mergulhei para arrancar de lá a verdade. Os
gregos faziam-na sair de um poço. Que concepção mesquinha! Um
poço! Mas é por isso mesmo que nunca atinaram com ela. Gregos,
subgregos, antigregos, toda a longa série dos homens tem-se
debruçado sobre o poço, para ver sair a verdade, que não está lá.
Gastaram cordas e caçambas; alguns mais afoitos desceram ao fundo
e trouxeram um sapo. Eu fui diretamente ao mar. Venha para o
Humanitismo.

CAPÍTULO CX / 31

Uma semana depois, Lobo Neves foi nomeado presidente de
província. Agarrei-me à esperança da recusa, se o decreto viesse
outra vez datado de 13; trouxe, porém, a data de 31, e esta simples
transposição de algarismos eliminou deles a substância diabólica. Que
profundas que são as molas da vida!

CAPÍTULO CXI / O MURO

Não sendo meu costume dissimular ou esconder nada, contarei nesta
página o caso do muro. Eles estavam prestes a embarcar. Entrando
em casa de D. Plácida, vi um papelinho dobrado sobre a mesa; era
um bilhete de Virgília; dizia que me esperava à noite, na chácara,
sem falta. E concluía: “O muro é baixo do lado do beco”.

Fiz um gesto de desagrado. A carta pareceu-me descomunalmente
audaciosa, mal pensada e até ridícula. Não era só convidar o
escândalo, era convidá-lo de parceria com a risota. Imaginei-me a
saltar o muro, embora baixo e do lado do beco; e, quando ia a galgá-
lo, via-me agarrado por um pedestre de polícia, que me levava ao
corpo da guarda. O muro é baixo! E que tinha que fosse baixo?
Naturalmente Virgília não soube o que fez; era possível que já
estivesse arrependida. Olhei para o papel, um pedaço de papel
amarrotado, mas inflexível. Tive comichões de o rasgar, em trinta mil
pedaços, e atirá-los ao vento, como o último despojo da minha
aventura; mas recuei a tempo; o amor-próprio, o vexame da fuga, a
idéia do medo... Não havia remédio senão ir.

— Diga-lhe que vou.

— Aonde? perguntou D. Plácida.

— Onde ela disse que me espera.

— Não me disse nada.

— Neste papel.

D. Plácida arregalou os olhos: — Mas esse papel, achei-o hoje de
manhã, nesta sua gaveta, e pensei que...

Tive uma sensação esquisita. Reli o papel, mirei-o, remirei-o; era, em
verdade, um antigo bilhete de Virgília, recebido no começo dos
nossos amores, uma certa entrevista na chácara, que me levou
efetivamente a saltar o muro, um muro baixo e discreto. Guardei o
papel e... Tive uma sensação esquisita.

CAPÍTULO CXII / A OPINIÃO

Mas estava escrito que esse dia devia ser o dos lances dúbios. Poucas
horas depois, encontrei Lobo Neves, na Rua do Ouvidor, falamos da
presidência e da política. Ele aproveitou o primeiro conhecido que nos
passou à ilharga, e deixou-me, depois de muitos cumprimentos.
Lembra-me que estava retraído, mas de um retraimento que
forcejava por dissimular. Pareceu-me então (e peço perdão à crítica,
se este meu juízo for temerário!), pareceu-me que ele tinha medo —
não medo de mim, nem de si, nem do código, nem da consciência;
tinha medo da opinião. Supus que esse tribunal anônimo e invisível,
em que cada membro acusa e julga, era o limite posto à vontade do
Lobo Neves. Talvez já não amasse a mulher; e, assim, pode ser que
o coração fosse estranho à indulgência dos seus últimos atos. Cuido
(e de novo insto pela boa vontade da crítica!) cuido que ele estaria
pronto a separar-se da mulher, como o leitor se terá separado de
muitas relações pessoais; mas a opinião, essa opinião que lhe
arrastaria a vida por todas as ruas, que abriria minucioso inquérito
acerca do caso, que coligiria uma a uma todas as circunstâncias,
antecedências, induções, provas, que as relataria na palestra das
chácaras desocupadas, essa terrível opinião, tão curiosa das alcovas,
obstou à dispersão da família. Ao mesmo tempo tornou impossível o
desforço, que seria a divulgação. Ele não podia mostrar-se ressentido
comigo, sem igualmente buscar a separação conjugal; teve então de
simular a mesma ignorância de outrora, e, por dedução, iguais
sentimentos.

Que lhe custasse creio; naqueles dias, principalmente, vi-o de modo
que devia custar-lhe muito. Mas o tempo (e é outro ponto em que eu
espero a indulgência dos homens pensadores!), o tempo caleja a
sensibilidade, e oblitera a memória das coisas; era de supor que os
anos lhe despontassem os espinhos, que a distância dos fatos
apagasse os respectivos contornos, que uma sombra de dúvida
retrospectiva cobrisse a nudez da realidade; enfim, que a opinião se
ocupasse um pouco com outras aventuras. O filho, crescendo,
buscaria satisfazer as ambições do pai; seria o herdeiro de todos os
seus afetos. Isso, e a atividade externa, e o prestígio público, e a
velhice depois, a doença, o declínio, a morte, um responso, uma
notícia biográfica, e estava fechado o livro da vida, sem nenhuma
página de sangue.

CAPÍTULO CXIII / A SOLDA

A conclusão, se há alguma no capítulo anterior, é que a opinião é
uma boa solda das instituições domésticas. Não é impossível que eu
desenvolva este pensamento, antes de acabar o livro; mas também
não é impossível que o deixe como está. De um ou de outro modo, é
uma boa solda a opinião, e tanto na ordem doméstica, como na
política. Alguns metafísicos biliosos têm chegado ao extremo de a
darem como simples produto da gente chocha ou medíocre; mas é
evidente que, ainda quando um conceito tão extremado não
trouxesse em si mesmo a resposta, bastava considerar os efeitos
salutares da opinião, para concluir que ela é a obra superfina da flor
dos homens, a saber, do maior número.

CAPÍTULO CXIV / FIM DE UM DIÁLOGO

— Sim, é amanhã. Você vai a bordo?

— Está doida? É impossível.

— Então, adeus!

— Adeus!

— Não se esqueça de D. Plácida. Vá vê-la algumas vezes. Coitada!
Foi ontem despedir-se de nós; chorou muito, disse que eu não a veria
mais... É uma boa criatura, não é?

— Certamente.

— Se tivermos de escrever, ela receberá as cartas. Agora até daqui
a...

— Talvez dois anos?

— Qual! ele diz que é só até fazer as eleições.

— Sim? então até breve. Olhe que estão olhando para nós.

— Quem?

— Ali no sofá. Separemo-nos.

— Custa-me muito.

— Mas é preciso; adeus, Virgília!

— Até breve. Adeus!

CAPÍTULO CXV / O ALMOÇO

Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma coisa que não era
dor nem prazer, uma coisa mista, alívio e saudade, tudo misturado,
em iguais doses. Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei
que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande
desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria
romanesco; mas não seria biográfico. A realidade pura é que eu
almocei, como nos demais dias, acudindo ao coração com as
lembranças da minha aventura, e ao estômago com os acepipes de
M. Prudhon...

...Velhos do meu tempo, acaso vos lembrais desse mestre cozinheiro
do Hotel Pharoux, um sujeito que, segundo dizia o dono da casa,
havia servido nos famosos Véry e Véfour, de Paris, e mais nos
palácios do Conde Molé e do Duque de la Rochefoucauld? Era insigne.
Entrou no Rio de Janeiro com a polca... A polca, M. Prudhon, o Tivoli,
o baile dos estrangeiros, o Cassino, eis algumas das melhores
recordações daquele tempo; mas sobretudo os acepipes do mestre
eram deliciosos.

Eram, e naquela manhã parece que o diabo do homem adivinhara a
nossa catástrofe. Jamais o engenho e a arte lhe foram tão propícios.
Que requinte de temperos! que tenrura de carnes! que rebuscado de
formas! Comia-se com a boca, com os olhos, com o nariz. Não
guardei a conta desse dia; sei que foi cara. Ai dor! era-me preciso
enterrar magnificamente os meus amores. Eles lá iam, mar em fora,
no espaço e no tempo, e eu ficava-me ali numa ponta de mesa, com
os meus quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios; ficava-me
para os não ver nunca mais, porque ela poderia tornar e tornou, mas
o eflúvio da manhã quem é que o pediu ao crepúsculo da tarde?

CAPÍTULO CXVI / FILOSOFIA DAS FOLHAS VELHAS

Fiquei tão triste com o fim do último capítulo que estava capaz de
não escrever este, descansar um pouco, purgar o espírito da
melancolia que o empacha, e continuar depois. Mas não, não quero
perder tempo.

A partida de Virgília deu-me uma amostra da viuvez. Nos primeiros
dias meti-me em casa, a fisgar moscas, como Domiciano, se não
mente o Suetônio, mas a fisgá-las de um modo particular: com os
olhos. Fisgava-as uma a uma, no fundo de uma sala grande, estirado
na rede, com um livro aberto entre as mãos. Era tudo: saudades,
ambições, um pouco de tédio, e muito devaneio solto. Meu tio cônego
morreu nesse intervalo; item, dois primos. Não me dei por abalado:
levei-os ao cemitério, como quem leva dinheiro a um banco. Que
digo? como quem leva cartas ao correio: selei as cartas, meti-as na
caixinha, e deixei ao carteiro o cuidado de as entregar em mão
própria. Foi também por esse tempo que nasceu minha sobrinha
Venância, filha do Cotrim. Morriam uns, nasciam outros: eu
continuava às moscas.

Outras vezes agitava-me. Ia às gavetas, entornava as cartas antigas,
dos amigos, dos parentes, das namoradas, (até as de Marcela), e
abria-as todas, lia-as uma a uma, e recompunha o pretérito... Leitor
ignaro, se não guardas as cartas da juventude, não conhecerás um
dia a filosofia das folhas velhas, não gostarás o prazer de ver-te, ao
longe, na penumbra, com um chapéu de três bicos, botas de sete
léguas e longas barbas assírias, a bailar ao som de uma gaita
anacreôntica. Guarda as tuas cartas da juventude!

