Antes de que caiga la nieve de Marco Mengoni
Letra de Antes de que caiga la nieve
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte:
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
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OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Nota Preliminar
Escrito nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante, este livro, que a princípio se resumia à história da
Campanha de Canudos, perdeu toda a atualidade, remorada a sua publicação em virtude de causas que temos por
escusado apontar.
Demos -lhe, por isto, outra feição, tomando apenas variante de assunto geral o tema, a princípio dominante, que
o sugeriu.
Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos
das sub-raças sertanejas do Brasil. E fazêmo-lo porque a sua instabilidade de complexos de fatores múltiplos e
diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tomam
talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a
concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra.
O jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório serão em breve tipos relegados às tradições
evanescentes, ou extintas.
Primeiros efeitos de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à formação dos princípios imediatos de uma
grande raça. Faltou-lhes, porém, uma situação de parada, o equilíbrio, que Ihes não permite mais a velocidade
adquirida pela marcha dos povos neste século. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo.
A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável "força motriz da História" que Gumplowicz,
maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes.
A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa. Nem
enfraquece o asserto o termo-la realizado nós filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem
tradições nacionais uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico, dos princípios civilizadores
elaborados na Europa, e armados pela indústria alemã — tivemos na ação um papel singular de mercenários
inconscientes. Além disto, mal unidos àqueles extraordinários patrícios pelo solo em parte desconhecido, deles
de todo nos separa uma coordenada histórica — o tempo.
Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.
E foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo.
E tanto quanto o permitir a firmeza do nosso espírito façamos jus ao admirável conceito de Taine sobre o
narrador sincero que encara a História como ela merece:
“il s’ irrite contre les demi vérités que sont des demi faussetés, contre les auteurs qui n’altèrent ni une date, ni
une généalogie, mais dénaturent les sentiments et les moeurs, qui gardent le dessin des événements et en
changent la couleur, qui copient les faits et défigurent l'âme; il veut sentir en barbare, parmi les barbares, et,
parmi les anciens, en ancien. "
Euclides da Cunha.
São Paulo, 1901
Capítulo I
Preliminares
O Planalto Central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os
mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a
Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que
descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza
afastando-o consideravelmente para o interior.
De sorte que quem o contorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos: a principio o
traço contínuo e dominante das montanhas, precintando-o, com destaque saliente, sobre a linha projetante das
praias; depois, no segmento de orla marítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral
revolto, feito da envergadura desarticulada das serras, riçado de cumeadas e corroído de angras, e
escancelando-se em baias, repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de
escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra; em seguida, transposto o 15° paralelo, a
atenuação de todos os acidentes — serranias que se arredondam e suavizam as linhas dos taludes, fracionadas em
morros de encostas indistintas no horizonte que se amplia; até que em plena faixa costeira da Bahia, o olhar, livre
dos anteparos de serras que até lá o repulsam e abreviam, se dilata em cheio para o ocidente, mergulhando no
âmago da terra amplíssima lentamente emergindo num ondear longínquo de chapadas...
Este facies geográfico resume a morfogenia do grande maciço continental.
Demonstra-o análise mais íntima feita por um corte meridiano qualquer, acompanhando à bacia do S.
Francisco.
Vê-se, do fato, que três formações geognósticas díspares, de idades mal determinadas, aí se substituem, ou
se entrelaçam, em estratificações discordantes, formando o predomínio exclusivo de umas, ou a combinação de
todas, os traços variáveis da fisionomia da terra. Surgem primeiro as possantes massas gnaissegraníticas, que a
partir do extremo sul se encurvam em desmedido anfiteatro, alteando as paisagens admiráveis que tanto
encantam e iludem as vistas inexpertas dos forasteiros. A princípio abeiradas do mar progridem em sucessivas
cadeias, sem rebentos laterais, até as raias do litoral paulista, feito dilatado muro de arrimo sustentando as
formações sedimentárias do interior. A terra sobranceia o oceano, dominante, do fastígio das escarpas; e quem a
alcança como quem vinga a rampa de um majestoso palco, justifica todos os exageros descritivos — do
gongorismo de Rocha Pita às extravagâncias geniais de Buckle — que fazem deste país região privilegiada, onde
a natureza armou a sua mais portentosa oficina.
É que, de feito, sob o tríplice aspecto astronômico, topográfico e geológico a nenhuma se afigura tão
afeiçoada à Vida.
Transmontadas as serras, sob a linha fulgurante do trópico, vêem-se, estirados para o ocidente e norte, extensos
chapadões cuja urdidura de camadas horizontais de grés argiloso, intercaladas de emersões calcárias, ou diques
de rochas eruptivas básicas, do mesmo passo lhes explica a exuberância sem par e as áreas complanadas e vastas.
A terra atrai irresistivelmente o homem, arrebatando-o na própria correnteza dos rios que, do Iguaçu ao Tietê,
traçando originalíssima rede hidrográfica, correm da costa para os sertões, como se nascessem nos mares e
canalizassem as suas energias eternas para os recessos das matas opulentas. Rasgam facilmente aqueles estratos
em traçados uniformes, sem talvegues deprimidos, e dão ao conjunto dos terrenos até além do Paraná a feição de
largos plainos ondulados, desmedidos.
Entretanto, para leste a natureza é diversa.
Estereografa-se, duramente, nas placas rígidas dos afloramentos gnáissicos; e o talude dos planaltos
dobra-se do socalco da Mantiqueira, onde se encaixa o Paraíba, ou desfaz-se em rebentos que, após apontarem as
alturas de píncaros centralizados pelo Itatiaia, levam até o âmago de Minas as paisagens alpestres do litoral. Mas
ao penetrar-se este Estado nota-se, malgrado o tumultuar das serranias, lenta descensão geral para o norte. Como
nos altos chapadões de São Paulo e do Paraná, todas as caudais revelam este pendor insensível com derivarem
em leitos contorcidos e vencendo, contrafeitas, o antagonismo permanente das montanhas: o rio Grande rompe,
rasgando-a com a força viva da corrente, a serra da Canastra, e, norteados pela meridiana, abrem-se adiante os
fundos vales de erosão do rio das Velhas e do S. Francisco. Ao mesmo tempo, transpostas as sublevações que
vão de Barbacena a Ouro Preto, as formações primitivas desaparecem, mesmo nas maiores eminências, e jazem
sotopostas a complexas séries de xistos metamórficos, infiltrados de veeiros fartos, nas paragens lendárias do
ouro.
A mudança estrutural origina quadros naturais mais imponentes que os da borda marítima. A região
continua alpestre. O caráter das rochas, exposto nas abas dos cerros de quartzito, ou nas grimpas em que se
empilham as placas do itacolomito avassalando as alturas, aviva todos os acidentes, desde os maciços que vão de
Ouro Branco a Sabará, à zona diamantina expandindo-se para nordeste nas chapadas que se desenrolam
nivelando-se às cimas da serra do Espinhaço; e esta, apesar da sugestiva denominação de Eschwege, mal
sobressai, entre aquelas lombadas definidoras de uma situação dominante. Dali descem, acachoantes, para o
levante, tombando em catadupas ou saltando "travessões" sucessivos, todos os rios que do Jequitinhonha ao
Doce procuram os terraços inferiores do planalto arrimados à serra dos Aimorés; e volvem águas remansadas
para o poente os que se destinam à bacia de captação do S. Francisco, em cujo vale, depois de percorridas ao sul
as interessantes formações calcárias do rio das Velhas, salpintadas de lagos, solapadas de sumidouros e ribeirões
subterrâneos, onde se abrem as cavernas do homem pré-histórico de Lund, se acentuam outras transições na
contextura superficial do solo.
De fato, as camadas anteriores, que vimos superpostas às rochas graníticas, decaem, por sua vez
sotopondo-se a outras, mais modernas de espessos estratos de grés.
Novo horizonte geológico reponta com um traço original e interessante. Mal estudado embora, caracteriza-o
notável significação orográfica, porque as cordilheiras dominantes do sul ali se extinguem, soterradas, numa
inumação estupenda, pelos possantes estratos mais recentes, que as circundam. A terra, porém, permanece
elevada, alongando-se em planuras amplas, ou avultando em falsas montanhas de denudação, descendo em
aclives fortes, mas tendo os dorsos alargados em plainos inscritos num horizonte de nível, apenas apontoado a
leste pelos vértices dos albardões distantes, que perlongam a costa.
Verifica-se. assim, a tendência para um aplainamento geral.
Porque, neste coincidir das terras altas do interior e a depressão das formações arqueanas, a região
montanhosa de minas se vai prendendo, sem ressaltos, à extensa zona dos tabuleiros do norte.
A serra do Grão Mogol raiando as lindes da Bahia, é o primeiro espécimen dessas esplêndidas chapadas
imitando cordilheiras, que tanto perturbam aos geógrafos descuidados; e as demais que a convizinham, da do
Cabral mais próxima, à da Mata da Corda alongando-se para Goiás, modelam-se de maneira idêntica. Os sulcos
de erosão que as retalham são cortes geológicos expressivos. Ostentam em plano vertical, sucedendo-se a partir
da base, as mesmas rochas que vimos substituírem em alongado roteiro pela superfície: embaixo os rebentos
graníticos decaídos pelo fundo dos vales, em cômoros esparsos; à meia encosta, inclinadas, as placas xistosas
mais recentes; no alto, sobrepujando-as, ou circuitando-lhes os flancos em vales monoclínicos, os lençóis de
grés, predominantes e oferecendo aos agentes meteóricos plasticidade admirável aos mais caprichosos modelos.
Sem linhas de cumeadas, as maiores serranias nada mais são que planuras altas, extensas rechãs terminando de
chofre em encostas abruptas, na molduragem golpeante do regímen torrencial sobre o terreno permeável e
móvel. Caindo por ali há séculos as fortes enxurradas, derivando a princípio em linhas divagantes de drenagem,
foram pouco a pouco reprofundando-as, talhando-as em quebradas que se fizeram cañons, e se fizeram vales em
declive, até orlarem de escarpamentos e despenhadeiros aqueles plainos soerguidos. E consoante a resistência
dos materiais trabalhados variaram nos aspectos: aqui apontam, rijamente, sobre as áreas de nível, os últimos
fragmentos das rochas enterradas, desvendando-se em fraguedos que mal relembram, na altura, o antiqüíssimo
"Himalaia brasileiro", desbarrancado, em desintegração contínua, por todo o curso das idades; adiante, mais
caprichosos, se escalonam em alinhamentos incorretos de menires colossais, ou em círculos enormes, recordando
na disposição dos grandes blocos superpostos, em rimas, muramentos desmantelados de ciclópicos coliseus em
ruínas ou então, pelos visos das escarpas, oblíquos e sobreanceando as planuras que, interopostos, ladeiam,
lembram aduelas desconformes, restos da monstruosa abóbada da antiga cordilheira, desabada...
Mas desaparecem de todo em vários pontos.
Estiram-se então planuras vastas. Galgando-as pelos taludes, que as soerguem dando-lhes a aparência exata
de tabuleiros suspensos, topam-se, a centenas de metros, extensas áreas ampliando-se, boleadas, pelos
quadrantes, numa prolongação indefinida, de mares. É a paragem formosíssima dos campos gerais, expandida
em chapadões ondulantes —grandes tablados onde campeia a sociedade rude dos vaqueiros...
Atravessêmo-la.
Adiante, a partir de Monte Alto, estas conformações naturais se bipartem: no rumo firme do norte a série do
grés figura-se progredir até ao plateau arenoso do Açuruá, associando-se ao calcário que aviva as paisagens na
orla do grande rio, prendendo-as às linhas dos cerros talhados em diáclase, tão bem expressos no perfil fantástico
do Bom Jesus da Lapa; enquanto para nordeste, graças a degradações intensas (porque a serra Geral segue por ali
como anteparo aos alísios, condensando-os em diluvianos aguaceiros), se desvendam, ressurgindo, as formações
antigas.
Desenterram-se as montanhas.
Reponta a região diamantina, na Bahia, revivendo inteiramente a de Minas, como um desdobramento ou
antes um prolongamento, porque é a mesma formação mineira rasgando, afinal, os lençóis de grés, e alteando-se
com os mesmos contornos alpestres e perturbados, nos alcantis que irradiam da Tromba ou avultam para o norte
nos xistos huronianos das cadeias paralelas de Sincorá.
Deste ponto em diante, porém, o eixo da serra Geral se fragmenta, indefinido. Desfaz-se. A cordilheira
eriça-se de contrafortes e talhados de onde saltam, acachoando, em despenhos, para o levante, as nascentes do
Paraguaçu, e um dédalo de serranias tortuosas, pouco elevadas mas inúmeras, cruza-se embaralhadamente sobre
o largo dos gerais, cobrindo-os. Transmuda-se o caráter topográfico, retratando o desapoderado embater dos
elementos, que ali reagem há milênios entre montanhas derruídas, e a queda, até então gradativa, dos planaltos
começa a derivar em desnivelamentos consideráveis. Revela-os o S. Francisco, no vivo infletir com que torce
para o levante, indicando do mesmo passo a transformação geral da região.
Esta é mais deprimida e mais revolta.
Cai para os terraços inferiores, entre um tumultuar de morros, incoerentemente esparsos. Último rebento da
serra principal, a da Itiúba reúne-lhe alguns galhos indecisos, fundindo as expansões setentrionais das da Furna,
Cocais e Sincorá. Alteia-se um momento, mas descai logo para todos os rumos: para o norte, originando a
corredeira de quatrocentos quilômetros à jusante do Sobradinho; para o sul, em segmentos dispersos que vão até
além do Monte Santo; e para leste, passando sob as chapadas de Jeremoabo, até se desvendar no salto prodigioso
de Paulo Afonso.
E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens em que se revezam, em contraste belíssimo, a
amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido...
A entrada sertão
Está sobre um socalco do maciço continental, ao norte.
Demarca-o de uma banda, abrangendo dois quadrantes, em semicírculo, o rio de S. Francisco: e de outra,
encurvando também para sudeste, numa normal a direção primitiva, o curso flexuoso do Itapicuru-açu. Segundo
a mediana, correndo quase paralelo entre aqueles, com o mesmo descambar expressivo para a costa, vê-se o
traço de um outro rio, o Vaza-Barris, o Irapiranga dos tapuias, cujo trecho de Jeremoabo para as cabeceiras é
uma fantasia de cartógrafo. De fato, no estupendo degrau, por onde descem para o mar ou para jusante de Paulo
Afonso as rampas esbarrancadas do planalto, não há situações de equilíbrio para uma rede hidrográfica normal.
Ali reina a drenagem caótica das torrentes, a naquele da Bahia facies excepcional e selvagem.
Terra ignota
Abordando-o, compreende-se que até hoje escasseiem sobre tão grande trato de território, que quase
abarcaria a Holanda (9º 11' — 10º 20' de lat. e 4° — 3° de long. O.R.J. ), notícias exatas ou pormenorizadas. As
nossas melhores cartas, enfeixando informes escassos, lá têm um claro expressivo, um hiato, Terra ignota, em
que se aventura o rabisco de um rio problemático ou idealização de uma corda de serras.
E. que transpondo o Itapicuru, pelo lado do sul, as mais avançadas turmas de povoadores estacaram em
vilarejos minúsculos — Maçacará, Cumbe ou Bom Conselho — entre os quais o decaído Monte Santo tem visos
de cidade: transmontada a Itiúba, a sudoeste, disseminaram-se pelos povoados que a abeiram acompanhando
insignificantes cursos de água, ou pelas raras fazendas de gado, estremados todos por uma tapera obscura —
Uauá, ao norte e a leste pararam às margens do S. Francisco, entre Capim Grosso e Santo Antônio da Glória.
Apenas naquele último rumo se avantajou uma vila secular, Jeremoabo, batizando o máximo esforço de
penetração em tais lugares, evitados sempre pelas vagas humanas, que vinham do litoral baiano procurando o
interior.
Uma ou outra o cortou, rápida, fugindo, sem deixar traços.
Nenhuma lá se fixou. Não se podia fixar. O estranho território, a menos de quarenta léguas da antiga
metrópole, predestinava-se a atravessar absolutamente esquecido os quatrocentos anos da nossa história. Porque
enquanto as bandeiras do sul lhe paravam à beira e envesgando, depois, pelos flancos da Itiúba, se lançavam para
Pernambuco e Piauí até o Maranhão as do levante, repelidas pela barreira intransponível de Paulo Afonso, iam
procurar, no Paraguaçu e rios que lhe demoram ao sul, linhas de acesso mais praticáveis, Deixavam-no de
permeio, inabordável, ignoto.
É que mesmo trilhando o último daqueles rumos, adstritas a itinerário menos longo, as salteava
impressionadoramente o aspecto estranho da terra repontando em transições imprevistas.
Deixando a orla marítima e seguindo em cheio para o ocidente, tinham, transcorridas poucas léguas,
amolentada ou desinfluída a atração das "entradas" aventurosas, e extinta a miragem do litoral opulento. Logo a
partir de Camassari as formações antigas cobrem-se de escassas manchas terciárias, alternando com exíguas
bacias cretáceas, revestidas do terreno arenoso de Alagoinhas que mal esgarçam, a leste, as emersões calcárias de
Inhambupe. A vegetação em roda transmuda-se, copiando estas alternativas com a precisão de um decalque.
Rarefazem-se as matas, ou empobrecem. Extinguem-se, por fim, depois de lançarem rebentos esparsos pelo topo
das serranias; e estas mesmo, aqui e ali, cada vez mais raras, ilham-se ou avançam em promontório nas planuras
desnudas dos campos, onde uma flora característica — arbustos flexuosos entrechassados de bromélias rubras —
prepondera exclusiva em largas áreas, mal dominada pela vegetação vigorosa irradiante da Pojuca sobre o
massapé feraz das camadas cretáceas decompostas.