Ou, se te não apraz o chapéu de três bicos, empregarei a locução de
um velho marujo, familiar da casa de Cotrim; direi que, se guardares
as cartas da juventude, acharás ocasião de “cantar uma saudade.”
Parece que os nossos marujos dão este nome às cantigas de terra,
entoadas no alto mar. Como expressão poética, é o que se pode
exigir mais triste.

CAPÍTULO CXVII / O HUMANITISMO

Duas forças, porém, além de uma terceira, compeliam-me a tornar à
vida agitada do costume: Sabina e Quincas Borba. Minha irmã
encaminhou a candidatura conjugal de Nhã-loló de um modo
verdadeiramente impetuoso. Quando dei por mim estava com a moça
quase nos braços. Quanto ao Quincas Borba, expôs-me enfim o
Humanitismo, sistema de filosofia destinado a arruinar todos os
demais sistemas.

— Humanitas, dizia ele, o princípio das coisas, não é outro senão o
mesmo homem repartido por todos os homens. Conta três fases
Humanitas: a estática, anterior a toda a criação; a expansiva,
começo das coisas; a dispersiva, aparecimento do homem; e contará
mais uma, a contrativa, absorção do homem e das coisas. A
expansão, iniciando o universo, sugeriu a Humanitas o desejo de o
gozar, e daí a dispersão, que não é mais do que a multiplicação
personificada da substância original.

Como me não aparecesse assaz clara esta exposição, Quincas Borba
desenvolveu-a de um modo profundo, fazendo notar as grandes
linhas do sistema. Explicou-me que, por um lado, o Humanitismo
ligava-se ao Bramanismo, a saber, na distribuição dos homens pelas
diferentes partes do corpo de Humanitas; mas aquilo que na religião
indiana tinha apenas uma estreita significação teológica e política, era
no Humanitismo a grande lei do valor pessoal. Assim, descender do
peito ou dos rins de Humanitas, isto é, ser um forte, não era o
mesmo que descender dos cabelos ou da ponta do nariz. Daí a
necessidade de cultivar e temperar o músculo. Hércules não foi senão
um símbolo antecipado do Humanitismo. Neste ponto Quincas Borba
ponderou que o paganismo poderia ter chegado à verdade, se se não
houvesse amesquinhado com a parte galante dos seus mitos. Nada
disso acontecerá com o Humanitismo. Nesta igreja nova não há
aventuras fáceis, nem quedas, nem tristezas, nem alegrias pueris. O
amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a
vida é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não
prefira a miséria à morte (o que é um delicioso influxo de
Humanitas), segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma
ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa espiritual.
Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.

— Imagina, por exemplo, que eu não tinha nascido, continuou o
Quincas Borba; é positivo que não teria agora o prazer de conversar
contigo, comer esta batata, ir ao teatro, e para tudo dizer numa só
palavra: viver. Nota que eu não faço do homem um simples veículo
de Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo veículo, cocheiro e
passageiro; ele é o próprio Humanitas reduzido; daí a necessidade de
adorar-se a si próprio. Queres uma prova da superioridade do meu
sistema? Contempla a inveja. Não há moralista grego ou turco,
cristão ou muçulmano, que não troveje contra o sentimento da
inveja. O acordo é universal, desde os campos da Iduméia até o alto
da Tijuca. Ora bem; abre mão dos velhos preconceitos, esquece as
retóricas rafadas, e estuda a inveja, esse sentimento tão sutil e tão
nobre. Sendo cada homem uma redução de Humanitas, é claro que
nenhum homem é fundamentalmente oposto a outro homem,
quaisquer que sejam as aparências contrárias. Assim, por exemplo, o
algoz que executa o condenado pode excitar o vão clamor dos
poetas; mas substancialmente é Humanitas que corrige em
Humanitas uma infração da lei de Humanitas. O mesmo direi do
indivíduo que estripa a outro; é uma manifestação da força de
Humanitas. Nada obsta (e há exemplos) que ele seja igualmente
estripado. Se entendeste bem, facilmente compreenderás que a
inveja não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande
função do gênero humano, todos os sentimentos belicosos são os
mais adequados à sua felicidade. Daí vem que a inveja é uma
virtude.

Para que negá-lo? eu estava estupefato. A clareza da exposição, a
lógica dos princípios, o rigor das conseqüências, tudo isso parecia
superiormente grande, e foi-me preciso suspender a conversa por
alguns minutos, enquanto digeria a filosofia nova. Quincas Borba mal
podia encobrir a satisfação do triunfo. Tinha uma asa de frango no
prato, e trincava-a com filosófica serenidade. Eu fiz-lhe ainda
algumas objeções, mas tão frouxas, que ele não gastou muito tempo
em destruí-las.

— Para entender bem o meu sistema, concluiu ele, importa não
esquecer nunca o princípio universal, repartido e resumido em cada
homem. Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma
operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos de
Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a
fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera. Mas
eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema,
senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por
um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse
africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio
construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens,
levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a
cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango,
que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de
esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu
apetite.

Entre o queijo e o café, demonstrou-me Quincas Borba que o seu
sistema era a destruição da dor. A dor, segundo o Humanitismo, é
uma pura ilusão. Quando a criança é ameaçada por um pau, antes
mesmo de ter sido espancada, fecha os olhos e treme; essa
predisposição, é que constitui a base da ilusão humana, herdada e
transmitida. Não basta certamente a adoção do sistema para acabar
logo com a dor, mas é indispensável; o resto é a natural evolução das
coisas. Uma vez que o homem se compenetre bem de que ele é o
próprio Humanitas, não tem mais do que remontar o pensamento à
substância original para obstar qualquer sensação dolorosa. A
evolução, porém, é tão profunda, que mal se lhe podem assinar
alguns milhares de anos.

Quincas Borba leu-me daí a dias a sua grande obra. Eram quatro
volumes manuscritos, de cem páginas cada um, com letra miúda e
citações latinas. O último volume compunha-se de um tratado
político, fundado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha
do sistema, posto que concebida com um formidável rigor de lógica.
Reorganizada a sociedade pelo método dele, nem por isso ficavam
eliminadas a guerra, a insurreição, o simples murro, a facada
anônima, a miséria, a fome, as doenças; mas sendo esses supostos
flagelos verdadeiros equívocos do entendimento, porque não
passariam de movimentos externos da substância interior, destinados
a não influir sobre o homem, senão como simples quebra da
monotonia universal, claro estava que a sua existência não impediria
a felicidade humana. Mas ainda quando tais flagelos (o que era
radicalmente falso) correspondessem no futuro à concepção
acanhada de antigos tempos, nem por isso ficava destruído o
sistema, e por dois motivos: 1.° porque sendo Humanitas a
substância criadora e absoluta, cada indivíduo deveria achar a maior
delícia do mundo em sacrificar-se ao princípio de que descende; 2.°
porque, ainda assim, não diminuiria o poder espiritual do homem
sobre a Terra, inventada unicamente para seu recreio dele, como as
estrelas, as brisas, as tâmaras e o ruibarbo. Pangloss, dizia-me ele ao
fechar o livro, não era tão tolo como o pintou Voltaire.

CAPÍTULO CXVIII / A TERCEIRA FORÇA

A terceira força que me chamava ao bulício era o gosto de luzir, e,
sobretudo, a incapacidade de viver só. A multidão atraía-me, o
aplauso namorava-me. Se a idéia do emplasto me tem aparecido
nesse tempo, quem sabe? não teria morrido logo e estaria célebre.
Mas o emplasto não veio. Veio o desejo de agitar-me em alguma
coisa, com alguma coisa e por alguma coisa.

CAPÍTULO CXIX / PARÊNTESES

Quero deixar aqui, entre parêntesis, meia dúzia de máximas das
muitas que escrevi por esse tempo. São bocejos de enfado; podem
servir de epígrafe a discursos sem assunto:

* * *

Suporta-se com paciência a cólica do próximo.

* * *

Matamos o tempo; o tempo nos enterra.

* * *

Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da
carruagem seria diminuto, se todos andassem de
carruagem.

* * *

Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.

* * *

Não se compreende que um botocudo fure o beiço para
enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de
um joalheiro.

* * *

Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes
cair das nuvens, que de um terceiro andar.

CAPÍTULO CXX / “COMPELLE INTRARE”

— Não, senhor, agora quer você queira, quer não, há de casar, disseme
Sabina. Que belo futuro! Um solteirão sem filhos.

Sem filhos! A idéia de ter filhos deu-me um sobressalto; percorreume
outra vez o fluido misterioso. Sim, cumpria ser pai. A vida
celibata podia ter certas vantagens próprias, mas seriam tênues, e
compradas a troco da solidão. Sem filhos! Não; impossível. Dispusme
a aceitar tudo, ainda a aliança do Damasceno. Sem filhos! Como
já então depositasse grande confiança em Quincas Borba, fui ter com
ele e expus-lhe os movimentos internos da minha paternidade. O
filósofo ouviu-me com alvoroço; declarou-me que Humanitas se
agitava em meu seio; animou-me ao casamento, ponderou que eram
mais alguns convivas que batiam à porta, etc. Compelle intrare, como
dizia Jesus. E não me deixou sem provar que o apólogo evangélico
não era mais do que um prenúncio do Humanitismo, erradamente
interpretado pelos padres.

CAPÍTULO CXXI / MORRO ABAIXO

No fim de três meses, ia tudo à maravilha. O fluido, Sabina, os olhos
da moça, os desejos do pai, eram outros tantos impulsos que me
levavam ao matrimônio. A lembrança de Virgília aparecia de quando
em quando, à porta, e com ela um diabo negro que me metia à cara
um espelho, no qual eu via ao longe Virgília desfeita em lágrimas;
mas outro diabo vinha, cor-de-rosa, com outro espelho, em que se
refletia a figura de Nhã-loló, terna, luminosa, angélica.

Não falo dos anos. Não os sentia; acrescentarei até que os deitara
fora, certo domingo, em que fui à missa na capela do Livramento.
Como o Damasceno morava nos Cajueiros, eu acompanhava-os
muitas vezes à missa. O morro estava ainda nu de habitações, salvo
o velho palacete do alto, onde era a capela. Pois um domingo, ao
descer com Nhã-loló pelo braço, não sei que fenômeno se deu que fui
deixando aqui dois anos, ali quatro, logo adiante cinco, de maneira
que, quando cheguei abaixo, estava com vinte anos apenas, tão
lépidos como tinham sido.