Deste lugar em diante, reaparecem os terrenos terciários esterilizadores, sobre os mais antigos que,
entretanto, depois, dominam em toda a zona centralizada em Serrinha. Os morros do Lopes e do Lajedo
aprumam-se, à maneira de disformes pirâmides de blocos arredondados e lisos; e os que se sucedem, beirando de
um e outro lado as abas das serras da Saúde e da Itiúba, até Vila Nova da Rainha e Juazeiro, copiam-lhes os
mesmos contornos das encostas estaladas, exumando a ossatura partida das montanhas.
O observador tem a impressão de seguir torneando a truncadura malgradada da borda de um planalto.
Calca, de fato, estrada três vezes secular, histórica vereda por onde avançavam os rudes sertanistas nas suas
excursões para o interior.
Não a alteraram nunca.
Não a variou, mais tarde, a civilização, justapondo aos rastos do bandeirante os trilhos de uma via férrea.
Porque o caminho em cuja longura de cem léguas, da Bahia ao Juazeiro, se entroncam numerosíssimos
desvios para o poente e para o sul, jamais comportou, a partir de seu trecho médio, variante apreciável para leste
e para o norte.
Calcando-o, em demanda do Piauí, Pernambuco, Maranhão e Pará, os povoadores, consoante vários
destinos, dividiam-se em Serrinha. E progredindo para Juazeiro, ou volvendo à direita, pela estrada real do Bom
Conselho que, desde o século 17, os levava a Santo Antônio da Glória e Pernambuco — uns e outros
contorneavam sempre, evitando-a sempre, a paragem sinistra e desolada, subtraindo-se a uma travessia
torturante.
De sorte que aquelas duas linhas de penetração, que vão interferir o S. Francisco em pontos afastados —
Juazeiro e Santo Antônio da Glória —, formavam, desde aqueles tempos, as lindes de um deserto.
Em caminho para Monte Santo
No entanto quem se abalança a atravessá-lo, partindo de Queimadas para nordeste, não se surpreende a
princípio. Recurvo em meandros, o Itapicuru alenta vegetação vivaz; e as barrancas pedregosas do Jacurici
debruam-se de pequenas matas. O terreno, areento e chão, permite travessia desafogada e rápida. Aos lados do
caminho ondulam tabuleiros rasos. A pedra, aflorando em lajedos horizontais, mal movimenta o solo,
esgarçando a tênue capa das areias que o revestem.
Vêem-se, porém, depois, lugares que se vão tornando crescentemente áridos.
Varada a estreita faixa de cerrados, que perlongam aquele último rio, está-se em pleno agreste, no dizer
expressivo dos matutos: arbúsculos quase sem pega sobre a terra escassa, enredados de esgalhos de onde
irrompem, solitários, cereus rígidos e salientes, dando ao conjunto a aparência de uma margem de desertos. E o
facies daquele sertão inóspito vai-se esboçando, lenta e impressionadoramente...
Galga-se uma ondulação qualquer — e ele se desvenda ou se deixa adivinhar, ao longe, no quadro tristonho
de um horizonte monótono em que se esbate, uniforme, sem um traço diversamente colorido, o pardo
requeimado das caatingas.
Intercorrem ainda paragens menos estéreis, e nos trechos em que se operou a decomposição in situ do
granito, originando algumas manchas argilosas, as copas virentes dos ouricurizeiros circuitam — parêntesis
breves abertos na aridez geral — as bordas das ipueiras. Estas lagoas mortas, segundo a bela etimologia
indígena, demarcam obrigatória escala ao caminhante. Associando-se às cacimbas e "caldeirões", em que se abre
a pedra, são-lhe recurso único na viagem penosíssima. Verdadeiros oásis, têm contudo, não raro, um aspecto
lúgubre: localizadas em depressões, entre colinas nuas, envoltas pelos mandacarus despidos e tristes, como
espectros de árvores; ou num colo de chapada, recortando-se com destaque no chão poento e pardo, graças à
placa verde-negra das algas unicelulares que as revestem.
Algumas denotam um esforço dos filhos do sertão. Encontram-se, orlando-as, erguidos como represas entre
as encostas, toscos muramentos de pedra seca. Lembram monumentos de uma sociedade obscura. Patrimônio
comum dos que por ali se agitam nas aperturas do clima feroz, vêm em geral, de remoto passado.
Delinearam-nos os que se afoitaram primeiro com as vicissitudes de uma entrada naquelas bandas. E persistem
indestrutíveis, porque o sertanejo, por mais escoteiro que siga, jamais deixa de levar uma pedra que calce as suas
junturas vacilantes.
Mas transpostos estes pontos — imperfeita cópia das barragens romanas remanescentes na Tunísia —
entra-se outra vez nos areais exsicados. E avançando célere, sobretudo nos trechos em que se sucedem pequenas
ondulações, todas da mesma forma e do mesmo modo dispostas, o viajante mais rápido tem a sensação da
imobilidade. Patenteiam-se-lhe uniformes, os mesmos quadros, num horizonte invariável que se afasta à medida
que ele avança. Raras vezes, como no povoado minúsculo de Cansanção, larga emersão de terreno fértil se
recama de vegetação virente.
Despontam vivendas pobres; algumas desertas pela retirada dos vaqueiros que a seca espavoriu; em ruínas,
outras, agravando todas no aspecto paupérrimo o traço melancólico das paisagens...
Nas cercanias de Quirinquinquá, porem, começa a movimentar-se o solo. O pequeno sítio ali ereto alevantase
já sobre alta expansão granítica, e atentando-se para o norte divisa-se região diversa — riçada de vales e
serranias, perdendo-se ao longe em grimpas fugitivas. A serra de Monte Santo, com um perfil de todo oposto aos
redondos contornos que lhe desenhou o ilustre Martins, empina-se, a pique, na frente, em possante dique de
quartzito branco, de azulados tons, em relevo sobre a massa gnáissica que Constitui toda a base do solo.
Dominante sobre seu enorme paredão, vincado pelas linhas dos estratos, expostas pela erosão eólia, afigura-se
cortina de muralha monumental. Termina em crista altíssima, estremando-lhe o desenvolvimento no rumo de 13°
NE, a cavaleiro da vila que se lhe erige no sopé. Centraliza um horizonte vasto. Observa-se, então, que atenuados
para o sul e leste, os acidentes predominantes da terra progridem avassalando os quadrantes do norte.
O sítio do Caldeirão, três léguas adiante, ergue-se à margem dessa sublevação metamórfica; e alcançando-o,
e transpondo entra-se. afinal, em cheio, no sertão adusto...
Primeiras impressões
É uma paragem impressionadora
As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o
desenho de relevos estupendos. O regímen torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das
insolações demoradas, e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os
elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades
cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando
duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça — dispondo-se em cenários em que ressalta
predominante, o aspecto atormentado das paisagens.
Porque o que estas denunciam — no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no
contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma
flora decídua embaralhada em esgalhos — é de algum modo o martírio da terra, brutalmente golpeada pelos
elementos variáveis, distribuídos por todas as modalidades climáticas. De um lado a extrema secura dos ares, no
estio, facilitando pela irradiação noturna a perda instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas às
soalheiras, impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas: e daí um jogar de dilatações e
contrações que as disjunge, abrindo-as segundo os planos de menor resistência. De outro, as chuvas que fecham,
de improviso, os ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas.
As forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície sem intervalos na ação
demolidora, substituindo-se, com intercadência invariável, nas duas estações únicas da região.
Dissociam-na nos verões queimosos; degradam-na nos invernos torrenciais. Vão do desequilíbrio
molecular, agindo surdamente, à dinâmica portentosa das tormentas. Ligam-se e completam-se. E consoante o
preponderar de uma e outra, ou o entrelaçamento de ambas, modificam-se os aspectos naturais. As mesmas
assomadas gnáissicas caprichosamente cindidas em planos quase geométricos, à maneira de silhares, que surgem
em numerosos pontos, dando, às vezes, a ilusão de encontrar-se, de repente, naqueles ermos vazios, majestosas
ruinarias de castelos — adiante se cercam de fraguedos, em desordem, mal seguros sobre as bases estreitas, em
ângulos de queda, incombentes e instáveis, feito loghans oscilantes, ou grandes desmoronamentos de dolmens; e
mais longe desaparecem sob acervos de blocos, com a imagem perfeita desses "mares de pedra" tão
característicos dos lugares onde imperam os regímens excessivos. Pelas abas dos cerros, que tumultuam em roda
— restos de velhíssimas chapadas corroídas —, se derramam, ora em alinhamentos relembrando velhos
caminhos de geleiras, ora esparsos a esmo, espessos lastros de seixos e lajens fraturadas, delatando idênticas
violências. As arestas dos fragmentos, onde persistem ainda cimentados ao quartzo os cristais de feldspato, são
novos atestados desses eleitos físicos e mecânicos que, despedaçando as rochas, sem que se decomponham os
seus elementos formadores, se avantajaram ao vagar dos agentes químicos em função dos fatos meteorológicos
normais.
Deste modo se tem a cada passo, em todos os pontos, um lineamento incisivo de rudeza extrema.
Atenuando-o em parte, deparam-se várzeas deprimidas, sedes de antigos lagos, extintos agora em ipueiras
apauladas, que demarcam os pousos dos vaqueiros. Recortam-nas, no entanto, abertos em caixão, os leitos as
mais das vezes secos de ribeirões que só se enchem nas breves estações das chuvas. Obstruídos, na maioria, de
espessos lastros de blocos entre os quais, fora das enchentes súbitas, defluem tênues fios de água, são uma
reprodução completa dos oueds que marginam o Saara. Despontam-lhes em geral, normais às barrancas, estratos
de um talcoxisto azul-escuro em placas brunidas reverberando a luz em fulgurar metálico — e sobre elas,
cobrindo extensas áreas, camadas menos resistentes de argila vermelha, cindidas de veios de quartzo,
interceptando-lhes, discordantes, os planos estratigráficos. Estas últimas formações, silurianas talvez, cobrem de
todo as demais à medida que se caminha para NE e apropriam-se a contornos mais corretos. Esclarecem a gênese
dos tabuleiros rasos, que se desatam, cobertos de uma vegetação resistente, de mangabeiras, até Jeremoabo.
Para o norte, porém, inclinam-se mais fortemente as camadas. Sucedem-se cômoros despidos, de pendores
resvalantes, descaindo em quebradas onde enxurram torrentes periódicas, solapando-os; e pelos seus topos
divisam-se, alinhadas em fileiras, destacadas em lâminas, as mesmas infiltrações quartzosas, expostas pela
decomposição dos xistos em que se embebem.
À luz crua dos dias sertanejos aqueles cerros, aspérrimos rebrilham, estonteadoramente — ofuscante, num
irradiar ardentíssimo.
As erosões constantes quebram, porém, a continuidade destes estratos que ademais, noutros pontos,
desaparecem sob as formações calcárias. Mas o conjunto pouco se transmuda. A feição ruiniforme destas,
casa-se bem a dos outros acidentes. E nos trechos em que elas se estiram, planas, pelo solo, desabrigadas de todo
ante a acidez corrosiva dos aguaceiros tempestuosos, crivam-se, escarificadas, de cavidades circulares e
acanaladuras fundas, diminutas mas inúmeras, tangenciando-se em quinas de rebordos cortantes, em pontas e
duríssimos estrepes que impossibilitam as marchas.
Deste modo, por qualquer vereda, sucedem-se acidentes pouco elevados mas abruptos, pelos quais tornejam
os caminhos, quando não se justapõem por muitas légua aos leitos vazios dos ribeirões esgotados. E por mais
inexperto que seja o observador — ao deixar as perspectivas majestosas, que se desdobram ao Sul, trocando-as
pelos cenários emocionantes daquela natureza torturada, tem a impressão persistente de calcar o fundo
recém-sublevado de um mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das ondas e
das voragens...
Um sonho de geólogo
É uma sugestão empolgante.
Vai-se de boa sombra com um naturalista algo romântico, imaginando-se que por ali turbilhonaram, largo
tempo, na idade terciária, as vagas e as correntes.
Porque, a despeito da escassez de dados permitindo uma dessas profecias retrospectivas, no dizer elegante
de Huxley, capaz de esboçar a situação daquela zona em idades remotas, todos os caracteres que sumariamos
reforçam a concepção aventurosa.
Alentam-na ainda: o estranho desnudamento da terra; os alinhamentos notáveis em que jazem os materiais
fraturados, orlando, em verdadeiras curvas de nível, os flancos das serranias; as escarpas dos tabuleiros
terminando em taludes a prumo, que recordam falaises; e, até certo ponto, os restos da fauna pliocena, que fazem
dos caldeirões enormes ossuários de mastodontes, cheios de vértebras caldeirões desconjuntadas e partidas,
como se ali a vida fosse, de chofre, salteada e extinta pelas energias revoltas de um cataclismo.
Há também a presunção derivada de situação anterior, exposta em dados positivos. As pesquisas de Fred.
Hartt, de fato, estabelecem, nas terras circunjacentes a Paulo Afonso, a existência de inegáveis bacias cretáceas;
e sendo os fósseis que as definem idênticos aos encontrados no Peru e México, e contemporâneos dos que
Agassiz descobriu no Panamá — todos estes elementos se acolchetam no deduzir-se que vasto oceano cretáceo
rolou as suas ondas sobre as terras fronteiras das duas Américas, ligando o Atlântico ao Pacífico. Cobria, assim,
grande parte dos Estados setentrionais brasileiros, indo bater contra os terraços superiores dos planaltos, onde
extensos depósitos sedimentários denunciam idade mais antiga, o paleozóico médio.
Então, destacadas das grandes ilhas emergentes, as grimpas mais altas das nossas cordilheiras mal
apontavam ao norte, na solidão imensa das águas...
Não existiam os Andes o Amazonas, largo canal entre altiplanuras das Guianas e as do continente,
separava-as, ilhadas. Para as bandas do sul o maciço de Goiás — o mais antigo do mundo — segundo a dedução
dedução de Gerber, o de Minas e parte do Planalto Paulista, onde fulgurava, em plena atividade, o vulcão de
Caldas, constituíam o núcleo do continente futuro . . .
Porque se operava lentamente uma sublevação geral: as Nassas graníticas alteavam-se ao norte arrastando o
conjunto geral das terras numa rotação vagarosa em torno de um eixo, imaginado por Em. Liais entre os
chapadões de Barbacena e a Bolívia. Simultaneamente ,ao abrir-se a época terciária, se realiza o fato prodigioso
do alevantamento dos Andes; novas terras afloram nas águas: tranca-se, num extremo, o canal amazônico,
transmudando-se no maior dos rios; ampliam-se os arquipélagos esparsos, e ganglionam-se em istmos, e
fundem-se; arredondam-se, maiores, os contornos das costas; e integra-se lentamente, a América.
Então os terrenos da extrema setentrional da Bahia, que se resumiam nos cachopos de quartzito de Monte
Santo e visos de Itiúba, esparsos pelas águas, avolumaram-se, num ascender contínuo. Elas nesse vagaroso
altear-se, enquanto as regiões mais altas recém-desvendadas, se salpintavam de lagos, toda a parte média daquela
escarpa permanecia imersa. Uma corrente impetuosa, de que é forma decaído a atual da nossa costa, enlaçava-a.
E embatendo-a longamente, domina enquanto o resto do país, ao sul, se erigia já constituído, e corroendo-a, e
triturando-a, remoinhando para oeste e arrebatando todos os materiais desagregados, modelava aquele recanto da
Bahia até que ele emergisse de todo, seguindo o movimento geral das terras, feito informe amontoado de
montanhas derruídas.
O regímen desértico ali se firmou, então, em flagrante antagonismo com as disposições geográficas: sobre
uma escarpa, onde nada recorda as depressões sem escoamento dos desertos clássicos.
Acredita-se que a região incipiente ainda está preparando-se para a Vida: o líquen ainda ataca a pedra,
fecundando a terra. E lutando tenazmente com o flagelar do clima, uma flora de resistência rara por ali entretece
a trama das raízes, obstando, em parte, que as torrentes arrebatem todos os princípios exsolvidos —
acumulando-os pouco a pouco na conquista da paragem desolada cujos contornos suaviza — sem impedir,
contudo, nos estios longos, as insolações inclementes e as águas selvagens, degradando o solo.
Daí a impressão dolorosa que nos domina ao atravessarmos aquele ignoto trecho do sertão — quase um
deserto — quer se aperte entre as dobras de serranias nuas ou se estire, monotonamente, em descampados
grandes...
Capítulo II
Golpe de vista do alto de Monte Santo
Do alto da serra de Monte Santo atentando-se para a região, estendida em torno num raio de quinze léguas,
nota-se, como num mapa em relevo, a sua conformação orográfica. E vê-se que as cordas de serras, ao invés de
se alongarem para o nascente, medianas aos traçados do Vaza-Barris e Itapicuru, formando-lhes o divortium
aquarum, progridem para o norte.
Mostram-no as serras Grande e do Atanásio, correndo, e a princípio distintas, uma para NO e outra para N e
fundindo-se na do Acaru, onde abrolham os mananciais intermitentes do Bendegó e seus tributários efêmeros.
Unificadas, aliam-se às de Caraíbas e do Lopes e nestas de novo se embebem, formando-se as massas do
Cambaio, de onde irradiam as pequenas cadeias do Coxomongó e Calumbi, e para o noroeste os píncaros
torreantes do Caipã. Obediente à mesma tendência, a do Aracati, lançando-se a NO, à borda dos tabuleiros de
Jeremoabo, progride, descontínua, naquele rumo e, depois de entalhada pelo Vaza-Barris em Cocorobó, inflete
para o poente, repartindo-se nas da Canabrava e Poço-de-Cima, que a prolongam. Todas traçam, afinal, elítica
curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de
Canudos — e daí para o norte, de novo se dispersam e decaem até acabarem em chapadas altas à borda do S.
Francisco.
Deste modo, no ascender para o norte, procurando o chapadão que o Parnaíba escava, aquele talude dos planaltos
parece dobrar-se num ressalto, perturbando toda a área de drenagem do S. Francisco abaixo da confluência do
Patamuté, num traçado de torrentes sem nome, inapreciáveis na mais favorável escala, e impondo ao Vaza-Barris
um curso tortuoso do qual ele se liberta em Jeremoabo, ao infletir para a costa.
Este é um rio sem afluentes. Falta-lhe conformidade com o declive da terra. Os seus pequenas tributários, o
Bendegó e Caraíbas, volvendo águas transitórias, dentro dos leitos rudemente escavados, não traduzem as
depressões do solo. Têm a existência fugitiva das estações chuvosas. São, antes, canais de esgotamento, abertos a
esmo pelos enxurros — ou correntes velozes que, adstritas aos relevos topográficos mais próximos, estão, não
raro, em desarmonia com as disposições orográficas gerais. São rios que sobem. Enchem-se de súbito;
transbordam; reprofundam os leitos, anulando o obstáculo do declive geral do solo; rolam por alguns dias para o
rio principal; e desaparecem, volvendo ao primitivo aspecto de valos em torcicolos, cheios de pedras, e secos.
O próprio Vaza-Barris, rio sem nascentes em cujo leito viçam gramíneas e pastam os rebanhos, não teria o
traçado atual se corrente perene lhe assegurasse um perfil de equilíbrio através de esforço contínuo e longo. A
sua função como agente geológico é revolucionária. As mais vezes cortado, fracionando-se em gânglios
estagnados, ou seco, à maneira de larga estrada poenta e tortuosa, quando cresce, empanzinado, nas cheias,
captando as águas selvagens que estrepitam nos pendores, volve por algumas semanas águas barrentas e revoltas,
extinguindo-se logo em esgotamento completo, vazando, como o indica o dizer português, substituindo-lhe com
vantagem a antiga denominação indígena. É uma onda tombando das vertentes da Itiúba, multiplicando a energia
da corrente no apertado dos desfiladeiros, e correndo veloz entre barrancos, ou entalada em serras, até
Jeremoabo.
Vimos como a natureza, em roda, lhe imita o regímen brutal — calcando-o em terreno agro, sem os cenários
opulentos das serras e dos tabuleiros ou dos sem-fins das chapadas — mas feito um misto em que tais
disposições naturais se baralham, em confusão pasmosa: planícies que de perto revelam séries de cômoros,
retalhados de algares; morros que o contraste das várzeas faz de grande altura e estão poucas dezenas de metros
sobre o solo, e tabuleiros que em sendo percorridos mostram a acidentação caótica de boqueirões escancelados e
brutos. Nada mais dos belos efeitos das denudações lentas, no remodelar os pendores, no despertar os horizontes
e no desatar — amplíssimos — os gerais pelo teso das cordilheiras, dando aos quadros naturais a encantadora
grandeza de perspectivas em que o céu e a terra se fundem em difusão longínqua e surpreendedora de cores...
Entretanto, inesperado quadro esperava o viandante que subia, depois desta travessia em que supõe pisar
escombros de terremotos, as ondulações mais próximas de Canudos.
Do alto da Favela
Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar para abranger de um lance o conjunto da terra. E nada mais
divisava recordando-lhe os cenários contemplados. Tinha na frente a antítese do que vira. Ali estavam os
mesmos acidentes e o mesmo chão, embaixo, fundamente revolto, sob o indumento áspero dos pedregais e
caatingas estonadas... Mas a reunião de tantos traços incorretos e duros — arregoados divagantes de algares,
sulcos de despenhadeiros, socavas de bocainas, criava-lhe perspectiva inteiramente nova. E quase compreendia
que os matutos crendeiros de imaginativa ingênua, acreditassem que "ali era o céu...”.
O arraial, adiante e embaixo, erigia-se no mesmo solo perturbado. Mas vistos daquele ponto, de permeio a
distância suavizando-lhes as encostas e aplainando-os — todos os serrotes breves e inúmeros, projetando-se em
plano inferior e estendendo-se, uniformes, pelos quadrantes, davam-lhe a ilusão de uma planície ondulante e
grande.
Em roda uma elipse majestosa de montanhas...
A Canabrava, a nordeste, de perfil abaulado e simples; a do Poço de cima, próxima, mas íngreme e alta; a de
Cocorobó, no levante, ondulando em seladas, dispersa em esporões; as vertentes retilíneas do Calumbi ao sul; as
grimpas do Cambaio, no correr para o poente; e, para o norte, os contornos agitados do Caipã —ligam-se e
articulam-se no infletir gradual traçando, fechada, a curva desmedida.
Vendo ao longe, quase de nível, trancando-lhe o horizonte, aquelas grimpas altaneiras, o observador tinha a
impressão alentadora de se achar sobre plateau elevadíssimo, páramo incomparável repousando sobre as serras.
Na planície rugada, embaixo, mal se lobrigavam os pequenos cursos d'água, divagando, serpeantes...
Um único se distinguia, o Vaza-Barris. Atravessava-a, torcendo-se em meandros. Presa numa dessas voltas
via-se uma depressão maior, circundada de colinas... E atulhando-a, enchendo-a toda de confusos tetos
incontáveis, um acervo enorme de casebres...
Capítulo III
O clima
Dos breves apontamentos indicados, resulta que os caracteres geológicos e topográficos, a par dos demais
agentes físicos, mutuam naqueles lugares as influências características de modo a não se poder afirmar qual o
preponderante.
Se, por um lado, as condições genéticas reagem fortemente sobre os últimos, estes, por sua vez,
contribuíram para o agravamento daquelas; e todas persistem nas influência recíprocas. Deste perene conflito
feito num círculo vicioso indefinido, ressalta a dignificação mesológica do local. Não há abrangê-la em todas
modalidades. Escasseiam-nos as observações às coisas desta terra, com uma inércia cômoda de mendigos fartos.
Nenhum pioneiro da ciência suportou ainda as agruras daquele rincão sertanejo, em prazo suficiente para o
definir.
Martius por lá passou, com a mira essencial de observar o aerólito, que tombara à margem do Bendegó e
era já, desde 1810, conhecido nas academias européias, graças a F. Mornay e Wollaston. Rompendo, porém, a
região selvagem, desertus austral, como a batizou, mal atentou para a teria recamada de uma flora extravagante,
sylva horrida, no seu latim alarmado. Os que o antecederam e sucederam palmilharam, ferretoados da canícula,
as mesmas trilhas rápidas, de quem foge. De sorte que sempre evitado, aquele sertão, até hoje desconhecido,
ainda o será por muito tempo.
O que se segue são vagas conjeturas. Atravessamo-lo no prelúdio de um estio ardente e, vendo-o apenas nessa
quadra, vimo-lo sob o pior aspecto. O que escrevemos tem o traço defeituoso dessa impressão isolada,
desfavorecida, ademais, por um meio contraposto à serenidade do pensamento, tolhido pelas emoções da guerra.
Além disto os dados de um termômetro único e de um aneróide suspeito, misérrimo arsenal científico com que
ali lidamos, nem mesmo vagos lineamentos darão de climas que divergem segundo as menores disposições
topográficas, criando aspectos díspares entre lugares limítrofes. O de Monte Santo, por ex., que é, ao primeiro
comparar, muito superior ao de Queimadas, diverge do dos lugares que lhe demoram ao norte, sem a
continuidade que era lícito prever de sua situação intermédia. A proximidade das massas montanhosas torna-o
estável, lembrando um regímen marítimo em pleno continente: escala térmica oscilando em amplitudes
insignificantes; firmamento onde a transparência dos ares é completa e a limpidez inalterável; e ventos reinantes,
o SE no inverno e o NE no estio — alternando-se com rigorismo raro. Mas está insulado. Para qualquer das
bandas, deixa-o o viajante num dia de viagem. Se vai para o norte, salteiam-no transições fortíssimas: a
temperatura aumenta; carrega-se o azul dos céus; embaciam-se os ares; e as ventanias rolam desorientadamente
de todos os quadrantes — ante a tiragem intensa dos terrenos desabrigados, que dali por diante se estiram. Ao
mesmo tempo espelha-se o regímen excessivo: o termômetro oscila em graus disparatados passando, já em
outubro, dos dias com 35° à sombra para as madrugadas frias.
No ascender do verão acentua-se o desequilíbrio. Crescem a um tempo as máximas e as mínimas, até que no
fastígio das secas transcorram as horas num intermitir inaturável de dias queimosos e noites enregeladas.
A terra desnuda tendo contrapostas, em permanente conflito, as capacidades emissiva e absorvente dos
materiais que a formam, do mesmo passo armazena os ardores das soalheiras e deles se esgota, de improviso.
Insola-se e enregela-se, em 24 horas. Fere-a o sol e ela absorve-lhe os raios, e multiplica-os e reflete-os, e
refrata-os, num reverberar ofuscante: pelo topo dos cerros, pelo esbarrancado das encostas, incendeiam-se as
acendalhas da sílica fraturada, rebrilhantes, numa trama vibrátil de centelhas; a atmosfera junto ao chão vibra
num ondular vivíssimo de bocas de fornalha em que se pressente visível, no expandir das colunas aquecidas, a
efervescência dos ares; e o dia, incomparável no fulgor, fulmina a natureza silenciosa, em cujo seio se abate,
imóvel, na quietude de um longo espasmo, a galhada sem folhas da flora sucumbida.
Desce a noite, sem crepúsculo, de chofre — um salto da treva por cima de uma franja vermelha do poente — e
todo este calor se perde no espaço numa irradiação intensíssima, caindo a temperatura de súbito, numa queda
única, assombrosa . . .
Ocorrem, todavia, variantes cruéis. Propelidas pelo nordeste, espessas nuvens, tufando em cúmulos, pairam
ao entardecer sobre as areias incendidas. Desaparece o sol e a coluna mercurial permanece imóvel, ou, de
preferência, sobe. A noite sobrevém em fogo; a terra irradia como um sol escuro, porque se sente uma dolorosa
impressão de faúlhas invisíveis; mas toda a ardência reflui sobre ela, recambiada pelas nuvens. O barômetro cai,
como nas proximidades das tormentas; e mal se respira no bochorno inaturável em que toda a adustão golfada
pela soalheira se concentra numa hora única da noite.
Por um contraste explicável, este fato jamais sucede nos paroxismos estivais das secas, em que prevalece a
intercadência de dias esbraseados e noites frigidíssimas, agravando todas as angústias dos martirizados
sertanejos.
Copiando o mesmo singular desequilíbrio das forças que trabalham a terra, os ventos ali chegam, em geral,
turbilhonando revoltos, em rebojos largos. E, nos meses em que se acentua, o nordeste grava em tudo sinais que
lhe recordam o rumo.
Estas agitações dos ares desaparecem, entretanto, por longos meses; reinando calmarias pesadas — ares
imóveis sob a placidez luminosa dos dias causticantes. Imperceptíveis exercem-se, então, as correntes
ascensionais dos vapores aquecidos sugando à terra a umidade exígua; e quando se prolongam, esboçando o
prelúdio entristecedor da seca, a secura da atmosfera atinge a graus anormalíssimos.
Higrômetros singulares
Não a observamos através do rigorismo de processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e
bizarros.
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um
canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular,
onde as colinas se dispunham circulando a um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em
tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim
em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela — braços largamente abertos, face
volvida para os céus, — um soldado descansava.
Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma
banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo,
derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias
depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, à vala comum de menos de um côvado de fundo
em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o
removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso
repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis
ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a
ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja.
Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao
turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de
modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.
Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimens empalhados, de museus. O pescoço apenas mais
alongado e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.
À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a
montada de um valente, o alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar,
porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos.
Ficou quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto da pedra... E ali estacou feito um animal
fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no ��ltimo arremesso da carga paralisada, com todas
as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas
crinas ondulantes . . .
Quando aquelas lufadas, caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos
turbilhonantes, à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto: cada
partícula de areia suspensa do solo gretado e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a
surda combustão da terra.
Fora disto — nas longas calmarias, fenômenos óticos bizarros.
Do topo da Favela, se a prumo dardejava o sol e a atmosfera estagnada imobilizava a natureza em torno,
atentando-se para os descambados, ao longe, não se distinguia o solo.
O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas desigualmente aquecidas, parecendo varar
através de um prisma desmedido e intáctil, e não distinguia a base das montanhas, como que suspensas. Então,
ao norte da Canabrava, numa enorme expansão dos plainos perturbados, via-se um ondular estonteador; estranho
palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado, sobre que caísse, e
refrangesse, e ressaltasse a luz esparsa em cintilações ofuscantes...
Capítulo IV
As secas
O sertão de Canudos é um índice sumariando a fisiografia dos sertões do Norte. Resume-os, enfeixa os seus
aspectos predominantes numa escala reduzida. É-lhes de algum modo uma zona central comum.
De fato, a inflexão peninsular, extremada pelo cabo de S. Roque, faz que para ele convirjam as lindes interiores
de seis Estados — Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí — que o tocam ou demoram distantes
poucas léguas.
Desse modo é natural que as vicissitudes climáticas daqueles nele se exercitem com a mesma intensidade,
nomeadamente em sua manifestação mais incisiva, definida numa palavra que é o terror máximo dos rudes
partícios que por ali se agitam — a seca.
Escusamo-nos de longamente a estudar, averbando o desbarate dos mais robustos espíritos no aprofundar-lhe a
gênese, tateantes ao través de sem número de agentes complexos e fugitivos. Indiquemos, porém, inscrita num
traçado de números inflexíveis, esta fatalidade inexorável.
De fato, os seus ciclos — porque o são no rigorismo técnico do termo — abrem-se e encerram-se com um ritmo
tão notável que recordam o desdobramento de uma lei natural, ainda ignorada.
Revelou-o, pela primeira vez, o senador Tomás Pompeu, traçando um quadro por si mesmo bastante eloqüente,
em que os aparecimentos das secas, no século passado e atual, se defrontam em paralelismo singular, sendo de
presumir que ligeiras discrepâncias indiquem apenas defeitos de observação ou desvios na tradição oral que as
registrou.
De qualquer modo ressalta à simples contemplação uma coincidência repetida bastante para que se remova a
intrusão do acaso.
Assim, para citarmos apenas as maiores, as secas de (1710-1711), (1723-1727), (1736-1737), (1744-1745),
(1777-1778), do século 18, se justapõem às de ( 1808-1809 ), ( 1824-1825 ) (1835-1837), (1844-1845),
(1877-1879), do atual.
Esta coincidência, espelhando-se quase invariável, como se surgisse do decalque de uma quadra sobre outra,
acentua-se ainda na identidade das quadras remansadas e longas que, em ambas, atreguaram a progressão dos
estragos.
De fato, sendo, no século passado, o maior interregno de 32 anos (1745-1777), houve no nosso outro
absolutamente igual e, o que é sobremaneira notável, com a correspondência exatíssima das datas (1845-1877).
Continuando num exame mais íntimo do quadro, destacam-se novos dados fixos e positivos, aparecendo com um
rigorismo de incógnitas que se desvendam. Observa-se, então, uma cedência raro perturbada na marcha do
flagelo, intercortado de intervalos pouco díspares entre nove e doze anos, e sucedendo-se de maneira a
permitirem previsões seguras sobre a sua irrupção.
Entretanto, apesar desta simplicidade extrema nos resultados imediatos, o problema, que se pode traduzir na
fórmula aritmética mais simples, permanece insolúvel.
Hipóteses sobre a gênese das secas
Impressionado pela razão desta progressão raro alterada, e fixando-a um tanto forçadamente em doze anos, um
naturalista, o barão de Capanema, teve o pensamento de rastrear nos fatos extraterrestres, tão característicos
pelos períodos invioláveis em que se sucedem, a sua origem remota. E encontrou na regularidade com que
repontam e se extinguem, intermitentemente, as manchas da fotosfera solar, um símile completo.
De fato, aqueles núcleos obscuros, alguns mais vastos que a Terra, negrejando dentro da cercadura fulgurante
das fáculas, lentamente derivando à feição da rotação do Sol, têm entre o máximo e o mínimo da intensidade, um
período que pode variar de nove a doze anos. E como desde muito a intuição genial de Herschel lhes descobrira
o influxo apreciável na dosagem de calor emitido para a Terra, a correlação surgia inabalável, neste estear-se em
dados geométricos e físicos acolchetando-se num efeito único.
Restava equiparar o mínimo das manchas, anteparo à irradiação do grande astro, ao fastígio das secas no planeta
torturado — de modo a patentear, cômpares, os períodos de umas e outras.
Falhou neste ponto, em que pese à sua forma atraentíssima, a teoria planeada: raramente coincidem as datas do
paroxismo estival, no Norte, com as daquele.
O malogro desta tentativa, entretanto, denuncia menos a desvalia de uma aproximação imposta rigorosamente
por circunstâncias tão notáveis, do que o exclusivismo de atentar-se para uma causa única. Porque a questão,
com a complexidade imanente aos fatos concretos, se atém, de preferência, a razões secundárias, mais próximas
e enérgicas, e estas, em modalidades progredindo, contínuas, da natureza do solo à disposição geográfica, só
serão definitivamente sistematizadas quando extensa série de observações permitir a definição dos agentes
preponderantes do clima sertanejo.
Como quer que seja, o penoso regímen dos Estados do Norte está em função de agentes desordenados e
fugitivos, sem leis ainda definidas, sujeitas às perturbações locais, derivadas da natureza da terra, e a reações
mais amplas, promanadas das disposições geográficas. Daí as correntes aéreas que o desequilibram e variam.
Determina-o em grande parte, e talvez de modo preponderante, a monção de nordeste, oriunda da forte aspiração
dos planaltos interiores que, em vasta superfície alargada até ao Mato Grosso, são, como se sabe, sede de
grandes depressões barométricas, no estio. Atraído por estas, o nordeste vivo, ao entrar, de dezembro a março,
pelas costas setentrionais, é singularmente favorecido pela própria conformação da terra, na passagem célere por
sobre os chapadões desnudos que irradiando intensamente lhe alteiam o ponto de saturação diminuindo as
probabilidades das chuvas, e repelindo-o, de modo a lhe permitir acarretar para os recessos do continente,
intacta, sobre os mananciais dos grandes rios, toda a umidade absorvida na travessia dos mares.