Agora, se querem saber em que circunstância se deu o fenômeno,
basta-lhes ler este capítulo até o fim. Vínhamos da missa, ela, o pai e
eu. No meio do morro achamos um grupo de homens. Damasceno,
que vinha ao pé de nós, percebeu o que era e adiantou-se
alvoroçado; nós fomos atrás dele. E vimos isto: homens de todas as
idades, tamanhos e cores, uns em mangas de camisa, outros de
jaqueta, outros metidos em sobrecasacas esfrangalhadas; atitudes
diversas, uns de cócaras, outros com as mãos apoiadas nos joelhos,
estes sentados em pedras, aqueles encostados ao muro, e todos com
os olhos fixos no centro, e as almas debruçadas das pupilas.

— Que é? perguntou-me Nhã-loló.

Fiz-lhe sinal que se calasse; abri sutilmente caminho, e todos me
foram cedendo espaço, sem que positivamente ninguém me visse. O
centro tinha-lhes atado os olhos. Era uma briga de galos. Vi os dois
contendores, dois galos de esporão agudo, olho de fogo e bico afiado.
Ambos agitavam as cristas em sangue; o peito de um e de outro
estava desplumado e rubro; invadia-os o cansaço. Mas lutavam ainda
assim, olhos fitos nos olhos, bico abaixo, bico acima, golpe deste,
golpe daquele, vibrantes e raivosos. Damasceno não sabia mais
nada; o espetáculo eliminou para ele todo o universo. Em vão lhe
disse que era tempo de descer; ele não respondia, não ouvia,
concentrara-se no duelo. A briga de galos era uma de suas paixões.

Foi nessa ocasião que Nhã-loló me puxou brandamente pelo braço,
dizendo que nos fôssemos embora. Aceitei o conselho e vim com ela
por ali abaixo. Já disse que o morro era então desabitado; disse-lhes
também que vínhamos da missa, e não lhes tendo dito que chovia,
era claro que fazia bom tempo, um sol delicioso. E forte. Tão forte
que eu abri logo o guarda-sol, segurei-o pelo centro do cabo, e
inclinei-o por modo que ajuntei uma página à filosofia do Quincas
Borba: Humanitas osculou Humanitas... Foi assim que os anos me
vieram caindo pelo morro abaixo.

Ao sopé detivemo-nos alguns minutos, à espera de Damasceno; ele
veio daí a pouco rodeado dos apostadores, a comentar com eles a
briga. Um destes, tesoureiro das apostas, distribuía um velho maço
de notas de dez tostões, que os vencedores recebiam duplamente
alegres. Quanto aos galos vinham sobraçados pelo respectivo dono.
Um deles trazia a crista tão comida e ensangüentada, que vi logo
nele o vencido; mas era engano, — o vencido era o outro, que não
trazia crista nenhuma. Ambos tinham o bico aberto, respirando a
custo, esfalfados. Os apostadores, ao contrário, vinham alegres, sem
embargo das fortes comoções da luta; biografavam os contendores,
relembravam as proezas de ambos. Eu fui andando, vexado; Nhã-loló
vexadíssima.

CAPÍTULO CXXII / UMA INTENÇÃO MUITO FINA

O que vexava a Nhã-loló era o pai. A facilidade com que ele se
metera com os apostadores punha em relevo antigos costumes e
afinidades sociais, e Nhã-loló chegara a temer que tal sogro me
parecesse indigno. Era notável a diferença que ela fazia de si mesma;
estudava-se e estudava-me. A vida elegante e polida atraía-a,
principalmente porque lhe parecia o meio mais seguro de ajustar as
nossas pessoas. Nhã-loló observava, imitava, adivinhava; ao mesmo
tempo dava-se ao esforço de mascarar a inferioridade da família.
Naquele dia, porém, a manifestação do pai foi tamanha que a
entristeceu grandemente. Eu busquei então diverti-la do assunto,
dizendo-lhe muitas chanças e motes de bom-tom; vãos esforços, que
não a alegravam mais. Era tão profundo o abatimento, tão expressivo
o desânimo, que cheguei a atribuir a Nhã-loló a intenção positiva de
separar, no meu espírito, a sua causa da causa do pai. Este
sentimento pareceu-me de grande elevação; era uma afinidade mais
entre nós.

— Não há remédio, disse eu comigo, vou arrancar esta flor a este
pântano.

CAPÍTULO CXXIII / O VERDADEIRO COTRIM

Não obstante os meus quarenta e tantos anos, como eu amasse a
harmonia da família, entendi não tratar o casamento sem primeiro
falar ao Cotrim. Ele ouviu-me e respondeu-me seriamente que não
tinha opinião em negócio de parentes seus. Podiam supor-lhe algum
interesse, se acaso louvasse as raras prendas de Nhã-loló; por isso
calava-se. Mais: estava certo de que a sobrinha nutria por mim
verdadeira paixão, mas se ela o consultasse, o seu conselho seria
negativo. Não era levado por nenhum ódio; apreciava as minhas boas
qualidades, — não se fartava de as elogiar, como era de justiça; e
pelo que respeita a Nhã-loló, não chegaria jamais a negar que era
noiva excelente; mas daí a aconselhar o casamento ia um abismo.

— Lavo inteiramente as mãos, concluiu ele.

— Mas você achava outro dia que eu devia casar quanto antes...

— Isso é outro negócio. Acho que é indispensável casar,
principalmente tendo ambições políticas. Saiba que na política o
celibato é uma remora. Agora, quanto à noiva, não posso ter voto,
não quero, não devo, não é de minha honra. Parece-me que Sabina
foi além, fazendo-lhe certas confidências, segundo me disse; mas em
todo caso ela não é tia carnal de Nhã-loló, como eu. Olhe... mas
não... não digo...

— Diga.

— Não; não digo nada.

Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber
que ele possuía um caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui
injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventário de
meu pai. Reconheço que era um modelo. Argüiam-no de avareza, e
cuide que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de
uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é
o saldo que o deficit. Como era muito seco de maneiras tinha
inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado
neste particular era o de mandar com freqüência escravos ao
calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que
ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo
longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo
modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio
requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um
homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o
Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos,
e na dor que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a alguns meses;
prova irrefutável, acho eu, e não única. Era tesoureiro de uma
confraria, e irmão de várias irmandades, e até irmão remido de uma
destas, o que não se coaduna muito com a reputação da avareza;
verdade é que o benefício não caíra no chão: a irmandade (de que
ele fora juiz) mandara-lhe tirar o retrato a óleo. Não era perfeito,
decerto; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a
notícia de um ou outro benefício que praticava, — sestro repreensível
ou não louvável, concordo; mas ele desculpava-se dizendo que as
boas ações eram contagiosas, quando públicas; razão a que se não
pode negar algum peso. Creio mesmo (e nisto faço o seu maior
elogio) que ele não praticava, de quando em quando, esses
benefícios senão com o fim de espertar a filantropia dos outros; e se
tal era o intuito, força é confessar que a publicidade tornava-se uma
condição sine qua non. Em suma, poderia dever algumas atenções,
mas não devia um real a ninguém.

CAPÍTULO CXXIV / VÁ DE INTERMÉDIO

Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Não obstante, se eu
não compusesse este capítulo, padeceria o leitor um forte abalo,
assaz danoso ao efeito do livro. Saltar de um retrato a um epitáfio,
pode ser real e comum; o leitor, entretanto, não se refugia no livro,
senão para escapar à vida. Não digo que este pensamento seja meu;
digo que há nele uma dose de verdade, e que, ao menos, a forma é
pinturesca. E repito: não é meu.

CAPÍTULO CXXV / EPITÁFIO

________________________

AQUI JAZ

D. EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO

MORTA

AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE

ORAI POR ELA!

________________________

CAPÍTULO CXXVI / DESCONSOLAÇÃO

O epitáfio diz tudo. Vale mais do que se lhes narrasse a moléstia de
Nhã-loló, a morte, o desespero da família, o enterro. Ficam sabendo
que morreu; acrescentarei que foi por ocasião da primeira entrada da
febre amarela. Não digo mais nada, a não ser que a acompanhei até
o último jazigo, e me despedi triste, mas sem lágrimas. Concluí que
talvez não a amasse deveras.

Vejam agora a que excessos pode levar uma inadvertência; doeu-me
um pouco a cegueira da epidemia que, matando à direita e à
esquerda, levou também uma jovem dama, que tinha de ser minha
mulher; não cheguei a entender a necessidade da epidemia, menos
ainda daquela morte. Creio até que esta me pareceu ainda mais
absurda que todas as outras mortes. Quincas Borba, porém,
explicou-me que epidemias eram úteis à espécie, embora desastrosas
para uma certa porção de indivíduos; fez-me notar que, por mais
horrendo que fosse o espetáculo, havia uma vantagem de muito
peso: a sobrevivência do maior número. Chegou a perguntar-me se,
no meio do luto geral, não sentia eu algum secreto encanto em ter
escapado às garras da peste; mas esta pergunta era tão insensata,
que ficou sem resposta.

Se não contei a morte, não conto igualmente a missa do sétimo dia.
A tristeza do Damasceno era profunda; esse pobre homem parecia
uma ruína. Quinze dias depois estive com ele; continuava
inconsolável, e dizia que a dor grande com que Deus o castigara fora
ainda aumentada com a que lhe infligiram os homens. Não me disse
mais nada. Três semanas depois tornou ao assunto, e então
confessou-me que, no meio do desastre irreparável, quisera ter a
consolação da presença dos amigos. Doze pessoas apenas, e três
quartas partes amigos do Cotrim, acompanharam à cova o cadáver
de sua querida filha. E ele fizera expedir oitenta convites. Pondereilhe
que as perdas eram tão gerais que bem se podia desculpar essa
desatenção aparente. Damasceno abanava a cabeça de um modo
incrédulo e triste.

— Qual! gemia ele, desampararam-me.