De fato, a disposição orográfica dos sertões, à parte ligeiras variantes — cordas de serras que se alinham para
nordeste paralelamente à monção reinante — , facilita a travessia desta. Canaliza-a. Não a contrabate num
antagonismo de encostas, abarreirando-a, alteando-a, provocando-lhe resfriamento e a condensação em chuvas.
Um dos motivos das secas repousa, assim, na disposição topográfica.
Falta às terras flageladas do Norte uma alta serrania que, correndo em direção perpendicular àquele vento,
determine a dynamic colding, consoante um dizer expressivo.
Um fato natural de ordem mais elevada esclarece esta hipótese.
Assim é que as secas aparecem sempre entre duas datas fixadas há muito pela prática dos sertanejos, de 12 de
dezembro a 19 de março. Fora de tais limites não há um exemplo único de extinção de secas. Se os atravessam,
prolongam-se fatalmente por todo o decorrer do ano, até que se reabra outra vez aquela quadra. Sendo assim e
lembrando-nos que é precisamente dentro deste intervalo que a longa faixa das calmas equatoriais, no seu lento
oscilar em torno do equador, paira no zênite daqueles Estados. levando a borda até aos extremos da Bahia, não
poderemos considerá-la, para o caso, com a função de uma montanha ideal que correndo de leste a oeste
corrigindo momentaneamente lastimável disposição orográfica, se anteponha a monção e lhe provoque a parada,
a ascensão das correntes, o resfriamento subseqüente e a condensação imediata nos aguaceiros diluvianos que
tombam então, de súbito, sobre os sertões ?
Este desfiar de conjeturas tem o valor de indicar quantos fatores remotos podem incidir numa questão que
duplamente nos interessa pelo seu traço superior na ciência, e pelo seu significado mais íntimo no envolver o
destino de extenso trato do nosso país. Remove, por isto, a segundo plano o influxo até hoje inutilmente agitado
dos alísios, e é de alguma sorte fortalecido pela intuição do próprio sertanejo para quem a persistência do
nordeste — o vento da seca, como o batiza expressivamente — equivale à permanência de uma situação
irremediável e crudelíssima.
As quadras benéficas chegam de improviso.
Depois de dois ou três anos, como de 1877-1879, em que a insolação rescalda intensamente as chapadas
desnudas, a sua própria intensidade origina um reagente inevitável. Decai afinal, por toda a parte, de modo
considerável, a pressão atmosférica. Apruma-se maior e mais bem definida, a barreira das correntes ascensionais
dos ares aquecidos, antepostas às que entram pelo litoral. E entrechocadas umas e outras, num desencadear de
tufões violentos, alteiam-se, retalhadas de raios, nublando em minutos o firmamento todo, desfazendo-se logo
depois em aguaceiros fortes sobre os desertos recrestados.
Então parece tornar-se visível o anteparo das colunas ascendentes, que determinam o fenômeno, na colisão
formidável com o nordeste.
Segundo numerosas testemunhas — as primeiras bátegas despenhadas da altura não atingem a terra. A meio
caminho se evaporam entre as camadas referventes que sobem, e volvem, repelidas, às nuvens, para, outra vez
condensando-se, precipitarem-se de novo e novamente refluírem; até tocarem o solo que a princípio não
umedecem, tornando ainda aos espaços com rapidez maior, numa vaporização quase como se houvessem caído
sobre chapas incandescentes, para mais uma vez descerem, numa permuta rápida e contínua, até que se formem,
afinal, os primeiros fios de água derivando pelas pedras, as primeiras torrentes em despenhos pelas encostas,
afluindo em regatos já avolumados entre as quebradas, concentrando-se tumultuariamente em ribeirões
correntosos; adensando-se, estes, em rios barrentos traçados ao acaso, à feição dos declives, em cujas correntezas
passam velozmente os esgalhos das árvores arrancadas, rolando todos e arrebentando na mesma onda, no mesmo
caos de águas revoltas e escuras...
Se ao assalto subitâneo se sucedem as chuvas regulares, transmudam-se os sertões, revivescendo. Passam, porém
não raro, num giro célere, de ciclone. A drenagem rápida do terreno e a evaporação, que se estabelece logo mais
viva, tornam-nos, outra vez, desolados e áridos. E penetrando-lhes a atmosfera ardente, os ventos duplicam a
capacidade higrométrica, e vão, dia a dia, absorvendo a umidade exígua da terra —reabrindo o ciclo inflexível
das secas...
As caatingas
Então, a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de uma estepe nua.
Nesta, ao menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a perspectiva das planuras francas.
Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na trama espinescente e
não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; e
desdobra-se-lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos estorcidos
e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando
um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante . . .
Embora esta não tenha as espécies reduzidas dos desertos — mimosas tolhiças ou eufórbias ásperas sobre o
tapete das gramíneas murchas — e se afigure farta de vegetais distintos, as suas árvores, vistas em conjunto,
semelham uma só família de poucos gêneros, quase reduzida a uma espécie invariável, divergindo apenas no
tamanho, tendo todas a mesma conformação, a mesma aparência de vegetais morrendo, quase sem troncos, em
esgalhos logo ao irromper do chão. É que por um efeito explicável de adaptação às condições estreitas do meio
ingrato, evolvendo penosamente em círculos estreitos, aquelas mesmo que tanto se diversificam nas matas ali se
talham por um molde único. Transmudam-se, e em lenta metamorfose vão tendendo para limitadíssimo número
de tipos caracterizados pelos atributos dos que possuem maior capacidade de resistência.
Esta impõe-se, tenaz e inflexível.
A luta pela vida, que nas florestas se traduz como uma tendência irreprimível para a luz, desatando-se os
arbustos em cipós, elásticos, distensos, fugindo ao afogado das sombras e alteando-se presos mais aos raios do
Sol do que aos troncos seculares de ali, de todo oposta, é mais obscura, é mais original, é mais comovedora. O
Sol é o inimigo que é forçoso evitar, iludir ou combater. E evitando-o pressente-se de algum modo, como o
indicaremos adiante, a inumação da flora moribunda, enterrando-se os caules pelo solo. Mas como este, por seu
turno, é áspero e duro, exsicado pelas drenagens dos pendores ou esterilizado pela sucção dos estratos
completando as insolações, entre dois meios desfavoráveis — espaços candentes e terrenos agros —as plantas
mais robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta batalha surda.
As leguminosas, altaneiras noutros lugares, ali se tornam anãs. Ao mesmo tempo ampliam o âmbito das frondes,
alargando a superfície de contato com o ar, para a absorção dos escassos elementos nele difundidos. Atrofiam as
raízes mestras batendo contra o subsolo impenetrável e substituem-nas pela expansão irradiante das radículas
secundárias, ganglionando-as em tubérculos túmidos de seiva. Amiúdam as folhas. Fitam-nas rijamente, duras
como cisalhas, à ponta dos galhos para diminuírem o campo da insolação. Revestem de um indumento protetor
os frutos, rígidos, às vezes, como estróbilos. Dão-lhes na deiscência perfeita com que as vagens se abrem,
estalando como se houvessem molas de aço, admiráveis aparelhos para propagação das sementes, espalhando-as
profusamente pelo chão. E têm, todas, sem excetuar uma única, no perfume suavíssimo das flores , anteparos
intácteis que nas noites frias sobre elas se alevantam e se arqueiam obstando a que sofram de chofre as quedas de
temperatura, tendas invisíveis e encantadoras, resguardando-as...
Assim disposta, a árvore aparelha-se para reagir contra o regímen bruto.
Ajusta-se sobre os sertões o cautério das secas; esterilizam-se os ares urentes; empedra-se o chão, gretando,
recrestado; ruge o nordeste nos ermos; e, como um cilício dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as
ramagens de espinhos... Mas, reduzidas todas as funções, a planta, estivando, em vida latente, alimenta-se das
reservas que armazena nas quadras remansadas e rompe os estios, pronta a transfigurar-se entre os
deslumbramentos da primavera.
Algumas, em terrenos mais favoráveis, iludem ainda melhor as intempéries, em disposição singularíssima.
Vêem-se numerosos aglomerados em capões ou salpintando, isolados, as macegas, arbúsculos de pouco mais de
metro de alto, de largas folhas espessas e luzidias, exuberando floração ridente em meio da desolação geral. São
os cajueiros anões, os típicos anacardia humilis das chapadas áridas, os cajuís dos indígenas. Estes vegetais
estranhos, quando ablaqueados em roda, mostram raízes que se entranham a surpreendente profundura. Não há
desenraizá-los. O eixo descendente aumenta-lhes maior à medida que se escava. Por fim se nota que ele vai
repartindo-se em divisões dicotômicas. Progride pela terra dentro até a um caule único e vigoroso, embaixo.
Não são raízes, são galhos. E os pequeninos arbúsculos, esparsos, ou repontando em tufos, abrangendo às vezes
largas áreas, uma árvore única e enorme, inteiramente soterrada.
Espancado pelas canículas, fustigado dos sóis, roído dos enxurros, torturado pelos ventos, o vegetal parece
derrear-se aos embates desses elementos antagônicos e abroquelar-se daquele modo, invisível, no solo sobre que
alevanta apenas os mais altos renovos da fronde majestosa.
Outros, sem esta conformação, se aparelham de outra sorte.
As águas que fogem no volver selvagem das torrentes, ou entre as camadas inclinadas dos xistos, ficam retidas,
longo tempo, nas espatas das bromélias, aviventando-as. No pino dos verões, um pé de macambira é para o
matuto sequioso um copo d'água cristalina e pura. Os caroás verdoengos, de flores triunfais e altas; os gravatás e
ananases bravos, trançados em touceiras impenetráveis, copiam-lhe a mesma forma, adrede feita àquelas
paragens estéreis. As suas folhas ensiformes, lisas e lustrosas, como as da maioria dos vegetais sertanejos,
facilitam a condensação dos vapores escassos trazidos pelos ventos, por maneira a debelar-se o perigo máximo à
vida vegetativa, resultante de larga evaporação pelas folhas, esgotando e vencendo a absorção pelas radículas.
Sucedem-se outros, diversamente apercebidos, sob novos aprestos, mas igualmente resistentes.
As nopaleas e cactus, nativas em toda a parte, entram na categoria das fontes vegetais, de Saint-Hilaire. Tipos
clássicos da flora desértica, mais resistentes que os demais, quando decaem a seu lado, fulminadas, as árvores
todas, persistem inalteráveis ou mais vívidos talvez. Afeiçoaram-se aos regímens bárbaros; repelem os climas
benignos em que estiolam e definham. Ao passo que o ambiente em fogo dos desertos parece estimular melhor a
circulação da seiva entre os seus cladódios túmidos.
As favelas, anônimas ainda na ciência — ignoradas dos sábios, conhecidas demais pelos tabaréus —talvez um
futuro gênero cauterium das leguminosas, têm, nas folhas de células alongadas em vilosidades, notáveis aprestos
de condensação, absorção e defesa. Por um lado, a sua epiderme ao resfriar-se, à noite, muito abaixo da
temperatura do ar, provoca, a despeito da secura deste, breves precipitações de orvalho; por outro, a mão, que a
toca, toca uma chapa incandescente de ardência inaturável.
Ora, quando ao revés das anteriores as espécies não se mostram tão bem armadas para a reação vitoriosa,
observam-se dispositivos porventura mais interessantes: unem-se, intimamente abraçadas, transmudando-se em
plantas sociais. Não podendo revidar isoladas, disciplinam-se, congregam-se, arregimentam-se. São deste
número todas as cesalpinas e as catingueiras, constituindo, nos trechos em que aparecem, sessenta por cento das
caatingas; os alecrins-dos-tabuleiros, e os canudos-de-pito, heliotrópios arbustivos de caule oco, pintalgado de
branco e flores em espiga, destinados a emprestar o nome ao mais lendário dos vilarejos...
Não estão no quadro das plantas sociais brasileiras, de Humboldt, e é possível que as primeiras vicejem, noutros
climas, isoladas. Ali se associam. E, estreitamente solidárias as suas raízes, no subsolo, em apertada trama, retém
as águas, retêm as terras que se desagregam, e formam, ao cabo, num longo esforço, o solo arável em que
nascem, vencendo, pela capilaridade do inextricável tecido de radículas enredadas em malhas numerosas, a
sucção insaciável dos estratos e das areias. E vivem. Vivem é o termo — porque há, no fato, um traço superior à
passividade da evolução vegetativa...
O juazeiro
Têm o mesmo caráter os juazeiros, que raro perdem as folhas de um verde intenso, adrede modeladas às reações
vigorosas da luz. Sucedem-se meses e anos ardentes. Empobrece-se inteiramente o solo aspérrimo. Mas, nessas
quadras cruéis, em que as soalheiras se agravam, à vezes, com os incêndios espontaneamente acesos pelas
ventanias atritando rijamente os galhos secos e estonados sobre o depauperamento geral da vida, em roda, eles
agitam as ramagens virentes, alheios às estações, floridos sempre, salpintando o deserto com as flores cor de
ouro, álacres, esbatidas no pardo dos restolhos — à maneira de oásis verdejantes e festivos.
A dureza dos elementos cresce, entretanto, em certas quadras, ao ponto de os desnudar: é que se enterroaram há
muito os fundos das cacimbas, e os leitos endurecidos das ipueiras mostram, feito enormes carimbos, em moldes,
os rastros velhos das boiadas; e o sertão de todo se impropriou à vida.
Então, sobre a natureza morta, apenas se alteiam os cereus esguios e silentes, aprumando os caules circulares
repartidos em colunas poliédricas e uniformes, na simetria impecável de enormes candelabros. E avultando ao
descer das tardes breves sobre aqueles ermos, quando os abotoam grandes frutos vermelhos destacando-se,
nítidos, à meia luz dos crepúsculos, eles dão a ilusão emocionante de círios enormes, fincados a esmo no solo,
espalhados pelas chapadas, e acesos...
Caracterizam a flora caprichosa da plenitude do estio.
Os mandacarus ( cereus jaramacaru ), atingindo notável altura, raro aparecendo em grupos, assomando isolados
acima da vegetação caótica, são novidade atraente, a princípio. Atuam pelo contraste. Aprumam-se tesos
triunfalmente, enquanto por toda a banda a flora se deprime. O olhar, perturbado pelo acomodar-se à
contemplação penosa dos acervos de ramalhos estorcidos, descansa e retifica-se percorrendo os seus caules
direitos e corretos. No fim de algum tempo, porém, são uma obsessão acabrunhadora. Gravam em tudo
monotonia inaturável, sucedendo-se constantes, uniformes, idênticos todos, todos do mesmo porte, igualmente
afastados, distribuídos com uma ordem singular pelo deserto.
Os xiquexiques (cactus peruvianus) são uma variante de proporções inferiores, fracionando-se em ramos
fervilhantes de espinhos, recurvos e rasteiros, recamados de flores alvíssimas. Procuram os lugares ásperos e
ardentes. São os vegetais clássicos dos areais queimosos. Aprazem-se no leito abrasante das lajens graníticas
feridas pelos sóis.
Têm como sócios inseparáveis neste habitat, que as próprias orquídeas evitam, os cabeças-de-frade, deselegantes
e monstruosos melocactos de forma elipsoidal, acanalada, de gomos espinescentes, convergindo-lhes no vértice
superior formado uma flor única intensamente rubra. Aparecem de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando,
realmente, no tamanho, na conformação, no modo por que se espalham, a imagem singular de cabeças decepadas
e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica. É que estreitíssima frincha lhes permitiu
insinuar, através da rocha, a raiz longa e capilar até a parte inferior, onde acaso existam, livres de evaporação,
uns restos de umidade.
E a vasta família, revestindo todos os aspectos, decai, a pouco e pouco, até aos quipás reptantes, espinhosos,
humílimos, trançados sobre a terra à maneira de espartos de um capacho dilacerador; às ripsalides serpeantes,
flexuosas, como víboras verdes pelos ramos, de parceria com os frágeis cactos epifitas, de um glauco
empalecido, presos por adligantes aos estipites dos ouricurizeiros, fugindo do solo bárbaro para o remanso da
copa da palmeira.
Aqui, ali, outras modalidades: as palmatórias-do-inferno opúntias de palmas diminutas, diabolicamente erriçadas
de espinhos — com o vivo carmim das cochonilhas que alimentam; orladas de flores rutilantes, quebrando
alacremente a tristeza solene das paisagens...
E pouco mais especializa quem anda, pelos dias claros, por aqueles ermos, entre árvores sem folhas e sem flores.
Toda a flora, como em uma derrubada, se mistura em baralhamento indescritível. É a catanduva, mato doente, da
etimologia indígena, dolorosamente caída sobre o seu terrível leito de espinhos !
Vingado um cômoro qualquer, postas em torno as vistas, perturba-as o mesmo cenário desolador: a vegetação
agonizante, doente e informe, exausta, num espasmo doloroso...
É a sylva oestu aphylla, a sylva borrida, de Martius, abrindo no seio iluminado da natureza tropical um vácuo de
deserto.
Compreende-se, então, a verdade da frase paradoxal, de Aug. de Saint-Hilaire: "Há, ali, toda a melancolia dos
invernos, com um sol ardente e os ardores do verão!"
A luz crua dos dias longos flameja sobre a terra imóvel e não a anima. Reverberam as infiltrações de quartzo
pelos cerros calcários, desordenadamente esparsos pelos ermos, num alvejar de banquises; e, oscilando à ponta
dos ramos secos das árvores inteiriçadas, dependuram-se as tilândsias alvacentas, lembrando flocos esgarçados,
de neve, dando ao conjunto o aspecto de uma paisagem glacial de vegetação hibernante, nos gelos . . .
A tormenta
Mas no empardecer de uma tarde qualquer, de março, rápidas tardes sem crepúsculos, prestes afogadas na noite,
as estrelas pela primeira vez cintilam vivamente.
Nuvens volumosas abarreiram ao longe os horizontes, recortando-os em relevos imponentes de montanhas
negras.