Cotrim, que estava presente:

— Vieram os que deveras se interessam por você e por nós. Os
oitenta viriam por formalidade, falariam da inércia do governo, das
panacéias dos boticários, do preço das casas, ou uns dos outros...

Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabeça, e suspirou:

— Mas viessem!

CAPÍTULO CXXVII / FORMALIDADE

Grande coisa é haver recebido do céu uma partícula da sabedoria, o
dom de achar as relações das coisas, a faculdade de as comparar e o
talento de concluir! Eu tive essa distinção psíquica; eu a agradeço
ainda agora do fundo do meu sepulcro.

De fato, o homem vulgar que ouvisse a última palavra do Damasceno
não se lembraria dela, quando, tempos depois, houvesse de olhar
para uma gravura representando seis damas turcas. Pois eu lembreime.
Eram seis damas de Constantinopla, — modernas, — em trajos
de rua, cara tapada, não com um espesso pano que as cobrisse
deveras, mas com um véu tenuíssimo, que simulava descobrir
somente os olhos, e na realidade descobria a cara inteira. E eu achei
graça a essa esperteza da faceirice muçulmana, que assim esconde o
rosto, — e cumpre o uso, — mas não o esconde, — e divulga a
beleza. Aparentemente, nada há entre as damas turcas e o
Damasceno; mas se tu és um espírito profundo e penetrante (e
duvido muito que me negues isso), compreenderás que, tanto num
como noutro caso, surge aí a orelha de uma rígida e meiga
companheira do homem social...

Amável Formalidade, tu és, sim, o bordão da vida, o bálsamo dos
corações, a medianeira entre os homens, o vínculo da Terra e do
Céu; tu enxugas as lágrimas de um pai, tu captas a indulgência de
um Profeta. Se a dor adormece, e a consciência se acomoda, a quem,
senão a ti, devem esse imenso benefício? A estima que passa de
chapéu na cabeça não diz nada à alma; mas a indiferença que corteja
deixa-lhe uma deleitosa impressão. A razão é que, ao contrário de
uma velha fórmula absurda, não é a letra que mata; a letra dá vida;
o espírito é que é objeto de controvérsia, de dúvida, de interpretação
e conseguintemente de luta e de morte. Vive tu, amável Formalidade,
para sossego do Damasceno e glória de Muamede.

CAPÍTULO CXXVIII / NA CÂMARA

E notai bem que eu vi a gravura turca, dois anos depois das palavras
de Damasceno, e vi-a na Câmara dos Deputados, em meio de grande
burburinho, enquanto um deputado discutia um parecer da comissão
do orçamento, sendo eu também deputado. Para quem há lido este
livro é escusado encarecer a minha satisfação, e para os outros é
igualmente inútil. Era deputado, e vi a gravura turca, recostado na
minha cadeira, entre um colega, que contava uma anedota, e outro,
que tirava a lápis, nas costas de uma sobrecarta, o perfil de orador.
O orador era o Lobo Neves. A onda da vida trouxe-nos à mesma
praia, como duas botelhas de náufragos, ele contendo o seu
ressentimento, eu devendo conter o meu remorso; e emprego esta
forma suspensiva, dubitativa ou condicional, para o fim de dizer que
efetivamente não continha nada, a não ser a ambição de ser
ministro.

CAPÍTULO CXXIX / SEM REMORSOS

Não tinha remorsos. Se possuísse os aparelhos próprios, incluía neste
livro uma página de química, porque havia de decompor o remorso
até os mais simples elementos, com o fim de saber de um modo
positivo e concludente por que razão Aquiles passeia à roda de Tróia
o cadáver do adversário, e lady Macbeth passeia à volta da sala a sua
mancha de sangue. Mas eu não tenho aparelhos químicos, como não
tinha remorsos; tinha vontade de ser ministro de Estado. Contudo, se
hei de acabar este capítulo, direi que não quisera ser Aquiles nem
lady Macbeth; e que, a ser alguma coisa, antes Aquiles, antes
passear ovante o cadáver do que a mancha; ouvem-se no fim as
súplicas de Príamo, e ganha-se uma bonita reputação militar e
literária. Eu não ouvia as súplicas de Príamo, mas o discurso do Lobo
Neves, e não tinha remorsos.

CAPÍTULO CXXX / PARA INTERCALAR NO CAP. CXXIX

A primeira vez que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi
num baile em 1855. Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e
ostentava às luzes o mesmo par de ombros de outro tempo. Não era
a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda estava
formosa, de uma formosura outoniça, realçada pela noite. Lembrame
que falamos muito, sem aludir a coisa nenhuma do passado.
Subentendia-se tudo. Um dito remoto, vago, ou então um olhar, e
mais nada. Pouco depois retirou-se; eu fui vê-la descer as escadas, e
não sei por que fenômeno de ventriloquismo cerebral (perdoem-me
os filólogos essa frase bárbara) murmurei comigo esta palavra
profundamente retrospectiva:

“Magnífica!”

Convém intercalar este capítulo entre a primeira oração e a segunda
do capítulo CXXIX.

CAPÍTULO CXXXI / DE UMA CALÚNIA

Como eu acabava de dizer aquilo, pelo processo ventríloquo-cerebral,
— o que era simples opinião e não remorso, — senti que alguém me
punha a mão no ombro. Voltei-me; era um antigo companheiro,
oficial de marinha, jovial, um pouco despejado de maneiras. Ele
sorriu maliciosamente, e disse-me:

— “Seu” maganão! Recordações do passado, hein?

— Viva o passado!

— Você naturalmente foi reintegrado no emprego.

— Salta, pelintra! disse eu, ameaçando-o com o dedo.

Confesso que este diálogo era uma indiscrição, — principalmente a
última réplica. E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as
mulheres é que têm fama de indiscretas, e não quero acabar o livro
sem retificar essa noção do espírito humano. Em pontos de aventura
amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo, de um
modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam
por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A
razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo CI
e outras) entrega-se por amor, ou seja o amor-paixão de Stendhal,
ou o puramente físico de algumas damas romanas, por exemplo, ou
polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas;
mas o homem, — falo do homem de uma sociedade culta e elegante,
— o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso
(e refiro-me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro
homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de
dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o
homem, sentindo-se causa da infração e vencedor de outro homem,
fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos
ríspido e menos secreto, — essa boa fatuidade, que é a transpiração
luminosa do mérito.

Mas seja ou não verdadeira a minha explicação, basta-me deixar
escrito nesta página, para uso dos séculos, que a indiscrição das
mulheres é uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo
menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por
desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos
olhares; e é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha
de Navarra, empregou algures esta metáfora para dizer que toda a
aventura amorosa vinha descobrir-se por força, mais tarde ou mais
cedo: “Não há cachorrinho tão adestrado, que alfim lhe não ouçamos
o latir”.

CAPÍTULO CXXXII / QUE NÃO É SÉRIO

Citando o dito da rainha de Navarra, ocorre-me que entre o nosso
povo, quando uma pessoa vê outra pessoa arrufada, costuma
perguntar-lhe: “Gentes, quem matou seus cachorrinhos?” como se
dissesse: — “quem lhe levou os amores, as aventuras secretas, etc.”
Mas este capítulo não é sério.

CAPÍTULO CXXXIII / O PRINCÍPIO DE HELVETIUS

Estávamos no ponto em que o oficial de marinha me arrancou a
confissão dos amores de Virgília, e aqui emendo eu o princípio de
Helvetius, — ou, por outra, explico-o. O meu interesse era calar;
confirmar a suspeita de uma coisa antiga fora provocar algum ódio
sopitado, dar origem a um escândalo, quando menos adquirir a
reputação de indiscreto. Era esse o interesse; e entendendo-se o
princípio de Helvetius de um modo superficial, isso é o que devia ter
feito. Mas eu já dei o motivo da indiscrição masculina: antes daquele
interesse de segurança, havia outro, o do desvanecimento, que é
mais íntimo, mais imediato: o primeiro era reflexivo, supunha um
silogismo anterior; o segundo era espontâneo, instintivo, vinha das
entranhas do sujeito; finalmente, o primeiro tinha o efeito remoto, o
segundo próximo. Conclusão: o princípio de Helvetius é verdadeiro no
meu caso; — a diferença é que não era o interesse aparente, mas o
recôndito.

CAPÍTULO CXXXIV / CINQÜENTA ANOS

Não lhes disse ainda, — mas digo-o agora, — que quando Virgília
descia a escada, e o oficial de marinha me tocava no ombro, tinha eu
cinqüenta anos. Era portanto a minha vida que descia pela escada
abaixo, — ou a melhor parte, ao menos, uma parte cheia de
prazeres, de agitações, de sustos, — capeada de dissimulação e
duplicidade, — mas enfim a melhor, se devemos falar a linguagem
usual. Se, porém, empregarmos outra mais sublime, a melhor parte
foi a restante, como eu terei a honra de lhes dizer nas poucas
páginas deste livro.

Cinqüenta anos! Não era preciso confessá-lo. Já se vai sentindo que o
meu estilo não é tão lesto como nos primeiros dias. Naquela ocasião,
cessado o diálogo com o oficial de marinha, que enfiou a capa e saiu,
confesso que fiquei um pouco triste. Voltei à sala, lembrou-me dançar
uma polca, embriagar-me das luzes, das flores, dos cristais, dos
olhos bonitos, e do burburinho surdo e ligeiro das conversas
particulares. E não me arrependo; remocei. Mas, meia hora depois,
quando me retirei do baile, às quatro da manhã, o que é que fui
achar no fundo do carro? Os meus cinqüenta anos. Lá estavam eles
os teimosos, não tolhidos de frio, nem reumáticos, — mas cochilando
a sua fadiga, um pouco cobiçosos de cama e de repouso. Então, — e
vejam até que ponto pode ir a imaginação de um homem, com sono,
— então pareceu-me ouvir de um morcego escarapitado no tejadilho:
Sr. Brás Cubas, a rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas
luzes, nas sedas, — enfim, nos outros.