Sobem vagarosamente; incham, bolhando em lentos e desmesurados rebojos, na altura; enquanto os ventos
tumultuam nos plainos, sacudindo e retorcendo as galhadas.
Embruscado em minutos, o firmamento golpeia-se de relâmpagos precípites, sucessivos, sarjando fundamente a
imprimadura negra da tormenta. Reboam ruidosamente as trovoadas fortes. As bátegas de chuva tombam
grossas, espaçadamente, sobre o chão, adunando-se logo em aguaceiro diluviano...
Ressurreição da flora
E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o deserto.
Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical.
É uma mutação de apoteose.
Os mulungus rotundos, à borda das cacimbas cheias, estafolhas; as caraíbas e baraúnas altas refrondescem à
margem dos ribeirões refertos; ramalham, ressoantes, os marizeiros esgalhados, à passagem das virações suaves;
assomam, vivazes, amortecendo as truncaduras das quebradas, as quixabeiras de folhas pequeninas e frutos que
lembram contas de ônix; mais virentes, adensam-se os icozeiros pelas várzeas, sob o ondular festivo das copas
dos ouricuris: ondeiam, móveis, avivando a paisagem, acamando-se nos plainos, arredondando as encostas, as
moitas floridas do alecrim-dos-tabuleiros, de caules finos e flexíveis; as umburanas perfumam os ares,
filtrando-os nas frondes enfolhadas, e — dominando a revivescência geral — não já pela altura senão pelo
gracioso do porte, os umbuzeiros alevantam dois metros sobre o chão, irradiantes em círculo, os galhos
numerosos.
O umbuzeiro
É a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros.
Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja. Foi, talvez, de talhe mais vigoroso e alto —
e veio descaindo, pouco a pouco, numa interdecadência de estios flamívomos e invernos torrenciais,
modificando-se à feição do meio, desinvoluindo, até se preparar para a resistência e reagindo, por fim,
desafiando as secas duradouras, sustentando-se nas quadras miseráveis mercê da energia vital que economiza nas
estações benéficas das reservas guardadas em grande cópia nas raízes.
E reparte-as com o homem. Se não existisse o umbuzeiro aquele trato de sertão, tão estéril que nele escasseiam
os carnaubais tão providencialmente dispersos nos que o convizinham até ao Ceará, estaria despovoado. O umbu
é para o infeliz matuto que ali vive o mesmo que a mauritia para os garaunos dos llanos.
Alimenta-o e mitiga-lhe a sede. Abre-lhe o seio acariciador e amigo, onde os ramos recurvos e entrelaçados
parecem de propósito feitos para a armação das redes bamboantes. E ao chegarem os tempos felizes dá-lhe os
frutos de sabor esquisito para o preparo da umbuzada tradicional.
O gado, mesmo nos dias de abastança, cobiça o sumo acidulado das suas folhas. Realça-se-lhe, então, o porte,
levantada, em recorte firme, a copa arredondada, num plano perfeito sobre o chão, à altura atingida pelos bois
mais altos, ao modo de plantas ornamentais entregues à solicitude de práticos jardineiros. Assim decotadas
semelham grandes calotas esféricas. Dominam a flora sertaneja nos tempos felizes, como os cereus melancólicos
nos paroxismos estivais.
A jurema
As juremas, prediletas dos caboclos — o seu haxixe capitoso, fornecendo-lhes, grátis, inestimável beberagem,
que os revigora depois das caminhadas longas, extinguindo-lhes as fadigas em momentos, feito um filtro mágico
— derramam-se em sebes, impenetráveis tranqueiras disfarçadas em folhas diminutas; refrondam os marizeiros
raros — misteriosas árvores que pressagiam a volta das chuvas e das épocas aneladas do "verde” e o termo da
"magrém" — quando, em pleno flagelar da seca, Ihes porejam na casca ressequida dos troncos algumas gotas
d'água; reverdecem os angicos; lourejam os juás em moitas, e as baraúnas de flores em cachos, e os araticuns à
ourela dos banhados... mas, destacando-se, esparsos pelas chapadas, ou no bolear dos cerros, os umbuzeiros,
estrelando flores alvíssimas, abrolhando em folhas, que passam em fugitivos cambiantes de um verde pálido ao
róseo vivo dos rebentos novos, atraem melhor o olhar, são a nota mais feliz do cenário deslumbrante.
O sertão é um paraíso
E o sertão é um paraíso...
Ressurge ao mesmo tempo a fauna resistente das caatingas: disparam pelas baixadas úmidas os caititus esquivos;
passam, em varas, pelas tigüeras num estrídulo estrepitar de maxilas percutindo, os queixadas de canela ruiva;
correm pelos tabuleiros altos, em bandos, esporeando-se com os ferrões de sob as asas, as emas velocíssimas; e
as seriemas de vozes lamentosas, e as sericóias vibrantes, cantam nos balsedos, à fimbria dos banhados onde
vem beber o tapir estacando um momento no seu trote, brutal, inflexivelmente retilíneo, pela caatinga,
derribando árvores; e as próprias suçuaranas, aterrando os mocós espertos que se aninham aos pares, nas luras
dos fraguedos, pulam, alegres, nas macegas altas, antes de quedarem nas tocaias traiçoeiras aos veados ariscos
ou novilhos desgarrados...
Manhãs sertanejas
Sucedem-se manhãs sem par, em que o irradiar do levante incendido retinge a púrpura das eritrinas e destaca
melhor, engrinaldando as umburanas de casca arroxeada, os festões multicores das bignônias. Animam-se os ares
numa palpitação de asas, céleres, ruflando. — Sulcam-nos as notas de clarins estranhos. Num tumultuar de
desencontrados vôos passam, em bandos, as pombas bravas que remigram, e rolam as turbas turbulentas das
maritacas estridentes... enquanto feliz, deslembrado de mágoas, segue o campeiro pelos arrastadores, tangendo a
boiada farta, e entoando a cantiga predileta...
Assim se vão os dias.
Passam-se um, dois, seis meses venturosos, derivados da exuberância da terra, até que surdamente,
imperceptivelmente, num ritmo maldito, se despeguem, a pouco e pouco, e caiam, as folhas e as flores, e a seca
se desenhe outra vez nas ramagens mortas das árvores decíduas....
Capítulo V
Uma categoria geográfica que Hegel não citou
Resumamos, enfeixemos estas linhas esparsas.
Hegel delineou três categorias geográficas como elementos fundamentais colaborando com outros no reagi:
sobre o homem, criando diferenciações étnicas:
As estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales férteis, profusamente irrigados; os
litorais e as ilhas.
Os llanos da Venezuela; as savanas que alargam o vale do Mississípi, os pampas desmedidos e o próprio
Atacama desatado sobre os Andes — vasto terraço onde vagueiam dunas — inscrevem-se rigorosamente nos
primeiros.
Em que pese aos estios longos, as trombas formidáveis de areia, e ao saltear de súbitas inundações, não se
incompatibilizam com a vida.
Mas não fixam o homem à terra.
A sua flora rudimentar, de gramíneas e ciperáceas, reviçando vigorosa nas quadras pluviosas, é um
incentivo à vida pastoril, às sociedades errantes dos pegureiros, passando móveis, num constante armar e
desarmar de tendas, por aqueles plainas — rápidas, dispersas aos primeiros fulgores do verão.
Não atraem. Patenteiam sempre o mesmo cenário de uma monotonia acabrunhadora, com a variante única
da cor: um oceano imóvel, sem vagas e sem praias.
Têm a força centrífuga do deserto: repelem; desunem; dispersam. Não se podem ligar a humanidade pelo
vinculo nupcial do sulco dos arados. São um isolador étnico como as cordilheiras e o mar, ou as estepes da
Mongólia, varejadas, em corridas doidas, pelas catervas turbulentas dos tártaros errabundos.
Aos sertões do Norte, porém, que à primeira vista se lhes equiparam, falta um lugar no quadro do pensador
germânico.
Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela primeira subdivisão; ao atravessá-los no
inverno, acredita-se que são parte essencial da segunda.
Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes...
Na plenitude das secas são positivamente o deserto. Mas quando estas não se prolongam ao ponto de
originarem penosíssimos êxodos, o homem luta como as árvores, com as reservas armazenadas nos dias de
abastança e, neste combate feroz, anônimo, terrivelmente obscuro, afogado na solidão das chapadas, a natureza
não o abandona de todo. Ampara-o muito além das horas de desesperança, que acompanham o esgotamento das
últimas cacimbas.
Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a
desolação anterior. Os vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escalvados, repentinamente verdejantes.
A vegetação recama de flores, cobrindo-os, os grotões escancelados, e disfarça a dureza das barrancas, e
arredonda em colinas os acervos de blocos disjungidos — de sorte que as chapadas grandes, intermeadas de
convales, se ligam em curvas mais suaves aos tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o desaparecer das
soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos tons na paisagem: a transparência do espaço salienta as
linhas mais ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor.
Dilatam-se os horizontes. O firmamento sem o azul carregado dos desertos alteia-se, mais profundo, ante o
expandir revivescente da terra.
E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono.
Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora; o empedramento do solo; a
nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência das chuvas — o espasmo
assombrador da seca.
A natureza compraz-se em um jogo de antíteses.
Eles impõem por isto uma divisão especial naquele quadro. A mais interessante e expressiva de todas —
posta, como mediadora, entre os vales nimiamente férteis e as estepes mais áridas.
Relegando a outras páginas a sua significação como fator de diferenciação étnica, vejamos o seu papel na
economia da terra.
A natureza não cria normalmente os desertos. Combate-os, repulsa-os. Desdobram-se, lacunas
inexplicáveis, às vezes sob as linhas astronômicas definidoras da exuberância máxima da vida. Expressos no tipo
clássico do Saara — que é um termo genérico da região maninha dilatada do Atlântico ao Indico, entrando pelo
Egito e pela Síria, assumindo todos os aspectos da enorme depressão africana ao plateau arábico ardentíssimo de
Nedjed e avançando daí para as areias dos bejabans, na Pérsia — são tão ilógicos que o maior dos naturalistas
lobrigou a gênese daquele na ação tumultuaria de um cataclismo, uma irrupção do Atlântico, precipitando-se,
águas revoltas, num irresistível remoinhar de correntes, sobre o Norte da- África e desnudando-a furiosamente.
Esta explicação de Humboldt, embora se erija apenas como hipótese brilhante, tem um significado superior.
Extinta a preponderância do calor central e normalizados os climas, do extremo norte e do extremo sul, a
partir dos pólos inabitáveis, a existência vegetativa progride para a linha equinocial. Sob esta ficam as zonas
exuberantes por excelência, onde os arbustos de outras se fazem árvores e o regímen, oscilando em duas estações
únicas, determina uniformidade favorável à evolução dos organismos simples, presos diretamente às variações
do meio. A fatalidade astronômica da inclinação da eclética, que coloca a Terra em condições biológicas
inferiores às de outros planetas, mal se percebe nas paragens onde uma montanha única sintetiza, do sopé às
cumeadas, todos os climas do mundo.
Entretanto, por elas passa, interferindo a fronteira ideal dos hemisférios, o equador termal, de traçado
perturbadíssimo de inflexões vivas, partindo-se nos pontos singulares em que a vida é impossível; passando dos
desertos às florestas, do Saara, que o repuxa para o norte, à Índia opulentíssima, depois de tangenciar a ponta
meridional da Arábia paupérrima; varando o Pacífico num longo traço — rarefeito colar de ilhas desertas e
escalvadas — e abeirando, depois, em lento descambar para o sul, a Hilae portentosa do Amazonas.
Da extrema aridez à exuberância extrema...
É que a morfologia da terra viola as leis gerais dos clima. Mas todas as vezes que o facies geográfico não as
combate de todo a natureza reage. Em luta surda, cujos efeitos fogem ao próprio raio dos ciclos históricos, mas
emocionante, para quem consegue lobrigá-la ao, através de séculos sem conto, entorpecida sempre pelos agentes
adversos, mas tenaz, incoercível, num evolver seguro, a terra como um organismo, se transmuda por
intuscepção, indiferente aos elementos que lhe tumultuam à face.
De sorte que se as largas depressões eternamente condenadas, a exemplo da Austrália, permanecem estéreis
se anulam, noutros pontos, os desertos.
A própria temperatura abrasada acaba lhes dar um mínimo de pressão atraindo o afluxo das chuvas; e as
areias móveis, riscadas pelos ventos, negando largo tempo a pega à planta mais humilde, imobilizam-se, a pouco
e pouco, presas nas radículas das gramíneas; o chão ingrato e a rocha estéril decaem sob a ação imperceptível
dos líquens, que preparam a vinda das lecídeas frágeis; e por fim, os platôs desnudos, llanos e pampas de
vegetação escassa, as savanas e as estepes mais vivazes da Ásia Central, surgem, num crescendo, refletindo
sucessivas fases de transfigurações maravilhosas.
Como se faz um deserto
Ora, os sertões do Norte, a despeito de uma esterilidade menor, contrapostos a este critério natural, figuram
talvez o ponto singular de uma evolução regressiva.
Imaginamo-los há pouco, numa retrospecção em que, certo, a fantasia se insurgiu contra a gravidade da
ciência, a emergirem, geologicamente modernos, de um vasto mar terciário.
À parte essa hipótese absolutamente instável, porém, o certo é que um complexo de circunstâncias lhes tem
dificultado regímen contínuo, favorecendo flora mais vivaz.
Esboçamos anteriormente algumas.
Esquecemo-nos, todavia, de um agente geológico notável — o homem.
Este, de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo o
decorrer da história, o papel de um terrível fazedor de desertos.
Começou isto por um desastroso legado indígena.
Na agricultura primitiva dos silvícolas era instrumento fundamental — o fogo.
Entalhadas as árvores pelos cortantes dgis de diorito; encoivarados, depois de secos, os ramos,
alastravam-lhes por cima, crepitando, as caiçaras, em bulcão de fumo, tangidas pelos ventos. Inscreviam, depois,
nas cercas de troncos combustos das caiçaras, a área em cinzas onde fora a mata exuberante. Cultivavam-na.
Renovavam o mesmo processo na estação seguinte, até que, de todo exaurida, aquela mancha da terra fosse,
imprestável, abandonada em caapuera — mato extinto — como o denuncia a etimologia tupi, jazendo dali por
diante irremediavelmente estéril porque, por uma circunstância digna de nota, as famílias vegetais que surgiam
subsecutivamente no terreno calcinado eram sempre de tipos arbustivos enfezados, de todo distintos dos da selva
primitiva. O aborígine prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas, alargando o círculo
dos estragos em novas caapueras, que ainda uma vez deixava para formar outras noutros pontos, aparecendo
maninhas, num evolver enfezado, inaptas para reagir com os elementos exteriores, agravando, à medida que se
ampliavam, os rigores do próprio clima que as flagelava, e entretecidas de carrascais, afogadas em macegas,
espelhando aqui o aspecto adoentado da catanduva sinistra, além a braveza convulsiva da caatinga brancacenta.
Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder. Engravesceu-o ainda com o adotar, exclusivo, no
centro do país, fora da estreita faixa dos canaviais da costa, o regímen francamente pastoril.
Abriram-se desde o alvorecer do século 17, nos sertões abusivamente sesmados, enormíssimos campos,
compáscuos sem divisas, estendendo-se pelas chapadas em fora.
Abria-os, de idêntico modo, o fogo livremente aceso, sem aceiros, avassalando largos espaços, solto nas
lufadas violentas do nordeste. Aliou-se-lhe ao mesmo tempo o sertanista ganancioso e bravo, em busca do
silvícola e do ouro. Afogado nos recessos de uma flora estupenda que lhe escurentava as vistas e sombreava
perigosamente as tocaias do tapuia e as tocas do canguçu temido, dilacerou-a golpeando-a de chamas, para
desafogar os horizontes e destacar bem perceptíveis, tufando nos descampados limpos, as montanhas que o
norteavam, balizando a marcha das bandeiras.
Atacou a fundo a terra, escarificando-a nas explorações a céu aberto; esterilizou-a com os lastros das
grupiaras; feriu-a a pontaços de alvião; degradou-a corroendo-a com as águas selvagens das torrentes; e deixou,
aqui, ali, em toda parte, para sempre estéreis, avermelhando nos ermos com o intenso colorido das argilas
revolvidas, onde não medra a planta mais exígua, as grandes catas, vazias e tristonhas, com a sua feição
sugestiva de imensas cidades mortas, derruídas...
Ora, estas selvatiquezas atravessaram toda a nossa história. Ainda em meados deste século, no atestar de
velhos habitantes das povoações ribeirinhas do S. Francisco, os exploradores que em 1830 avançaram, a partir da
margem esquerda daquele rio, carregando em vasilhas de couro indispensáveis provisões de água, tinham, na
frente, alumiando-lhes a rota, abrindo-lhes a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o incêndio.
Durante meses seguidos viu-se no poente, entrando pelas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas.
Imaginem-se os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer de séculos...
Previu-os o próprio governo colonial. Desde 1713 sucessivos decretos visaram opor-lhes paradeiros. E ao
terminar a seca lendária de 1791-1792, a "grande seca", como dizem ainda os velhos sertanejos, que sacrificou
todo o Norte, da Bahia ao Ceará, o governo da metrópole figura-se tê-la atribuído aos inconvenientes apontados,
estabelecendo desde logo, como corretivo único, severa proibição ao corte das florestas.
Esta preocupação dominou-o por muito tempo. Mostram-no-lo as cartas régias de 17 de março de 1796,
nomeando um juiz conservador das matas; e a de 11 de junho de 1799, decretando que “se coíba a indiscreta e
desordenada ambição dos habitantes ( da Bahia e Pernambuco ) que têm assolado a ferro e fogo preciosas
matas... que tanto abundavam e já hoje ficam a distancias consideráveis etc.".
Aí estão dizeres preciosos relativos diretamente à região que palidamente descrevemos.
Há outros, cômpares na eloqüência.
Deletreando-se antigos roteiros dos sertanistas do Norte, destemerosos caatingueiros que pleiteavam
parelhas com os bandeirantes do Sul, nota-se a cada passo uma alusão incisiva à bruteza das paragens que
atravessavam, perquirindo as chapadas, em busca das "minas de prata" de Melchior Moreia — e passando quase
todos à margem do sertão de Canudos, com escala em Monte Santo, então o Pico-araçá dos tapuias. E falam nos
"campos frios" ( certamente à noite, pela irradiação intensa do solo desabrigado ) cortando léguas de caatinga
sem água nem caravatá que a tivesse e com raízes de umbu e mandacaru, remediando a gente" no penoso
desbravar das veredas .
Já nessa época, como se vê, tinham função proverbial às plantas, para as quais, hoje, apelam os nossos
sertanejos.
É que o mal é antigo. Colaborando com os elementos meteorológicos, com o nordeste, com a sucção dos
estratos, com as canículas, com a erosão eólia, com as tempestades subitâneas — o homem fez-se uma
componente nefasta entre as forças daquele clima demolidor. Se o não criou, transmudou-o, agravando-o. Deu
um auxiliar à degradação das tormentas, o machado do caatingueiro; um supletivo à insolação, a queimada.
Fez, talvez, o deserto. Mas pode extingui-lo ainda, corrigindo o passado. E a tarefa não é insuperável. Di-lo
uma comparação histórica.
Como se extingue o deserto
Quem atravessa as planícies elevadas da Tunísia, entre Beja e Biserta, à ourela do Saara, encontra ainda, no
desembocar dos vales, atravessando normalmente o curso caprichoso e em torcicolos dos oueds, restos de antigas
construções romanas. Velhos muradais derruídos, embrechados de silhares e blocos rolados, cobertos em parte
pelos detritos de enxurros de vinte séculos, aqueles legados dos grandes colonizadores delatam a um tempo a sua
atividade inteligente e o desleixo bárbaro dos árabes que os substituíram.
Os romanos depois da tarefa da destruição de Cartago tinham posto ombros à empresa incomparavelmente
mais séria de vencer a natureza antagonista. E ali deixaram belíssimo traço de sua expansão histórica.
Perceberam com segurança o vício original da região, estéril menos pela escassez das chuvas do que pela
sua péssima distribuição adstrita aos relevos topográficos. Corrigiram-no. O regímen torrencial que ali aparece,
intensíssimo em certas quadras, determinando alturas pluviométricas maiores que as de outros países férteis e
exuberantes, era, como nos sertões do nosso país, além de inútil, nefasto. Caía sobre a terra desabrigada,
desarraigando a vegetação mal presa a um solo endurecido; turbilhonava por algumas semanas nos regatos
transbordantes, alagando as planícies; e desaparecia logo, derivando em escarpamentos, pelo norte e pelo
levante, no Mediterrâneo, deixando o solo, depois de uma revivescência transitória, mais desnudo e estéril. O
deserto, ao sul, parecia avançar, dominando a paragem toda, vingando-lhe os últimos acidentes que não tolhiam
a propulsão do simum.
Os romanos fizeram-no recuar. Encadearam as torrentes; represaram as correntezas fortes, e aquele regímen
brutal, tenazmente combatido e bloqueado, cedeu, submetido inteiramente, numa rede de barragens. Excluído o
alvitre de irrigações sistemáticas dificílimas, conseguiram que as águas permanecessem mais longo tempo sobre
a terra. As ravinas recortando-se em gânglios estagnados dividiram-se açudes abarreirados pelas muralhas que
trancavam os vales, e os oueds, parando, intumesciam-se entre os morros, conservando largo tempo as grandes
massas líquidas, até então perdidas, ou levando-as, no transbordarem, em canais laterais aos lugares próximos
mais baixos, onde se abriam em sangradouros e levadas, irradiantes por toda a parte, e embebendo o solo. De
sorte que este sistema de represas, além de outras vantagens, criara um esforço de irrigação geral. Ademais,
todas aquelas superfícies líquidas esparsas em grande número e não resumidas a um Quixadá único —
monumental e inútil — expostas à evaporação, acabaram reagindo sobre o clima, melhorando-o. Por fim a
Tunísia, onde haviam aproado os filhos prediletos dos fenícios, mas que até então se reduzira a um litoral
povoado de traficantes ou númidas erradios, com suas tendas de tetos curvos branqueando nos ares como quilhas
encalhadas — se fez, transfigurada, a terra clássica da agricultura antiga. Foi o celeiro da Itália; a fornecedora
quase exclusiva, de trigo, dos romanos.
Os franceses, hoje, copiam-lhes em grande parte os processos, sem necessitarem alevantar muramentos
monumentais e dispendiosos. Represam por estacadas, entre muros de pedras secas e terras, à maneira de
palancas, os oueds mais bem dispostos, e talham pelo alto das suas bordas, em toda à largura das serranias que os
ladeiam, condutos derivando para os terrenos circunjacentes, em redes irrigadoras.
Deste modo as águas selvagens estacam, remansam-se, sem adquirir a força acumulada das inundações
violentas, disseminando-se, afinal, estas, amortecidas, em milhares de válvulas, pelas derivações cruzadas. E a
histórica paragem, liberta da apatia do moslim inerte, transmuda-se volvendo de novo à fisionomia antiga. A
França salva os restos da opulenta herança da civilização romana, depois desse declínio de séculos.
*
Ora, quando se traçar, sem grande precisão embora, a carta hipsométrica dos sertões do Norte, ver-se-á que
eles se apropriam a uma tentativa idêntica, de resultados igualmente seguros.
A. idéia não é nova. Sugeriu-a há muito, em memoráveis sessões do Instituto Politécnico do Rio, em 1877,
o belo espírito do conselheiro Beaurepaire Rohan, talvez sugestionado pelo mesmo símile, que acima apontamos.
Das discussões então travadas onde se enterreiraram os melhores cientistas do tempo — da sólida
experiência de Capanema à mentalidade rara de André Rebouças — foi a única coisa prática, factível,
verdadeiramente útil que ficou.
Idearam-se, naquela ocasião, luxuosas cisternas de alvenarias; miríades de poços artesianos, perfurando as
chapadas; depósitos colossais ou armazéns desmedidos para as reservas acumuladas; açudes vastos, feitos
cáspios artificiais; e por fim, como para caracterizar bem o desbarate completo da engenharia, ante a enormidade
do problema, estupendos alambiques para a destilação das águas do Atlântico!…
O alvitre mais modesto porém, efeito imediato de um ensinamento histórico, sugerido pelo mais elementar
dos exemplos, suplanta-os. Porque é, além de prático, evidentemente o mais lógico.
O martírio secular da terra
Realmente, entre os agentes determinantes da seca se intercalam, de modo apreciável, a estrutura e a
conformação do solo. Qualquer que seja a intensidade das causas complexas e mais remotas que anteriormente
esboçamos, a influência daquelas é manifesta desde que se considere que a capacidade absorvente e emissiva dos
terrenos expostos, a inclinação dos estratos, que os retalham, e a rudeza dos relevos topográficos, agravam, do
mesmo passo, a crestadura dos estios e a degradação intensiva das torrentes. De sorte que, saindo das insolações
demoradas para as inundações subitâneas, a terra, mal protegida por uma vegetação decídua, que as primeiras
requeimam e as segundas erradicam, se deixa, a pouco e pouco, invadir pelo regímen francamente desértico.
As fortes tempestades que apagam o incêndio surdo das secas, em que pese à revivescência que acarretam,
preparam de algum modo a região para maiores vicissitudes. Desnudam-na rudemente, expondo-a cada vez mais
desabrigada aos verões seguintes; sulcam-na numa molduragem de contornos ásperos; golpeiam-na e
esterilizam-na; e, ao desaparecerem, deixam-na ainda mais desnuda ante a adustão dos sóis. O regímen decorre
num intermitir deplorável, que lembra um círculo vicioso de catástrofes.
Deste modo a medida única a adotar-se deve consistir no corretivo destas disposições naturais. Pondo de
lado os fatores determinantes do flagelo, oriundos da fatalidade de leis astronômicas ou geográficas inacessíveis
à intervenção humana, são, aquelas, as únicas possíveis de modificações apreciáveis.
O processo que indicamos, em breve recordação histórica, pela sua própria simplicidade dispensa inúteis
pormenores técnicos.
A França copia-o hoje, sem variantes, revivendo o traçado de construções velhíssimas.
Abarreirados os vales, inteligentemente escolhidos, em pontos pouco intervalados, por toda a extensão do
território sertanejo, três conseqüências inevitáveis decorreriam: atenuar-se-iam de modo considerável a
drenagem violenta do solo e as suas conseqüências lastimáveis; formar-se-lhes-iam à ourela, inscritas na rede das
derivações, fecundas áreas de cultura; e fixar-se-ia uma situação de equilíbrio para a instabilidade do clima,
porque os numerosos e pequenos açudes, uniformemente distribuídos e constituindo dilatada superfície de
evaporação, teriam, naturalmente, no correr dos tempos, a influência moderadora de um mar interior, de
importância extrema.
Não há alvitrar-se outro recurso. As cisternas, poços artesianos e raros, ou longamente espaçados lagos
como o de Quixadá, têm um valor local, inapreciável. Visam, de um modo geral, atenuar a última das
conseqüências da seca — a sede; e o que há a combater e a debelar nos sertões do Norte — é o deserto.
O martírio do homem, ali, é reflexo de tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida.
Nasce do martírio secular da terra…
O HOMEM
I. Complexidade do problema etnológico no Brasil. Variabilidade do meio físico e sua reflexão na História. Ação
do meio na fase inicial da formação das raças. A formação brasileira no Norte.
II. Gênese dos jagunços; colaterais prováveis dos paulistas. Função histórica do rio S. Francisco. O vaqueiro,
mediador entre o bandeirante e o padre. Fundações jesuíticas na Bahia. Um parêntesis irritante. Causas
favoráveis à formação mestiça dos sertões, distinguindo-a dos cruzamentos no litoral. Uma raça forte.
III. O sertanejo. Tipos díspares: o jagunço e o gaúcho. Os vaqueiros. Servidão inconsciente; vida primitiva. A
vaquejada e a arribada. Tradições. A seca. Insulamento no deserto. Religião mestiça: seus fatores históricos.
Caráter variável da religiosidade sertanejo: a Pedra Bonita e Monte Santo. As missões atuais.
IV. Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo. Um gnóstico bronco. Grande homem pelo avesso,
representante natural do meio em que nasceu. Antecedentes de família: os Maciéis. Uma vida bem auspiciada.
Primeiros reveses; e a queda. Como se faz um monstro. Peregrinações e martírios. Lendas. As prédicas. Preceitos
de montanista. Profecias. Um heresiarca do século 2 em plena idade moderna. Tentativa de reação legal. Hégira
para o sertão.
V. Canudos — antecedentes — aspecto original — e crescimento vertiginoso. Regimen da urbs. Polícia de
bandidos. População multiforme. O templo. Estrada para o céu. As rezas. Agrupamentos bizarros. Por que não
pregar contra a República ? Uma missão abortada. Maldição sobre a Jerusalém de taipa.
Capítulo I
Complexidade do problema etnológico no Brasil
Adstrita às influências que mutuam, em graus variáveis, três elementos étnicos, a gênese das raças mestiças
do Brasil é um problema que por muito tempo ainda desafiará o esforço dos melhores espíritos.
Está apenas delineado.
Entretanto no domínio das investigações antropológicas brasileiras se encontram nomes altamente
encarecedores do nosso movimento intelectual. Os estudos sobre a pré-história indígena patenteiam modelos de
obervação sutil e conceito critico brilhante, mercê dos quais parece definitivamente firmado, contravindo ao
pensar dos caprichosos construtores da ponte alêutica, o autoctonismo das raças americanas.
Neste belo esforço, rematado pela profunda elaboração paleontológica de Wilhelm Lund, destacam-se o
nome de Morton, a intuição genial de Frederico Hartt, a inteiri��a organização cientifica de Meyer, a rara lucidez
de Trajano de Moura, e muitos outros cujos trabalhos reforçam os de Nott e Gordon no definir, de uma maneira
geral mas completa, a América como um centro de criação desligado do grande viveiro da Ásia Central. Erige-se
autônomo entre as raças o homo americanus.
A face primordial da questão ficou assim aclarada. Que resultem do "homem da Lagoa Santa" cruzado com
o pré-colombiano dos sambaquis; ou se derivem, altamente modificados por ulteriores cruzamentos e pelo meio,
de alguma raça invasora do Norte, de que se supõe oriundos os tupis tão numerosos na época do descobrimento
— os nossos silvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos, podem ser considerados tipos evanescentes
de velhas raças autóctones da nossa terra.
Esclarecida deste modo a preliminar da origem do elemento indígena, as investigações convergiram para a
definição da sua psicologia especial; e enfeixaram-se, ainda, em algumas conclusões seguras.
Não precisamos revivê-las. Sobre faltar-nos competência. nos desviaríamos muito de um objetivo
prefixado.
Os dois outros elementos formadores, alienígenas, não originaram idênticas tentativas. O negro banto, ou
catre, com as suas várias modalidades, foi até neste ponto o nosso eterno desprotegido. Somente nos últimos
tempos um investigador tenaz, Nina Rodrigues, subordinou a uma análise cuidadosa a sua religiosidade original
e interessante. Qualquer, porém, que tenha sido o ramo africano para aqui transplantado trouxe, certo, os
atributos preponderantes do homo afer, filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que
em quaisquer outras, se faz pelo exercício intensivo da ferocidade e da força.
Quanto ao fator aristocrático de nossa gens, o português, que nos liga à vibrátil estrutura intelectual do
celta, está, por sua vez, malgrado o complicado caldeamento de onde emerge, de todo caracterizado.
Conhecemos, deste modo, os três elementos essenciais, e, imperfeitamente embora, o meio físico
diferenciados — e ainda, sob todas as suas formas; as condições históricas adversas ou favoráveis que sobre eles
reagiram. No considerar, porém, todas as alternativas e todas as fases intermédias desse entrelaçamento de tipos
antropológicos de graus díspares nos atributos físicos e psíquicos, sob os influxos de um meio variável, capaz de
diversos climas, tendo discordantes aspectos e apostas condições de vida, pode afirmar-se que pouco nos temos
avantajado. Escrevemos todas as variáveis de uma fórmula intricada, traduzindo sério problema; mas não
desvendamos todas as incógnitas.
É que, evidentemente, não basta, para o nosso caso, que postos uns diante de outros o negro banto, o
indo-guarani e o branco, apliquemos ao conjunto a lei antropológica de Broca. Esta é abstrata e irredutível. Não
nos diz quais os reagentes que podem atenuar o influxo da raça mais numerosa ou mais forte, e causas que o
extingam ou atenuem quando ao contrário da combinação binária, que pressupõe, despontam três fatores
diversos, adstritos às vicissitudes da história e dos climas.
É uma regra que nos orienta apenas no indagarmos a verdade. Modifica-se, como todas as leis, à pressão
dos dados objetivos. Mas ainda quando por extravagante indisciplina mental alguém tentasse aplicá-la, de todo
despeada da intervenção daqueles, não simplificaria o problema.
É fácil demonstrar.
Abstraiamos de inúmeras causas perturbadoras, e consideremos os três elementos constituintes de nossa
raça em si mesmos, intactas as capacidades que Ihes são próprias.
Vemos, de pronto, que. mesmo nesta hipótese favorável, deles não resulta o produto único imanente às
combinações binárias, numa fusão imediata em que se justaponham ou se resumam os seus caracteres, unificados
e convergentes num tipo intermediário. Ao contrário a combinação ternária inevitável determina, no caso mais
simples, três outras, binárias. Os elementos iniciais não se resumem, não se unificam; desdobram-se; originam
número igual de subformações — substituindo-se pelos derivados, sem redução alguma, em uma mestiçagem
embaralhada onde se destacam como produtos mais característicos o mulato, o mamaluco ou curiboca e o cafuz .
As sedes iniciais das indagações deslocam-se apenas mais perturbadas, graças a reações que não exprimem uma
redução, mas um desdobramento. E o estudo destas subcategorias substitui o das raças elementares agravando-o
e dificultando-o, desde que se considere que aquelas comportam, por sua vez, inúmeras modalidades consoante
as dosagens variáveis do sangue.
O brasileiro, tipo abstrato que se procura, mesmo no caso favorável acima firmado, só pode surdir de um
entrelaçamento consideravelmente complexo.
Teoricamente ele seria o pardo, para que convergem os cruzamentos do mulato, do curiboca e do cafuz.
Avaliando-se, porém, as condições históricas que têm atuado, diferentes nos diferentes tratos do território;
as disparidades climáticas que nestes ocasionam reações diversas diversamente suportadas pelas raças
constituintes; a maior ou menor densidade com que estas cruzaram nos vários pontos do país; e atendendo-se
ainda à intrusão — pelas armas na quadra colonial e pelas imigrações em nossos dias — de outros povos, fato
que por sua vez não foi e não é uniforme, vê-se bem que a realidade daquela formação é altamente duvidosa,
senão absurda.
Como quer que seja, estas rápidas considerações explicam as disparidades de vistas que reinam entre os
nossos antropólogos. Forrando-se, em geral, à tarefa penosa de subordinar as suas pesquisas a condições tão
complexas, têm atendido sobremaneira ao preponderar das capacidades étnicas. Ora, a despeito da grave
influência destas, e não a negamos, elas foram entre nós levadas ao exagero, determinando a irrupção de uma
meia-ciência difundida num extravagar de fantasias, sobre ousadas, estéreis. Há como que um excesso de
subjetivismo no animo dos que entre nós, nos últimos tempos, cogitam de coisas tão sérias com uma
volubilidade algo escandalosa, atentas as proporções do assunto. Começam excluindo em grande parte os
materiais objetivos oferecidos pelas circunstâncias mesológica e histórica. Jogam, depois, e entrelaçam, e
fundem as três raças consoante os caprichos que os impelem no momento. E fazem repontar desta metaquímica
sonhadora alguns precipitados fictícios.