CAPÍTULO CXXXV / “OBLIVION”

E agora sinto que, se alguma dama tem seguido estas páginas, fecha
o livro e não lê as restantes. Para ela extinguiu-se o interesse da
minha vida, que era o amor. Cinqüenta anos! Não é ainda a invalidez,
mas já não é a frescura. Venham mais dez, e eu entenderei o que um
inglês dizia, entenderei que “coisa é não achar já quem se lembre de
meus pais, e de que modo me há de encarar o próprio
ESQUECIMENTO”.

Vai em versaletes esse nome. OBLIVION! Justo é que se dêem todas
as honras a um personagem tão desprezado e tão digno, conviva da
última hora, mas certo. Sabe-o a dama que luziu na aurora do atual
reinado, e mais dolorosamente a que ostentou suas graças em flor
sob o ministério Paraná, porque esta acha-se mais perto do triunfo, e
sente já que outras lhe tomaram o carro. Então, se é digna de si
mesma, não teima em espertar a lembrança morta ou expirante; não
busca no olhar de hoje a mesma saudação do olhar de ontem,
quando eram outros os que encetavam a marcha da vida, de alma
alegre e pé veloz. Tempora mutantur. Compreende que este turbilhão
é assim mesmo, leva as folhas do mato e os farrapos do caminho,
sem exceção nem piedade; e se tiver um pouco de filosofia, não
inveja, mas lastima as que lhe tomaram o carro, porque também elas
hão de ser apeadas pelo estribeiro OBLIVION. Espetáculo, cujo fim é
divertir o planeta Saturno, que anda muito aborrecido.

CAPÍTULO CXXXVI / INUTlLIDADE

Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.

CAPÍTULO CXXXVII / A BARRETINA

E daí, não; ele resume as reflexões que fiz no dia seguinte ao
Quincas Borba, acrescentando que me sentia acabrunhado, e mil
outras coisas tristes. Mas esse filósofo, com o elevado tino de que
dispunha, bradou-me que eu ia escorregando na ladeira fatal da
melancolia.

— Meu caro Brás Cubas, não te deixes vencer desses vapores. Que
diacho! é preciso ser homem! ser forte! lutar! vencer! brilhar! influir!
dominar! Cinqüenta anos é a idade da ciência e do governo. Ânimo,
Brás Cubas; não me sejas palerma. Que tens tu com essa sucessão
de ruína a ruína ou de flor a flor? Trata de saborear a vida; e fica
sabendo que a pior filosofia é a do choramigas que se deita à
margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas.
O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei, e trata de
aproveitá-la.

Vê-se nas menores coisas o que vale a autoridade de um grande
filósofo. As palavras do Quincas Borba tiveram o condão de sacudir o
torpor moral e mental em que andava. Vamos lá; façamo-nos
governo, é tempo. Eu não havia intervindo até então nos grandes
debates. Cortejava a pasta por meio de rapapés, chás, comissões e
votos; e a pasta não vinha. Urgia apoderar-me da tribuna.

Comecei devagar. Três dias depois, discutindo-se o orçamento da
justiça, aproveitei o ensejo para perguntar modestamente ao ministro
se não julgava útil diminuir a barretina da guarda nacional. Não tinha
vasto alcance o objeto da pergunta; mas ainda assim demonstrei que
não era indigno das cogitações de um homem de Estado; e citei
Filopémen, que ordenou a substituição dos broquéis de suas tropas,
que eram pequenos, por outros maiores, e bem assim as lanças, que
eram demasiado leves; fato que a história não achou que
desmentisse a gravidade de suas páginas. O tamanho das nossas
barretinas estava pedindo um corte profundo, não só por serem
deselegantes, mas também por serem anti-higiênicas. Nas paradas,
ao sol, o excesso de calor produzido por elas podia ser fatal. Sendo
certo que um dos preceitos de Hipócrates era trazer a cabeça fresca,
parecia cruel obrigar um cidadão, por simples consideração de
uniforme, a arriscar a saúde e a vida, e conseqüentemente o futuro
da família. A Câmara e o governo deviam lembrar-se que a guarda
nacional era o anteparo da liberdade e da independência, e que o
cidadão, chamado a um serviço gratuito, freqüente e penoso, tinha
direito a que se lhe diminuísse o ônus, decretando um uniforme leve
e maneiro. Acrescia que a barretina, por seu peso, abatia a cabeça
dos cidadãos, e a pátria precisava de cidadãos cuja fronte pudesse
levantar-se altiva e serena diante do poder; e concluí com esta idéia:
O chorão, que inclina os seus galhos para a terra, é árvore de
cemitério; a palmeira, ereta e firme, é árvore do deserto, das praças
e dos jardins.

Vária foi a impressão deste discurso. Quanto à forma, ao rapto
eloqüente, à parte literária e filosófica, a opinião foi só uma;
disseram-me todos que era completo, e que de uma barretina
ninguém ainda conseguira tirar tantas idéias. Mas a parte política foi
considerada por muitos deplorável; alguns achavam o meu discurso
um desastre parlamentar; enfim, vieram dizer-me que outros me
davam já em oposição, entrando nesse número os oposicionistas da
Câmara, que chegaram a insinuar a conveniência de uma moção de
desconfiança. Repeli energicamente tal interpretação, que não era só
errônea, mas caluniosa, à vista da notoriedade com que eu
sustentava o gabinete; acrescentei que a necessidade de diminuir a
barretina não era tamanha que não pudesse esperar alguns anos; e
que, em todo caso, eu transigiria na extensão do corte, contentandome
com três quartos de polegada ou menos; enfim, dado mesmo que
a minha idéia não fosse adotada, bastava-me tê-la iniciado no
parlamento.

Quincas Borba, porém, não fez restrição alguma. Não sou homem
político, disse-me ele ao jantar; não sei se andaste bem ou mal; sei
que fizeste um excelente discurso. E então notou as partes mais
salientes, as belas imagens, os argumentos fortes, com esse
comedimento de louvor que tão bem fica a um grande filósofo;
depois, tomou o assunto à sua conta, e impugnou a barretina com tal
força, com tamanha lucidez, que acabou convencendo-me
efetivamente do seu perigo.

CAPÍTULO CXXXVIII / A UM CRÍTICO

Meu caro crítico,

Algumas páginas atrás, dizendo eu que tinha cinqüenta anos,
acrescentei: “Já se vai sentindo que o meu estilo não é tão lesto
como nos primeiros dias”. Talvez aches esta frase incompreensível,
sabendo-se o meu atual estado; mas eu chamo a tua atenção para a
sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer não é que esteja
agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte não
envelhece. Quero dizer, sim, que em cada fase da narração da minha
vida experimento a sensação correspondente. Valha-me Deus! é
preciso explicar tudo.

CAPÍTULO CXXXIX / DE COMO NÃO FUI MINISTRO D’ESTADO

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CAPÍTULO CXL / QUE EXPLICA O ANTERIOR

Há coisas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo
anterior. Podem entendê-lo os ambiciosos malogrados. Se a paixão
do poder é a mais forte de todas, como alguns inculcam, imaginem o
desespero, a dor, o abatimento do dia em que perdi a cadeira da
Câmara dos Deputados. Iam-se-me as esperanças todas; terminava
a carreira política. E notem que o Quincas Borba, por induções
filosóficas que fez, achou que a minha ambição não era a paixão
verdadeira do poder, mas um capricho, um desejo de folgar. Na
opinião dele, este sentimento, não sendo mais profundo que o outro,
amofina muito mais, porque orça pelo amor que as mulheres têm às
rendas e toucados. Um Cromwell ou um Bonaparte, acrescentava ele,
por isso mesmo que os queima a paixão do poder, lá chegam à fina
força ou pela escada da direita, ou pela da esquerda. Não era assim o
meu sentimento; este, não tendo em si a mesma força, não tem a
mesma certeza do resultado; e daí a maior aflição, o maior
desencanto, a maior tristeza. O meu sentimento, segundo o
Humanitismo...

— Vai para o diabo com o teu Humanitismo, interrompi-o; estou farto
de filosofias que me não levam a coisa nenhuma.

A dureza da interrupção, tratando-se de tamanho filósofo, equivalia a
um desacato; mas ele próprio desculpou a irritação com que lhe falei.
Trouxeram-nos café; era uma hora da tarde, estávamos na minha
sala de estudo, uma bela sala, que dava para o fundo da chácara,
bons livros, objetos d'arte, um Voltaire entre eles, um Voltaire de
bronze, que nessa ocasião parecia acentuar o risinho de sarcasmo,
com que me olhava, o ladrão; cadeiras excelentes; fora, o sol, um
grande sol, que o Quincas Borba, não sei se por chalaça ou poesia,
chamou um dos ministros da natureza; corria um vento fresco, o céu
estava azul. De cada janela, — eram três — pendia uma gaiola com
pássaros, que chilreavam as suas óperas rústicas. Tudo tinha a
aparência de uma conspiração das coisas contra o homem: e,
conquanto eu estivesse na minha sala, olhando para a minha
chácara, sentado na minha cadeira, ouvindo os meus pássaros, ao pé
dos meus livros, alumiado pelo meu sol, não chegava a curar-me das
saudades daquela outra cadeira, que não era minha.

CAPÍTULO CXLI / OS CÃES

— Mas, enfim,, que pretendes fazer agora? perguntou-me Quincas
Borba, indo pôr a xícara vazia no parapeito de uma das janelas.

— Não sei; vou meter-me na Tijuca; fugir aos homens. Estou
envergonhado, aborrecido. Tantos sonhos, meu caro Borba, tantos
sonhos, e não sou nada.

— Nada! interrompeu-me Quincas Borba com um gesto de
indignação.

Para distrair-me, convidou-me a sair; saímos para os lados do
Engenho Velho. Íamos a pé, filosofando as coisas. Nunca me há de
esquecer o benefício desse passeio. A palavra daquele grande homem
era o cordial da sabedoria. Disse-me ele que eu não podia fugir ao
combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir um jornal.
Chegou a usar uma expressão menos elevada, mostrando assim que
a língua filosófica podia, uma ou outra vez, retemperar-se no calão
do povo. Funda um jornal, disse-me ele, e “desmancha toda esta
igrejinha”.

— Magnífica idéia! Vou fundar um jornal, vou escachá-los, vou...

— Lutar. Podes escachá-los ou não; o essencial é que lutes. Vida é
luta. Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo
universal.

Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de um
homem vulgar não teria valor. Quincas Borba fez-me parar e
observar os cães. Eram dois. Notou que ao pé deles estava um osso,
motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção para a
circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples osso nu. Os
cães mordiam-se, rosnavam, com o furor nos olhos... Quincas Borba
meteu a bengala debaixo do braço, e parecia em êxtase.

— Que belo que isto é! dizia ele de quando em quando.

Quis arrancá-lo dali, mas não pude; ele estava arraigado ao chão, e
só continuou a andar, quando a briga cessou inteiramente, e um dos
cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte. Notei
que ficara sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo
convinha a um grande filósofo. Fez-me observar a beleza do
espetáculo, relembrou o objeto da luta, concluiu que os cães tinham
fome; mas a privação do alimento era nada para os efeitos gerais da
filosofia. Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo o
espetáculo mais é grandioso: as criaturas humanas é que disputam
aos cães os ossos e outros manjares menos apetecíveis; luta que se
complica muito, porque entra em ação a inteligência do homem, com
todo o acúmulo de sagacidade que lhe deram os séculos, etc.

CAPÍTULO CXLII / O PEDIDO SECRETO

Quanta coisa num minuete! como dizia o outro. Quanta coisa numa
briga de cães! Mas eu não era um discípulo servil ou medroso, que
deixasse de fazer uma ou outra objeção adequada. Andando, disselhe
que tinha uma dúvida; não estava bem certo da vantagem de
disputar a comida aos cães. Ele respondeu-me com excepcional
brandura:

— Disputá-la aos outros homens é mais lógico, porque a condição dos
contendores é a mesma, e leva o osso o que for mais forte. Mas por
que não será um espetáculo grandioso disputá-lo aos cães?
Voluntariamente, comem-se gafanhotos, como o Precursor, ou coisa
pior, como Ezequiel; logo, o ruim é comível; resta saber se é mais
digno do homem disputá-lo, por virtude de uma necessidade natural,
ou preferi-lo, para obedecer a uma exaltação religiosa, isto é,
modificável, ao passo que a fome é eterna, como a vida e como a
morte.

Estávamos à porta de casa; deram-me uma carta, dizendo que vinha
de uma senhora. Entramos, e o Quincas Borba, com a discrição
própria de um filósofo, foi ler a lombada dos livros de uma estante,
enquanto eu lia a carta, que era de Virgília:

“Meu bom amigo,

D. Plácida está muito mal. Peço-lhe o favor de fazer
alguma coisa por ela; mora no Beco das Escadinhas;
veja se alcança metê-la na Misericórdia.

S
u
a
a
m
i
g
a
s
i
n
c
e
r
a
,

Não era a letra fina e correta de Virgília, mas grossa e desigual; o V
da assinatura não passava de um rabisco sem intenção alfabética; de
maneira que, se a carta aparecesse, era muito difícil atribuir-lhe a
autoria. Virei e revirei o papel. Pobre D. Plácida! Mas eu tinha-lhe
deixado os cinco contos da praia de Botafogo, e não podia
compreender que...

— Vais compreender, disse Quincas Borba, tirando um livro da
estante.

— O quê? perguntei espantado.

A imagem vinculada não pode ser exibida. Talvez o arquivo tenha sido movido, renomeado ou excluído. Verifique se o vínculo aponta para o arquivo e o local corretos.
— Vais compreender que eu só te disse a verdade. Pascal é um dos
meus avôs espirituais; e, conquanto a minha filosofia valha mais que
a dele, não posso negar que era um grande homem. Ora, que diz ele
nesta página? — E, chapéu na cabeça, bengala sobraçada, apontava
o lugar com o dedo. — Que diz ele? Diz que o homem tem “uma
grande vantagem sobre o resto do universo: sabe que morre, ao
passo que o universo ignora-o absolutamente”. Vês? Logo, o homem
que disputa o osso a um cão tem sobre este a grande vantagem de
saber que tem fome; e é isto que torna grandiosa a luta, como eu
dizia. “Sabe que morre” é uma expressão profunda; creio todavia que
é mais profunda a minha expressão: sabe que tem fome. Porquanto o
fato da morte limita, por assim dizer, o entendimento humano; a
consciência da extinção dura um breve instante e acaba para nunca
mais, ao passo que a fome tem a vantagem de voltar, de prolongar o
estado consciente. Parece-me (se não vai nisso alguma imodéstia)
que a fórmula de Pascal é inferior à minha, sem todavia deixar de ser
um grande pensamento, e Pascal um grande homem.

CAPÍTULO CXLIII / NÃO VOU

Enquanto ele restituía o livro à estante, relia eu o bilhete. Ao jantar,
vendo que eu falava pouco, mastigava sem acabar de engolir, fitava
o canto da sala, a ponta da mesa, um prato, uma cadeira, uma
mosca invisível, disse-me ele: — Tens alguma coisa; aposto que foi
aquela carta? — Foi. Realmente, sentia-me aborrecido, incomodado
com o pedido de Virgília. Tinha dado a D. Plácida cinco contos de
réis; duvido muito que ninguém fosse mais generoso do que eu, nem
tanto. Cinco contos! E que fizera deles? Naturalmente botou-os fora,
comeu-os em grandes festas, e agora toca para a Misericórdia, e eu
que a leve! Morre-se em qualquer parte. Acresce que eu não sabia ou
não me lembrava do tal Beco das Escadinhas; mas, pelo nome,
parecia-me algum recanto estreito e escuro da cidade. Tinha de lá ir,
chamar a atenção dos vizinhos, bater à porta, etc. Que maçada! Não
vou.

CAPÍTULO CXLIV / UTILIDADE RELATIVA

Mas a noite, que é boa conselheira, ponderou que a cortesia mandava
obedecer aos desejos da minha antiga dama.

— Letras vencidas, urge pagá-las, disse eu ao levantar-me.

Depois do almoço fui à casa de D. Plácida; achei um molho de ossos,
envolto em molambos, estendido sobre um catre velho e
nauseabundo; dei-lhe algum dinheiro. No dia seguinte fi-la
transportar para a Misericórdia, onde ela morreu uma semana depois.
Minto: amanheceu morta; saiu da vida às escondidas, tal qual
entrara. Outra vez perguntei, a mim mesmo, como no capítulo LXXV,
se era para isto que o sacristão da Sé e a doceira trouxeram Dona
Plácida à luz, num momento de simpatia específica. Mas adverti logo
que, se não fosse D. Plácida, talvez os meus amores com Virgília
tivessem sido interrompidos, ou imediatamente quebrados, em plena
efervescência; tal foi, portanto, a utilidade da vida de D. Plácida.
Utilidade relativa, convenho; mas que diacho há absoluto nesse
mundo?

CAPÍTULO CXLV / SIMPLES REPETIÇÃO

Quanto aos cinco contos, não vale a pena dizer que um canteiro da
vizinhança fingiu-se enamorado de D. Plácida, logrou espertar-lhe os
sentidos, ou a vaidade, e casou com ela; no fim de alguns meses
inventou um negócio, vendeu as apólices e fugiu com o dinheiro. Não
vale a pena. É o caso dos cães do Quincas Borba. Simples repetição
de um capítulo.

CAPÍTULO CXLVI / O PROGRAMA

Urgia fundar o jornal. Redigi o programa, que era uma aplicação
política do Humanitismo; somente, como o Quincas Borba não
houvesse ainda publicado o livro (que aperfeiçoava de ano em ano),
assentamos de lhe não fazer nenhuma referência. Quincas Borba
exigiu apenas uma declaração, autógrafa e reservada, de que alguns
princípios novos aplicados à política eram tirados do livro dele, ainda
inédito.

Era a fina flor dos programas; prometia curar a sociedade, destruir os
abusos, defender os sãos princípios de liberdade e conservação; fazia
um apelo ao comércio e à lavoura; citava Guizot e Ledru-Rollin, e
acabava com esta ameaça, que o Quincas Borba achou mesquinha e
local: “A nova doutrina que professamos há de inevitavelmente
derrubar o atual ministério”. Confesso que, nas circunstâncias
políticas da ocasião, o programa pareceu-me uma obra-prima. A
ameaça do fim, que o Quincas Borba achou mesquinha, demonstreilhe
que era saturada do mais puro Humanitismo, e ele mesmo o
confessou depois. Porquanto, o Humanitismo não excluía nada; as
guerras de Napoleão e uma contenda de cabras eram, segundo a
nossa doutrina, a mesma sublimidade, com a diferença que os
soldados de Napoleão sabiam que morriam, coisa que aparentemente
não acontece às cabras. Ora, eu não fazia mais do que aplicar às
circunstâncias a nossa fórmula filosófica: Humanitas queria substituir
Humanitas para consolação de Humanitas.

— Tu és o meu discípulo amado, o meu califa, bradou Quincas Borba,
com uma nota de ternura, que até então lhe não ouvira. Posso dizer
como o grande Muamede: nem que venham agora contra mim o sol e
a lua, não recuarei das minhas idéias. Crê, meu caro Brás Cubas, que
esta é a verdade eterna, anterior aos mundos, posterior aos séculos.

CAPÍTULO CXLVII / O DESATINO

Mandei logo para a imprensa uma notícia discreta, dizendo que
provavelmente começaria a publicação de um jornal oposicionista, daí
a algumas semanas, redigido pelo Dr. Brás Cubas. Quincas Borba, a
quem li a notícia, pegou da pena, e acrescentou ao meu nome, com
uma fraternidade verdadeiramente humanística, esta frase: “um dos
mais gloriosos membros da passada Câmara”.

No dia seguinte entra-me em casa o Cotrim. Vinha um pouco
transtornado, mas dissimulava, afetando sossego e até alegria. Vira a
notícia do jornal, e achou que devia, como amigo e parente,
dissuadir-me de semelhante idéia. Era um erro, um erro fatal.
Mostrou que eu ia colocar-me numa situação difícil, e de certa
maneira trancar as portas do parlamento. O ministério, não só lhe
parecia excelente, o que aliás podia não ser a minha opinião, mas
com certeza viveria muito; e que podia eu ganhar com indispô-lo
contra mim? Sabia que alguns dos ministros me eram afeiçoados;
não era impossível uma vaga, e... Interrompi-o nesse ponto, para lhe
dizer que meditara muito o passo que ia dar, e não podia recuar uma
linha. Cheguei a propor-lhe a leitura do programa, mas ele recusou
energicamente, dizendo que não queria ter a mínima parte no meu
desatino.