Alguns firmando preliminarmente, com autoridade discutível, a função secundária do meio físico e
decretando preparatoriamente a extinção quase completa do silvícola e a influência decrescente do africano
depois da abolição do tráfico, prevêem a vitória final do branco, mais numeroso e mais forte, como termo geral
de uma série para o qual tendem o mulato, forma cada vez mais diluída do negro, e o caboclo, em que se
apagam, mais depressa ainda, os traços característicos do aborígine.
Outros dão maiores largas aos devaneios. Ampliam a influência do último. E arquitetam fantasias que caem ao
mais breve choque da crítica: devaneios a que nem faltam a metrificação e as rimas porque invadem a ciência na
vibração rítmica dos versos de Gonçalves Dias.
Outros vão terra a terra de mais. Exageram a influência do africano, capaz, com efeito, de reagir em muitos
pontos contra a absorção da raça superior. Surge o mulato. Proclamam-no o mais característico tipo da nossa
subcategoria étnica.
O assunto assim vai derivando multiforme e dúbio.
Acreditamos que isto sucede porque o escopo essencial destas investigações se tem reduzido à pesquisa de
um tipo étnico único, quando há, certo, muitos.
Não temos unidade de raça.
Não a teremos, talvez, nunca.
Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida
nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama
a garantia da evolução social.
Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos, ou desaparecemos.
A afirmativa é segura.
Não a sugere apenas essa heterogeneidade de elementos ancestrais. Reforça-a outro elemento igualmente
ponderável: um meio físico amplíssimo e variável, completado pelo variar de situações históricas, que dele em
grande parte decorreram.
A este propósito não será desnecessário considerá-lo por alguns momentos.
Variabilidade do meio físico
Contravindo à opinião dos que demarcam aos países quentes um desenvolvimento de 30° de latitude, o
Brasil está longe de se incluir todo em tal categoria. Sob um duplo aspecto, astronômico e geográfico, aquele
limite é exagerado.
Além de ultrapassar a demarcação teórica vulgar, exclui os relevos naturais que atenuam ou reforçam os agentes
meteorológicos, criando climas equatoriais em altas latitudes ou regímens temperados entre os trópicos. Toda a
climatologia, inscrita nos amplos lineamentos das leis cosmológicas gerais, desponta em qualquer parte adicta de
preferência às causas naturais mais próximas e particulares. Um clima é como que a tradução fisiológica de uma
condição geográfica. E definindo-o deste modo concluímos que o nosso país, pela sua própria estrutura, se
imprópria a um regímen uniforme.
Demonstram-no os resultados mais recentes, e são os únicos dignos de fé, das indagações meteorológicas.
Estas o subdividem em três zonas claramente distintas: a francamente tropical, que se expande pelos Estados do
Norte ao sul da Bahia, com uma temperatura média de 26°; a temperada, de S. Paulo ao Rio Grande, pelo Paraná
e Santa Catarina, entre os isotermos 15° e 20°; e como transição — a subtropical, alongando-se pelo Centro e
Norte de alguns Estados, de Minas ao Paraná.
Aí estão. claras, as divisas de três habitats distintos.
Ora, mesmo entre as linhas mais ou menos seguras destes despontam modalidades, que ainda os
diversificam.
Indiquemo-las a traços rápidos.
A disposição orográfica brasileira, possantes massas sublevadas que se orientam perlongando o litoral
perpendicularmente ao rumo do SE, determina as primeiras distinções em largos tratos de território que
demoram ao Oriente, criando anomalia climatológica expressiva.
De fato, o clima aí inteiramente subordinado aos facies geográficos viola as leis gerais que o regulam. A
partir dos trópicos para o Equador a sua caracterização astronômica, pelas latitudes, cede às causas secundárias
perturbadoras. Define-se, anormalmente, pelas longitudes.
É um fato conhecido. Na extensa faixa da costa, que vai da Bahia à Paraíba, se vêem transições mais
acentuadas, acompanhando os paralelos, no rumo do ocidente, do que os meridianos, demandando o norte. As
diferenças no regímen e nos aspectos naturais, que segundo este rumo são imperceptíveis, patenteiam-se, claras,
no primeiro. Distendida até às paragens setentrionais extremas, a mesma natureza exuberante ostenta-se
sem variantes nas grandes matas que debruam a costa, fazendo que a observação rápida do estrangeiro prefigure
dilatada região vivaz e feracíssima. Entretanto a partir do 13° paralelo as florestas mascaram vastos territórios
estéreis, retratando nas áreas desnudas as inclemências de um clima em que os graus termométricos e
higrométricos progridem em relação inversa, extremando-se exageradamente.
Revela-o curta viagem para o ocidente, a partir de um ponto qualquer daquela costa. Quebra-se o encanto de
ilusão belíssima. A natureza empobrece-se; despe-se das grandes matas; abdica o fastígio das montanhas;
erma-se e deprime-se — transmudando-se nos sertões exsicados e bárbaros, onde correm rios efêmeros, e
destacam-se em chapadas nuas, sucedendo-se, indefinidas, formando o palco desmedido para os quadros
dolorosos das secas.
O contraste é empolgante.
Distantes menos de cinqüenta léguas, apresentam-se regiões de todo opostas, criando opostas condições à
vida.
Entra-se, de surpresa, no deserto.
E, certo, as vagas humanas que nos dois primeiros séculos do povoamento embateram as plagas do Norte
tiveram na translação para o ocidente, demandando o interior, obstáculos mais sérios que a rota agitada dos
mares e das montanhas, na travessia das caatingas ralas e decíduas. O malogro da expansão baiana, que
entretanto precedera à paulista no devassar os recessos do país, é exemplo frisante.
O mesmo não sucede, porém, dos trópicos para o sul.
Aí a urdidura geológica da terra, matriz de sua morfogenia interessante, persiste inalterável, abrangendo
extensas superfícies para o interior, criando as mesmas condições favoráveis, a mesma flora, um clima altamente
melhorado pela altitude, e a mesma feição animadora dos aspectos naturais.
A larga antemural da cordilheira granítica, derivando a prumo para o mar, nas vertentes interiores descamba
suavemente em vastos plainos ondulados.
É a escarpa abrupta e viva dos planaltos.
Sobre estes os cenários, sem os traços exageradamente dominadores das montanhas, revelam-se mais opulentos e
amplos. A terra patenteia essa manageability of nature, de que nos fala Buckle, e o clima temperado quente
desafia na benignidade o admirável regímen da Europa Meridional. Não o regula mais, como mais para o norte,
exclusivamente, o SE. Rolando dos altos chapadões do interior, o NO prepondera então, em toda extensíssima
zona que vai das terras elevadas de Minas e do Rio ao Paraná, passando por S. Paulo.
Ora, estas largas divisões, apenas esboçadas, mostram já uma diferença essencial entre o Sul e o Norte,
absolutamente distintos pelo regímen meteorológico, pela disposição da terra e pela transição variável entre o
sertão e a costa.
Descendo à análise mais íntima desvendaremos aspectos particulares mais incisivos ainda.
Tomemos os casos mais expressivos, evitando extensa explanação do assunto.
Vimos em páginas anteriores que o SE, sendo o regulador predominante do clima na costa oriental, é
substituído, nos Estados do Sul, pelo NO e nas extremas setentrionais pelo NE. Ora, estes, por sua vez,
desaparecem no âmago dos planaltos, ante o SO que, como um hausto possante dos pampeiros, se lança pelo
Mato Grosso, originando desproporcionadas amplitudes termométricas, agravando a instabilidade do clima
continental, e submetendo as terras centrais a um regímen brutal, diverso dos que vimos rapidamente delineando.
Com efeito, a natureza em Mato Grosso balanceia os exageros de Buckle. É excepcional e nitidamente
destacada. Nenhuma se lhe assemelha. Toda a imponência selvagem, toda a exuberância inconceptível, unidas à
brutalidade máxima dos elementos, que o preeminente pensador, em precipitada generalização, ideou no Brasil,
ali estão francas, rompentes em cenários portentosos. Contemplando-as, mesmo através da frieza das
observações de naturalistas pouco vezados a efeitos descritivos, vê-se que aquele regímen climatológico
anômalo é o mais fundo traço da nossa variabilidade mesológica.
Nenhum se lhe equipara no jogar das antíteses. A sua feição aparente é a de benignidade extrema: — a terra
afeiçoada à vida; a natureza fecunda erguida na apoteose triunfal dos dias deslumbrantes e calmos; e o solo
abrolhando em vegetação fantástica — farto, irrigado de rios que irradiam pelos quatro pontos cardeais. Mas esta
placidez opulenta esconde, paradoxalmente, germens de cataclismos, que irrompendo, sempre com um ritmo
inquebrável, no estio, traindo-se nos mesmos prenúncios infalíveis, ali tombam com a finalidade irresistível de
uma lei.
Mal poderemos traçá-los. Esbocemo-los.
Depois de soprarem por alguns dias as rajadas quentes e úmidas de NE, os ares imobilizam-se, por algum
tempo, estagnados. Então "a natureza como que se abate extática, assustada; nem as grimpas das árvores
balouçam; as matas, numa quietude medonha, parecem sólidos inteiriços. As aves se achegam nos ninhos,
suspendendo os vôos e se escondem" .
Mas, volvendo-se o olhar para os céus, nem uma nuvem! O firmamento límpido arqueia-se alumiado ainda
por um Sol obscurecido, de eclipse. A pressão, entretanto, decai vagarosamente, numa descensão contínua,
afogando a vida. Por momentos um cumulus compacto, de bordas acobreado-escuras, negreja no horizonte, ao
sul. Deste ponto sopra, logo depois, uma viração, cuja velocidade cresce rápida, em ventanias fortes. A
temperatura cai em minutos e, minutos depois, os tufões sacodem violentamente a terra. Fulguram relâmpagos;
estrugem trovoadas nos céus já de todo bruscos e um aguaceiro torrencial desce logo sobre aquelas vastas
superfícies, apagando, numa inundação única, o divortium aquarum indeciso que as atravessa, adunando todas as
nascentes dos rios e embaralhando-lhes os leitos em alagados indefinidos...
É um assalto subitâneo. O cataclismo irrompe arrebatadamente na espiral vibrante de um ciclone.
Descolmam-se as casas; dobram-se, rangendo, e partem-se, estalando, os carandás seculares; ilham-se os morros;
alagoam-se os plainos...
E uma hora depois o Sol irradia triunfalmente no céu puríssimo! A passarada irrequieta descanta pelas
frondes gotejantes; suavizam os ares virações suaves — e o homem, deixando os refúgios a que se acolhera
trêmulo, contempla os estragos entre a revivescência universal da vida. Os troncos e galhos das árvores rachadas
pelos raios, estorcidas pelos ventos; as choupanas estruídas, colmos por terra; as últimas ondas barrentas dos
ribeirões, transbordantes; a erva acamada pelos campos, como se sobre eles passassem búfalos em tropel — mal
relembram a investida fulminante do flagelo...
Dias depois, os ventos rodam outra vez, vagarosamente, para leste; e a temperatura começa a subir de novo;
a pressão a pouco e pouco diminui; e cresce continuamente o mal-estar, até que se reate nos ares imobilizados a
componente formidável do pampeiro e ressurja, estrugidora, a tormenta, em rodeos turbilhonantes, enquadrada
pelo mesmo cenário lúgubre, revivendo o mesmo ciclo, o mesmo círculo vicioso de catástrofe.
Ora — avançando para o norte—desponta, contrastando com tais manifestações, o clima do Pará. Os
brasileiros de outras latitudes mal o compreendem, mesmo através das lúcidas observações de Bates.
Madrugadas tépidas, de 23° centígrados, sucedendo-se inesperadamente a noites chuvosas; dias que irrompem
como apoteoses fulgurantes, revelando transmutações inopinadas: árvores, na véspera despidas, aparecendo
juncadas de flores; brejos apaulados transmudando-se em prados. E logo depois, no círculo estreitíssimo de 24
horas, mutações completas: florestas silenciosas, galhos mal vestidos pelas folhas requeimadas ou murchas; ares
vazios e mudos; ramos viúvos das flores recém-abertas, cujas pétalas exsicadas se despegam e caem, mortas,
sobre a terra imóvel sob o espasmo enervante de um bochorno de 35°, à sombra. "Na manhã seguinte, o Sol se
alevanta sem nuvens e deste modo se completa o ciclo — primavera, verão e outono num só dia tropical" .
A constância de tal clima faz que se não percebam as estações que, entretanto, como em um índice
abreviado, se delineiam nas horas sucessivas de um só dia, sem que a temperatura quotidiana tenha durante todo
o ano uma oscilação maior que 1° ou 1°,5. Assim a vida se equilibra numa constância imperturbável.
Entretanto, a um lado, para o ocidente, no Alto Amazonas manifestações diversas caracterizam novo
habitat. E este, não há negá-lo, impõe aclimação penosa a todos os filhos dos próprios territórios limítrofes.
Ali, no pleno dos estios quentes, quando se diluem, mortas nos ares parados, as últimas lufadas de leste, o
termômetro é substituído pelo higrômetro na definição do clima. As existências derivam numa alternativa
dolorosa de vazantes e enchentes dos grandes rios. Estas alteiam-se sempre de um modo assombrador. O
Amazonas referto salta fora do leito, levanta em poucos dias o nível das águas, de dezessete metros; expande-se
em alagados vastos, em furos, em paranamirins ,entrecruzados em rede complicadíssima de mediterrâneo
cindido de correntes fortes, dentre as quais emergem, ilhados, os igapós verdejantes.
A enchente é unia parada na vida. Preso nas malhas dos igarapés, o homem aguarda, então, com estoicismo
raro ante a fatalidade incoercível, o termo daquele inverno paradoxal, de temperaturas altas. A vazante é o verão.
É a revivescência da atividade rudimentar dos que ali se agitam, do único modo compatível com uma natureza
que se demasia em manifestações dispares tornando impossível a continuidade de quaisquer esforços.
Tal regímen acarreta o parasitismo franco. O homem bebe o leite da vida sugando os vasos túmidos das
sifônias...
Mas neste clima singular e típico destacam-se outras anomalias, que ainda mais o agravam. Não bastam as
intermitências de cheias e estiagens, sobrevindo rítmicas como a sístole e a diástole da maior artéria na terra.
Outros fatos tornam ao forasteiro inúteis todas as tentativas de aclimação real.
Muitas vezes em plena enchente, em abril ou maio, no correr de um dia calmoso e claro, dentro da
atmosfera ardente do Amazonas difundem-se rajadas frigidíssimas do sul.
É como uma bafagem enregelada do pólo...
O termômetro desce, então, logo, numa queda única e forte, de improviso. Estabelece-se por alguns dias
uma situação inaturável.
Os "regatões" espertos que esporeados pela ganância se avantajam até ali, e os próprios silvícolas enrijados pela
adaptação, acolhem-se aos tejupás, tiritantes, abeirando-se das fogueiras. Cessam os trabalhos. Abre-se um novo
hiato nas atividades. Despovoam-se aquelas grandes solidões alagadas, morrem os peixes nos rios, enregelados;
morrem as aves nas matas silenciosas, ou emigram; esvaziam-se os ninhos; as próprias feras desaparecem,
encafurnadas nas tocas mais profundas — ; e aquela natureza maravilhosa do Equador, toda remodelada pela
reação esplêndida dos sois, patenteia um simulacro crudelíssimo de desolamento polar e lúgubre. É o tempo da
"friagem".
Terminemos, porém, esses debuxos rápidos.
Os sertões do Norte, vimo-lo anteriormente, refletem, por sua vez, novos regímens, novas exigências
biológicas. Ali a mesma intercadência de quadras remansadas e dolorosas se espelha mais duramente talvez, sob
outras formas.
Ora, se considerarmos que estes vários aspectos climáticos não exprimem casos excepcionais, mas
aparecem todos, desde as tormentas do Mato Grosso aos ciclos das secas do Norte, com a feição periódica
imanente às leis naturais invioláveis, conviremos em que há no nosso meio físico variabilidade completa.
Daí os erros em que incidem os que generalizam, estudando a nossa fisiologia própria, a ação exclusiva de
um clima tropical. Esta exercita-se, sem dúvida, originando patologia sui generis, em quase toda a faixa
marítima do Norte e em grande parte dos Estados que lhe correspondem, até ao Mato Grosso. O calor úmido das
paragens amazonenses, por ex., deprime e exaure. Modela organizações tolhiças em que toda a atividade cede ao
permanente desequilíbrio entre as energias impulsivas das funções periféricas fortemente excitadas e a apatia das
funções centrais: inteligências marasmáticas, adormidas sob o explodir das paixões; enervações periclitantes, em
que pese à acuidade dos sentidos, e mal reparadas ou refeitas pelo sangue empobrecido nas hematoses
incompletas...
Daí todas as idiossincrasias de uma fisiologia excepcional: o pulmão que se reduz, pela deficiência da
função e é substituído, na eliminação obrigatória do carbono, pelo fígado, sobre o qual desce pesadamente a
sobrecarga da vida: organizações combalidas pela alternativa persistente de exaltações impulsivas e apatias
enervadoras, sem a vibratilidade, sem o tonus muscular enérgico dos temperamentos robustos e sangüíneos. A
seleção natural, em tal meio, opera-se à custa de compromissos graves com as funções centrais, do cérebro,
numa progressão inversa prejudicialíssima entre o desenvolvimento intelectual e o físico, firmando
inexoravelmente a vitória das expansões instintivas e visando o ideal de uma adaptação que tem, como
conseqüências únicas, a máxima energia orgânica, a mínima fortaleza moral. A aclimação traduz uma evolução
regressiva. O tipo deperece num esvaecimento contínuo, que se lhe transmite à descendência até a extinção total.
Como o inglês nas Barbadas, na Tasmânia ou na Austrália, o português no Amazonas, se foge ao cruzamento, no
fim de poucas gerações tem alterados os caracteres físicos e morais de uma maneira profunda, desde a tez, que se
acobreia pelos sóis e pela eliminação incompleta do carbono, ao temperamento, que se debilita despido das
qualidades primitivas. A raça inferior, o selvagem bronco, domina-o; aliado ao meio vence-o, esmaga-o, anula-o
na concorrência formidável ao impaludismo, ao hepatismo, às pirexias esgotantes, às canículas abrasadoras, e
aos alagadiços maleitosos.