— É um verdadeiro desatino, repetiu ele; pense ainda alguns dias, e
verá que é um desatino.

A mesma coisa disse Sabina, à noite, no teatro. Deixou a filha no
camorote, com o Cotrim, e trouxe-me ao corredor.

— Mano Brás, que é que você vai fazer? perguntou-me aflita. Que
idéia é essa de provocar o governo, sem necessidade, quando
podia...

Expliquei-lhe que não me convinha mendigar uma cadeira no
parlamento; que a minha idéia era derrubar o ministério, por não me
parecer adequado à situação — e a certa fórmula filosófica; afiancei
que empregaria sempre uma linguagem cortês, embora enérgica. A
violência não era especiaria do meu paladar. Sabina bateu com o
leque na ponta dos dedos, abanou a cabeça, e tornou ao assunto com
um ar de súplica e ameaça, alternadamente; eu disse-lhe que não,
que não, e que não. Desenganada, lançou-me em rosto preferi os
conselhos de pessoas estranhas e invejosas aos dela e do marido. —
Pois siga o que lhe parecer, concluiu; nós cumprimos a nossa
obrigação. — Deu-me as costas e voltou ao camarote.

CAPÍTULO CXLVIII / O PROBLEMA INSOLÚVEL

Publiquei o jornal. Vinte e quatro horas depois, aparecia em outros
uma declaração do Cotrim, dizendo, em substância, que “posto não
militasse em nenhum dos partidos em que se dividia a pátria, achava
conveniente deixar bem claro que não tinha influência nem parte
direta ou indireta na folha de seu cunhado, o Dr. Brás Cubas, cujas
idéias e procedimento político inteiramente reprovava. O atual
ministério (como aliás qualquer outro composto de iguais
capacidades) parecia-lhe destinado a promover a felicidade pública”.

Não podia acabar de crer nos meus olhos. Esfreguei-os uma e duas
vezes, e reli a declaração inoportuna, insólita e enigmática. Se ele
nada tinha com os partidos, que lhe importava um incidente tão
vulgar como a publicação de uma folha? Nem todos os cidadãos que
acham bom ou mau um ministério fazem declarações tais pela
imprensa, nem são obrigados a fazê-las. Realmente, era um mistério
a intrusão do Cotrim neste negócio, não menos que a sua agressão
pessoal. Nossas relações até então tinham sido lhanas e benévolas;
não me lembrava nenhum dissentimento, nenhuma sombra, nada,
depois da reconciliação. Ao contrário, as recordações eram de
verdadeiros obséquios; assim, por exemplo, sendo eu deputado,
pude obter-lhe uns fornecimentos para o arsenal de marinha,
fornecimentos que ele continuava a fazer com a maior pontualidade,
e dos quais me dizia algumas semanas antes, que no fim de mais
três anos, podiam dar-lhe uns duzentos contos. Pois a lembrança de
tamanho obséquio não teve força para obstar que ele viesse a público
enxovalhar o cunhado? Devia ser muito poderoso e motivo da
declaração, que o fazia cometer ao mesmo tempo um destempero e
uma ingratidão; confesso que era um problema insolúvel...

CAPÍTULO CXLIX / TEORIA DO BENEFÍCIO

... Tão insolúvel que o Quincas Borba não pôde dar com ele, apesar
de estudá-lo longamente e com boa vontade. — Ora adeus! concluiu;
nem todos os problemas valem cinco minutos de atenção.

Quanto à censura de ingratidão, Quincas Borba rejeitou-a
inteiramente, não como improvável, mas como absurda, por não
obedecer às conclusões de uma boa filosofia humanística.

— Não me podes negar um fato, disse ele; é que o prazer do
beneficiador é sempre maior que o do beneficiado. Que é o benefício?
é um ato que faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez
produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação,
torna o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe
que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o
incômodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de
gozo, o organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus
dedos que praticaram o ato. Não havendo nada que perdure, é
natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma planta
aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é certo,
conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este
fato, aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu
caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra
fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a dor
passada e aconselha a precaução do remédio oportuno. Não digo
que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes,
persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição mais
ou menos intensa; mas são verdadeiras aberrações, sem nenhum
valor aos olhos de um filósofo.

— Mas, repliquei eu, se nenhuma razão há para que perdure a
memória do obséquio no obsequiado, menos há de haver em relação
ao obsequiador. Quisera que me explicasses este ponto.

— Não se explica o que é de sua natureza evidente, retorquiu o
Quincas Borba; mas eu direi alguma coisa mais. A persistência do
benefício na memória de quem o exerce explica-se pela natureza
mesma do benefício e seus efeitos. Primeiramente há o sentimento
de uma boa ação, e dedutivamente a consciência de que somos
capazes de boas ações; em segundo lugar, recebe-se uma convicção
de superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos
meios; e esta é uma das coisas mais legitimamente agradáveis,
segundo as melhores opiniões, ao organismo humano. Erasmo, que
no seu Elogio da Sandice escreveu algumas coisas boas, chamou a
atenção para a complacência com que dois burros se coçam um ao
outro. Estou longe de rejeitar essa observação de Erasmo; mas direi
o que ele não disse, a saber que se um dos burros coçar melhor o
outro, esse há de ter nos olhos algum indício especial de satisfação.
Por que é que uma mulher bonita olha muitas vezes para o espelho,
senão porque se acha bonita, e porque isso lhe dá certa
superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos bonitas
ou absolutamente feias? A consciência é a mesma coisa; remira-se a
miúdo, quando se acha bela. Nem o remorso é outra coisa mais do
que o trejeito de uma consciência que se vê hedionda. Não esqueças
que, sendo tudo uma simples irradiação de Humanitas, o benefício e
seus efeitos são fenômenos perfeitamente admiráveis.

CAPÍTULO CL / ROTAÇÃO E TRANSLAÇÃO

Há em cada empresa, afeição ou idade um ciclo inteiro da vida
humana. O primeiro número do meu jornal encheu-me a alma de
uma vasta aurora, coroou-me de verduras, restituiu-me a lepidez da
mocidade. Seis meses depois batia a hora da velhice, e daí a duas
semanas a da morte, que foi clandestina, como a de D. Plácida. No
dia em que o jornal amanheceu morto, respirei como um homem que
vem de longo caminho. De modo que, se eu disser que a vida
humana nutre de si mesma outras vidas, mais ou menos efêmeras,
como o corpo alimenta os seus parasitas, creio não dizer uma coisa
inteiramente absurda. Mas, para não arriscar essa figura menos
nítida e adequada, prefiro uma imagem astronômica: o homem
executa à roda do grande mistério um movimento duplo de rotação e
translação; tem os seus dias, desiguais como os de Júpiter, e deles
compõe o seu ano mais ou menos longo.

No momento em que eu terminava o meu movimento de rotação,
concluía Lobo Neves o seu movimento de translação. Morria com o pé
na escada ministerial. Correu ao menos durante algumas semanas,
que ele ia ser ministro; e pois que o boato me encheu de muita
irritação e inveja, não é impossível que a notícia da morte me
deixasse alguma tranqüilidade, alívio, e um ou dois minutos de
prazer. Prazer é muito, mas é verdade; juro aos séculos que é a pura
verdade.

Fui ao enterro. Na sala mortuária achei Virgília, ao pé do féretro, a
soluçar. Quando levantou a cabeça, vi que chorava deveras. Ao sair o
enterro, abraçou-se ao caixão, aflita; vieram tirá-la e levá-la para
dentro. Digo-vos que as lágrimas eram verdadeiras. Eu fui ao
cemitério; e, para dizer tudo, não tinha muita vontade de falar;
levava uma pedra na garganta ou na consciência. No cemitério,
principalmente quando deixei cair a pá de cal sobre o caixão, no
fundo da cova, o baque surdo da cal deu-me um estremecimento
passageiro, é certo, mas desagradável; e depois a tarde tinha o peso
e a cor do chumbo; o cemitério, as roupas pretas...

CAPÍTULO CLI / FILOSOFIA DOS EPITÁFIOS

Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás,
gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão
daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à
morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem, talvez,
a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala
comum; parece-lhes que a podridão anônima os alcança a eles
mesmos.

CAPÍTULO CLII / A MOEDA DE VESPASIANO

Tinham ido todos; só o meu carro esperava pelo dono. Acendi um
charuto; afastei-me do cemitério. Não podia sacudir dos olhos a
cerimônia do enterro, nem dos ouvidos os soluços de Virgília. Os
soluços, principalmente, tinham o som vago e misterioso de um
problema. Virgília traíra o marido, com sinceridade, e agora choravao
com sinceridade. Eis uma combinação difícil que não pude fazer em
todo o trajeto; em casa, porém, apeando-me do carro, suspeitei que
a combinação era possível, e até fácil. Meiga Natura! A taxa da dor é
como a moeda de Vespasiano; não cheira à origem, e tanto se colhe
do mal como do bem. A moral repreenderá, porventura, a minha
cúmplice; é o que te não importa, implacável amiga, uma vez que lhe
recebeste pontualmente as lágrimas. Meiga, três vezes Meiga Natura!

CAPÍTULO CLIII / O ALIENISTA

Começo a ficar patético e prefiro dormir. Dormi, sonhei que era
nababo, e acordei com a idéia de ser nababo. Eu gostava, às vezes,
de imaginar esses contrastes de região, estado e credo. Alguns dias
antes tinha pensado na hipótese de uma revolução social, religiosa e
política, que transferisse o arcebispo de Cantuária a simples coletor
de Petrópolis, e fiz longos cálculos para saber se o coletor eliminaria o
arcebispo, ou se o arcebispo rejeitaria o coletor, ou que porção de
arcebispo pode jazer num coletor, ou que soma de coletor pode
combinar com um arcebispo, etc. Questões insolúveis,
aparentemente, mas na realidade perfeitamente solúveis, desde que
se atenda que pode haver num arcebispo dois arcebispos, — o da
bula e o outro. Está dito, vou ser nababo.

Era um simples gracejo; disse-o, todavia, ao Quincas Borba, que
olhou para mim com certa cautela e pena, levando a sua bondade a
comunicar-me que eu estava doido. Ri-me a princípio; mas a nobre
convicção do filósofo incutiu-me certo medo. A única objeção contra a
palavra do Quincas Borba é que não me sentia doido, mas não tendo
geralmente os doidos outro conceito de si mesmos, tal objeção ficava
sem valor. E vede se há algum fundamento na crença popular de que
os filósofos são homens alheios às coisas mínimas. No dia seguinte,
mandou-me o Quincas Borba um alienista. Conhecia-o, fiquei
aterrado. Ele, porém, houve-se com a maior delicadeza e habilidade,
despedindo-se tão alegremente que me animou a perguntar-lhe se
deveras me não achava doido.

— Não, disse ele sorrindo; raros homens terão tanto juízo como o
senhor.

— Então o Quincas Borba enganou-se?

— Redondamente. E depois: — Ao contrário, se é amigo dele... peçolhe
que o distraia... que...

— Justos céus! Parece-lhe?... Um homem de tamanho espírito, um
filósofo!

— Não importa, a loucura entra em todas as casas.

Imaginem a minha aflição. O alienista, vendo o efeito de suas
palavras, reconheceu que eu era amigo do Quincas Borba, e tratou de
diminuir a gravidade da advertência. Observou que podia não ser
nada, e acrescentou até que um grãozinho de sandice, longe de fazer
mal, dava certo pico à vida. Como eu rejeitasse com horror esta
opinião, o alienista sorriu e disse-me uma coisa tão extraordinária,
tão extraordinária, que não merece menos de um capítulo.

CAPÍTULO CLIV / OS NAVIOS DO PIREU

— Há de lembrar-se, disse-me o alienista, daquele famoso maníaco
ateniense, que supunha que todos os navios entrados no Pireu eram
de sua propriedade. Não passava de um pobretão, que talvez não
tivesse, para dormir, a cuba de Diógenes; mas a posse imaginária
dos navios valia por todas as dracmas da Hélade. Ora bem, há em
todos nós um maníaco de Atenas; e quem jurar que não possuiu
alguma vez, mentalmente, dois ou três patachos, pelo menos, pode
crer que jura falso.

— Também o senhor? perguntei-lhe.

— Também eu.

— Também eu?

— Também o senhor; e o seu criado, não menos, se é seu criado
esse homem que ali está sacudindo os tapetes à janela.

De fato, era um dos meus criados que batia os tapetes, enquanto nós
falávamos no jardim, ao lado. O alienista notou então que ele
escancarara as janelas todas deste longo tempo, que alçara as
cortinas, que devassara o mais possível a sala, ricamente alfaiada,
para que a vissem de fora, e concluiu: — Este seu criado tem a
mania do ateniense: crê que os navios são dele; uma hora de ilusão
que lhe dá a maior felicidade da Terra.

CAPÍTULO CLV / REFLEXÃO CORDIAL

— Se o alienista tem razão, disse eu comigo, não haverá muito que
lastimar o Quincas Borba; é uma questão de mais ou de menos.
Contudo, é justo cuidar dele, e evitar que lhe entrem no cérebro
maníacos de outras paragens.

CAPÍTULO CLVI / ORGULHO DA SERVILIDADE

Quincas Borba divergiu do alienista em relação ao meu criado. —
Pode-se, por imagem, disse ele, atribuir ao teu criado a mania do
ateniense; mas imagens não são idéias nem observações tomadas à
natureza. O que o teu criado tem é um sentimento nobre e
perfeitamente regido pelas leis do Humanitismo: é o orgulho da
servilidade. A intenção dele é mostrar que não é criado de qualquer.
— Depois chamou a minha atenção para os cocheiros de casa grande,
mais empertigados que o amo, para os criados de hotel, cuja
solicitude obedece às variações sociais da freguesia, etc. E concluiu
que era tudo a expressão daquele sentimento delicado e nobre, —
prova cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, é
sublime.

CAPÍTULO CLVII / FASE BRILHANTE

— Sublime és tu, bradei eu, lançando-lhe os braços ao pescoço.

Com efeito, era impossível crer que um homem tão profundo
chegasse à demência; foi o que lhe disse após o meu abraço,
denunciando-lhe a suspeita do alienista. Não posso descrever a
impressão que lhe fez a denúncia; lembra-me que ele estremeceu e
ficou muito pálido.

Foi por esse tempo que eu me reconciliei outra vez com o Cotrim,
sem chegar a saber a causa do dissentimento. Reconciliação
oportuna, porque a solidão pesava-me, e a vida era para mim a pior
das fadigas, que é a fadiga sem trabalho. Pouco depois fui convidado
por ele a filiar-me numa Ordem Terceira; o que eu não fiz sem
consultar o Quincas Borba:

— Vai, se queres, disse-me este, mas temporariamente. Eu trato de
anexar à minha filosofia uma parte dogmática e litúrgica. O
Humanitismo há de ser também uma religião, a do futuro, a única
verdadeira. O cristianismo é bom para as mulheres e os mendigos, e
as outras religiões não valem mais do que essa: orçam todas pela
mesma vulgaridade ou fraqueza. O paraíso cristão é um digno êmulo
do paraíso muçulmano; e quanto ao nirvana de Buda não passa de
uma concepção de paralíticos. Verás o que é a religião humanística. A
absorção final, a fase contrativa, é a reconstituição da substância,
não o seu aniquilamento, etc. Vai aonde te chamam; não esqueças,
porém, que és o meu califa.

E vede agora a minha modéstia; filiei-me na Ordem Terceira de ***,
exerci ali alguns cargos, foi essa a fase mais brilhante da minha vida.
Não obstante, calo-me, não digo nada, não conto os meus serviços, o
que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que recebi,
nada, não digo absolutamente nada.

Talvez a economia social pudesse ganhar alguma coisa, se eu
mostrasse como todo e qualquer prêmio estranho vale pouco ao lado
do prêmio subjetivo e imediato; mas seria romper o silêncio que jurei
guardar neste ponto. Demais, os fenômenos da consciência são de
difícil análise; por outro lado, se contasse um, teria de contar todos
os que a ele se prendessem, e acabava fazendo um capítulo de
psicologia. Afirmo somente que foi a fase mais brilhante da minha
vida. Os quadros eram tristes; tinham a monotonia da desgraça, que
é tão aborrecida como a do gozo, e talvez pior. Mas a alegria que se
dá à alma dos doentes e dos pobres, é recompensa de algum valor; e
não me digam que é negativa, por só recebê-la o obsequiado. Não;
eu recebia-a de um modo reflexo, e ainda assim grande, tão grande
que me dava excelente idéia de mim mesmo.

CAPÍTULO CLVIII / DOIS ENCONTROS

No fim de alguns anos, três ou quatro, estava enfarado do ofício, e
deixei-o, não sem um donativo importante, que me deu direito ao
retrato na sacristia. Não acabarei, porém, o capítulo sem dizer que vi
morrer no hospital da Ordem, adivinhem quem?... a linda Marcela; e
vi-a morrer no mesmo dia em que, visitando um cortiço, para
distribuir esmolas, achei... Agora é que não são capazes de
adivinhar... achei a flor da moita, Eugênia, a filha de D. Eusébia e do
Vilaça, tão coxa como a deixara, e ainda mais triste.

Esta, ao reconhecer-me, ficou pálida, e baixou os olhos; mas foi obra
de um instante. Ergueu logo a cabeça, e fitou-me com muita
dignidade. Compreendi que não receberia esmolas da minha
algibeira, e estendi-lhe a mão, como faria à esposa de um capitalista.
Cortejou-me e fechou-se no cubículo. Nunca mais a vi; não soube
nada da vida dela, nem se a mãe era morta, nem que desastre a
trouxera a tamanha miséria. Sei que continuava coxa e triste. Foi
com esta impressão profunda que cheguei ao hospital, onde Marcela
entrara na véspera, e onde a vi expirar meia hora depois, feia,
magra, decrépita...

CAPÍTULO CLIX / SEMIDEMÊNCIA

Compreendi que estava velho, e precisava de uma força; mas o
Quincas Borba partira seis meses antes para Minas Gerais, e levou
consigo a melhor das filosofias. Voltou quatro meses depois, e
entrou-me em casa, certa manhã, quase no estado em que eu o vira
no Passeio Público. A diferença é que o olhar era outro. Vinha
demente. Contou-me que, para o fim de aperfeiçoar o Humanitismo,
queimara o manuscrito todo e ia recomeçá-lo. A parte dogmática
ficava completa, embora não escrita; era a verdadeira religião do
futuro.

— Juras por Humanitas? perguntou-me.

— Sabes que sim.

A voz mal podia sair-me do peito; e aliás não tinha descoberto toda a
cruel verdade. Quincas Borba não só estava louco, mas sabia que
estava louco, e esse resto de consciência, como uma frouxa
lamparina no meio das trevas, complicava muito o horror da situação.
Sabia-o, e não se irritava contra o mal; ao contrário, dizia-me que
era ainda uma prova de Humanitas, que assim brincava consigo
mesmo. Recitava-me longos capítulos do livro, e antífonas, e litanias
espirituais; chegou até a reproduzir uma dança sacra que inventara
para as cerimônias do Humanitismo. A graça lúgubre com que ele
levantava e sacudia as pernas era singularmente fantástica. Outras
vezes amuava-se a um canto, com os olhos fitos no ar, uns olhos em
que, de longe em longe, fulgurava um raio persistente da razão,
triste como uma lágrima...

Morreu pouco tempo depois, em minha casa, jurando e repetindo
sempre que a dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado
Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire.

CAPÍTULO CLX / DAS NEGATIVAS

Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos
narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção
do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia
que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os
homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e
direta inspiração do Céu. O caso determinou o contrário; e aí vos
ficais eternamente hipocondríacos.

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade
do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o
casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa
fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não
padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas
Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará
que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite
com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do
mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira
negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti
a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

FIM

Letra traducida a Español

Traducción de la letra realizada con IA.

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