Isto não acontece em grande parte do Brasil Central e em todos os lugares do Sul.
Mesmo na maior parte dos sertões setentrionais o calor seco, altamente corrigido pelos fortes movimentos
aéreos provindos dos quadrantes de leste, origina disposições mais animadoras e tem ação estimulante mais
benéfica.
E volvendo ao sul, no território que do norte de Minas para o sudoeste progride até o Rio Grande,
deparam-se condições incomparavelmente superiores:
Uma temperatura anual média de 17° a 20°, num jogo mais harmônico de estações; um regímen mais fixo
das chuvas que, preponderantes no verão, se distribuem no outono e na primavera de modo favorável às culturas.
Atingindo o inverno, a impressão de um clima europeu é precisa: sopra o SO frigidíssimo sacudindo
chuvisqueiros finos e esgarçando garoas; a neve rendilha as vidraças; gelam os banhados, e as geadas
branqueiam pelos campos...
... e sua reflexão na
História
A nossa história traduz notavelmente estas modalidades mesológicas.
Considerando-a sob uma feição geral, fora da ação perturbadora dos pormenores inexpressivos, vemos, logo
na fase colonial, esboçarem-se situações diversas.
Enfeudado o território, dividido pelos donatários felizes, e iniciando-se o povoamento do país com idênticos
elementos, sob a mesma indiferença da metrópole, voltada ainda para as últimas miragens da "Índia portentosa",
abriu-se separação radical entre o Sul e o Norte.
Não precisamos rememorar os fatos decisivos das duas regiões. São duas histórias distintas, em que se
averbam movimentos e tendências opostas. Duas sociedades em formação, alheadas por destinos rivais — uma
de todo indiferente ao modo de ser da outra, ambas, entretanto, evolvendo sob os influxos de uma administração
única. Ao passo que no Sul se debuxavam novas tendências, uma subdivisão maior na atividade, maior vigor no
povo mais heterogêneo, mais vivaz, mais prático e aventureiro, um largo movimento progressista em suma —
tudo isto contrastava com as agitações, às vezes mais brilhantes mas sempre menos fecundas, do Norte —
capitanias esparsas e incoerentes, jungidas à mesma rotina, amorfas e imóveis, em função estreita dos alvarás da
corte remota.
A história é ali mais teatral porém menos eloqüente.
Surgem heróis, mas a estatura avulta-lhes, maior, pelo contraste com o meio; belas páginas vibrantes mas
truncadas, sem objetivo certo, em que colaboram, de todo desquitadas entre si, as três raças formadoras.
Mesmo no período culminante, a luta com os holandeses, acampam, claramente distintos em suas tendas de
campanha, os negros de Henrique Dias, os índios de Camarão e os lusitanos de Vieira. Mal unidos na guerra,
distanciam-se na paz. O drama de Palmares, as correrias dos silvícolas, os conflitos na orla dos sertões, violam a
transitória convergência contra o batavo.
Preso no litoral, entre o sertão inabordável e os mares, o velho agregado colonial tendia a chegar ao nosso
tempo, imutável, sob o emperramento de uma centralização estúpida, realizando a anomalia de deslocar para
uma terra nova o ambiente moral de uma sociedade velha.
Bateu-o, felizmente, a onda impetuosa do Sul.
Aqui, a aclimação mais pronta, em meio menos adverso, emprestou, cedo, mais vigor aos forasteiros. Da
absorção das primeiras tribos surgiram os cruzados das conquistas sertanejas, os mamalucos audazes. O
"paulista"— e a significação histórica deste nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, S. Paulo e regiões
do Sul — erigiu-se como um tipo autônomo, aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição perfeita de um
dominador da terra, emancipando-se, insurreto, da tutela longínqua, e afastando-se do mar e dos galeões da
metrópole, investindo com os sertões desconhecidos, delineando a epopéia inédita das "bandeiras"...
Este movimento admirável reflete o influxo das condições mesológicas. Não houvera distinção alguma
entre os colonizadores de um e outro lado. Em todos prevaleciam os mesmos elementos, que eram o desespero
de Diogo Coelho.
"Piores qua na terra que peste..."
Mas no Sul a força viva restante no temperamento dos que vinham de romper o mar imoto não se delia num
clima enervante; tinha nova componente na própria força da terra; não se dispersava em adaptações difíceis. —
Alterava-se, melhorando. O homem sentia-se forte. Deslocado apenas o teatro dos grandes cometimentos, podia
volver para o sertão impérvio a mesma audácia que o precipitara nos périplos africanos.
Além disto — frisemos este ponto escandalizando embora os nossos minúsculos historiógrafos — a
disposição orográfica libertava-o da preocupação de defender o litoral, onde aproava a cobiça do estrangeiro.
A serra do Mar tem um notável perfil em nossa história. A prumo sobre o Atlântico desdobra-se como a
cortina de baluarte desmedido. De encontro às suas escarpas embatia, fragílima, a ânsia guerreira dos Cavendish
e dos Fenton. No alto, volvendo o olhar em cheio para os chapadões, o forasteiro sentia-se em segurança. Estava
sobre ameias intransponíveis que o punham do mesmo passo a cavaleiro do invasor e da metrópole. Transposta a
montanha — arqueada como a precinta de pedra de um continente — era um isolador étnico e um isolador
histórico. Anulava o apego irreprimível ao litoral, que se exercia ao norte; reduzia-o a estreita faixa de mangues
e restingas, ante a qual se amorteciam todas as cobiças, e alteava, sobranceira às frotas, intangível no recesso das
matas, a atração misteriosa das minas...
Ainda mais — o seu relevo especial torna-a um condensador de primeira ordem, no precipitar a evaporação
oceânica.
Os rios que se derivam pelas suas vertentes nascem de algum modo no mar. Rolam as águas num sentido
oposto à costa. Entranham-se no interior, correndo em cheio para os sertões. Dão ao forasteiro a sugestão
irresistível das "entradas".
A terra atrai o homem; chama-o para o seio fecundo; encanta-o pelo aspecto formosíssimo; arrebata-o,
afinal, irresistivelmente na correnteza dos rios.
Daí o traçado eloqüentíssimo do Tietê, diretriz preponderante nesse domínio do solo. Enquanto no S.
Francisco, no Paraíba, no Amazonas, e em todos os cursos d'água da borda oriental, o acesso para o interior
seguia ao arrepio das correntes, ou embatia nas cachoeiras que tombam dos socalcos dos planaltos, ele levava os
sertanistas, sem uma remada, para o rio Grande e daí ao Paraná e ao Paranaíba. Era a penetração em Minas, em
Goiás, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, no Mato Grosso, no Brasil inteiro. Segundo estas linhas de
menor resistência, que definem os lineamentos mais claros da expansão colonial, não se opunham, como ao
norte, renteando o passo às bandeiras, a esterilidade da terra, a barreira intangível dos descampados brutos.
Assim é fácil mostrar como esta distinção de ordem física esclarece as anomalias e contrastes entre os
sucessos nos dois pontos do país, sobretudo no período agudo da crise colonial, no século 17.
Enquanto o domínio holandês, centralizando-se em Pernambuco, reagia por toda a costa oriental, da Bahia
ao Maranhão, e se travavam recontros memoráveis em que, solidárias, enterreiravam o inimigo comum as nossas
três raças formadoras, o sulista, absolutamente alheio àquela agitação, revelava, na rebeldia aos decretos da
metrópole, completo divórcio com aqueles lutadores. Era quase um inimigo tão perigoso quanto o batavo. Um
povo estranho de mestiços levantadiços, expandindo outras tendências, norteado por outros destinos, pisando,
resoluto, em demanda de outros rumos, bulas e alvarás entibiadores. Volvia-se em luta aberta com a corte
portuguesa, numa reação tenaz contra os jesuítas. Estes, olvidando o holandês e dirigindo-se, com Ruy de
Montoya a Madri e Dias Tãno a Roma, apontavam-no como inimigo mais sério.
De feito, enquanto em Pernambuco as tropas de von Schoppe preparavam o governo de Nassau, em S.
Paulo se arquitetava o drama sombrio de Guaíra. E quando a restauração em Portugal veio alentar em toda a
linha a repulsa ao invasor, congregando de novo os combatentes exaustos, os sulistas frisaram ainda mais esta separação de destinos, aproveitando-se do mesmo fato para estadearem a autonomia franca, no reinado de um
minuto de Amador Bueno.
Não temos contraste maior na nossa história. Está nele a sua feição verdadeiramente nacional. Fora disto
mal a vislumbramos nas cortes espetaculosas dos governadores, na Bahia, onde imperava a Companhia de Jesus
com o privilégio da conquista das almas, eufemismo casuístico disfarçando o monopólio do braço indígena.
Na plenitude do século 17 o contraste se acentua.
Os homens do Sul irradiam pelo país inteiro. Abordam as raias extremas do Equador. Até aos últimos
quartéis do século 18, o povoamento segue as trilhas embaralhadas das bandeiras. Seguiam sucessivas,
incansáveis, com a fatalidade de uma lei, porque traduziam, com efeito, uma queda de potenciais, as grandes
caravanas guerreiras, vagas humanas desencadeadas em todos os quadrantes, invadindo a própria terra,
batendo-a em todos os pontos, descobrindo-a depois do descobrimento, desvendando-lhe o seio rutilante das
minas.
Fora do litoral, em que se refletia a decadência da metrópole e todos os vícios de uma nacionalidade em
decomposição insanável, aqueles sertanistas, avantajando-se às terras extremas de Pernambuco ao Amazonas,
semelhavam uma outra raça, no arrojo temerário e resistência aos reveses.
Quando as correrias do bárbaro ameaçavam a Bahia, ou Pernambuco, ou a Paraíba, e os quilombos se
escalonavam pelas matas, nos últimos refúgios do africano revoltoso — o sulista, di-lo a grosseira odisséia de
Palmares, surgia como o debelador clássico desses perigos, o empreiteiro predileto das grandes hecatombes.
É que o filho do Norte não tinha um meio físico que o blindasse de igual soma de energias. Se tal
acontecesse, as bandeiras irromperiam também do oriente e do norte e, esmagado num movimento convergente,
o elemento indígena desapareceria sem traços remanescentes. Mas o colono nortista, nas entradas para oeste ou
para o sul, batia logo de encontro à natureza adversa. Refluía prestes ao litoral sem o atrevimento dos
dominadores, dos que se sentem à vontade sobre uma terra amiga, sem as ousadias oriundas da própria atração
das, na segunda metade do século 16, por Sebastião Tourinho, das, na segunda metade do século 16, por
Sebastião Tourinho, no rio Doce, Bastião Álvares, no S. Francisco, e Gabriel Soares, pelo Norte da Bahia até às
cabeceiras do Paraguaçu, embora tivessem depois os estímulos enérgicos das Minas de Prata, de Belchior Dias,
são um pálido arremedo das arremetidas do Anhangüera ou de um Pascoal de Araújo.
Apertados entre os canaviais da costa e o sertão, entre o mar e o deserto, num bloqueio engravecido pela
ação do clima, perderam todo o aprumo e este espírito de revolta, eloqüentíssimo, que ruge em todas as páginas
da história do Sul.
Tal contraste não se baseia, por certo, em causas étnicas primordiais.
Delineada, deste modo, a influência mesológica em nosso movimento histórico, deduz-se a que exerceu
sobre a nossa formação étnica.
Ação do meio na fase inicial da formação das raças
Volvamos ao ponto de partida.
Convindo em que o meio não forma as raças, no nosso caso especial variou demais nos diversos pontos do
território as dosagens de três elementos essenciais. Preparou o advento de sub-raças diferentes pela própria
diversidade das condições de adaptação. Além disso (é hoje fato inegável) as condições exteriores atuam
gravemente sobre as próprias sociedades constituídas, que se deslocam em migrações seculares aparelhadas
embora pelos recursos de uma cultura superior. Se isto se verifica nas raças de todo definidas abordando outros
climas, protegidas pelo ambiente de uma civilização, que é como o plasma sangüíneo desses grandes organismos
coletivos, que não diremos da nossa situação muito diversa ? Neste caso — é evidente — a justaposição dos
caracteres coincide com íntima transfusão de tendências e a longa fase de transformação correspondente erige-se
como período de fraqueza, nas capacidades das raças que se cruzam, alterando o valor relativo da influencia do
meio. Este como que estampa, então, melhor, no corpo em fusão, os seus traços característicos. Sem nos
arriscarmos demais a paralelo ousado, podemos dizer que, para essas reações biológicas complexas, ele tem
agentes mais enérgicos que para as reações químicas da matéria.
Ao calor e à luz, que se exercitam em ambas, adicionam-se, então, a disposição da terra, as modalidades do
clima e essa ação de presença inegável, essa espécie de força catalítica misteriosa que difundem os vários
aspectos da natureza.
Entre nós, vimo-lo, a intensidade destes últimos está longe da uniformidade proclamada. Distribuíram,
como o indica a história, de modo diverso as nossas camadas étnicas, originando uma mestiçagem dissímil.
Não há um tipo antropológico brasileiro.
A formação brasileira no Norte
Procuremos, porém, neste intricado caldeamento a miragem fugitiva de uma sub-raça, efêmera talvez.
Inaptos para discriminar as nossas raças nascentes, acolhamo-nos ao nosso assunto. Definamos rapidamente os
antecedentes históricos do jagunço.
Ante o que vimos a formação brasileira do Norte é mui diversa da do Sul. As circunstâncias históricas, em
grande parte oriundas das circunstâncias físicas, originaram diferenças iniciais no enlace das raças,
prolongando-as até o nosso tempo.
A marcha do povoamento, do Maranhão à Bahia, revela-as.
Os primeiros povoadores
Foi vagaroso. As gentes portuguesas não abordavam o litoral do Norte robustecidas pela força viva das
migrações compactas, grandes massas invasoras capazes, ainda que destacadas do torrão nativo, de conservar,
pelo número, todas as qualidades adquiridas em longo tirocínio histórico. Vinham esparsas, parceladas em
pequenas levas de degredados ou colonos contrafeitos, sem o desempenho viril dos conquistadores.
Deslumbrava-as ainda o Oriente.
O Brasil era a terra do exílio; vasto presídio com que se amedrontavam os heréticos e os relapsos, todos os
passíveis do morra per ello da sombria justiça daqueles tempos. Deste modo nos primeiros tempos o número
reduzido de povoadores contrasta com a vastidão da terra e a grandeza da população indígena. As instruções
dadas, em 1615, ao capitão Fragoso de Albuquerque, a fim de regular com o embaixador espanhol em França o
tratado de tréguas com La Ravardière, são claras a respeito. Ali se afirma "que as terras do Brasil não estão
despovoadas porque nelas existem mais de 3 mil portugueses".
Isto para o Brasil todo — mais de cem anos após o descobrimento. . .
Segundo observa Aires de Casal "a população crescia tão devagar que na época da perda do sr. d. Sebastião
(1580) ainda não havia um estabelecimento fora da ilha de Itamaracá cujos vizinhos andavam por uns duzentos,
com três engenhos de açúcar".
Quando alguns anos mais tarde se povoou melhor a Bahia, a desproporção entre o elemento europeu e os dois
outros continuou desfavorável, em progressão aritmética perfeita. Segundo Fernão Cardim, ali existiam 2 mil
brancos, 4 mil negros e 6 mil índios. É visível durante muito tempo a predominância do elemento autóctone. Nos
primeiros cruzados, portanto, ele deve ter influído muito.
Os forasteiros que aproavam àquelas plagas eram, ademais, de molde para essa mistura em larga escala.
Homens de guerra, sem lares, afeitos à vida solta dos acampamentos, ou degredados e aventureiros corrompidos,
norteava-os a todos como um aforismo o ultra equinotialem non peccavi, na frase de Barleus. A mancebia com
as caboclas descambou logo em franca devassidão, de que nem o clero se isentava. O padre Nóbrega definiu bem
o fato, na célebre carta ao rei ( 1549) em que, pintando com ingênuo realismo a dissociação dos costumes,
declara estar o interior do país cheio de filhos de cristãos, multiplicando-se segundo os hábitos gentílicos.
Achava conveniente que lhe enviassem órfãs, ou mesmo mulheres "que fossem erradas, que todas achariam
maridos, por ser a terra larga e grossa". A primeira mestiçagem fez-se, pois, nos primeiros tempos, intensamente,
entre o europeu e o silvícola. "Desde cedo, di-lo Casal, os tupiniquins, gentio de boa índole, foram cristianizados
e aparentados com os europeus, sendo inúmeros os brancos naturais do país com casta tupiniquina."
Por outro lado, embora existissem em grande cópia mesmo no reino, os africanos tiveram, no primeiro
século, uma função inferior. Em muitos lugares rareavam. Eram poucos, diz aquele narrador sincero, no Rio
Grande do Norte, "onde os índios há largo tempo que foram reduzidos, apesar da sua ferocidade e cujos
descendentes por meio das alianças com os europeus e africanos têm aumentado as classes dos brancos e dos
pardos ".
Estes excertos são expressivos.
Sem idéia alguma preconcebida, pode-se afirmar que a extinção do indígena, no Norte, proveio, segundo o
pensar de Varnhagen, mais em virtude de cruzamentos sucessivos que de verdadeiro extermínio.
Sabe-se ainda que havia no animo dos donatários a preocupação de aproveitar-lhes o mais possível a aliança,
captando-lhes o apego. Este proceder refletia os intuitos da metrópole. Demonstram-no-lo as sucessivas cartas
régias que, de 1570 a 1758 — em que pese "a uma série nunca interrompida de hesitações e contradições" —
apareceram como minorativo à ganância dos colonos visando a escravização do selvagem. — Sendo que
algumas, como a de 1680, estendiam a proteção ao ponto de decretar que se concedessem ao gentio terras "ainda
mesmo as já dadas a outros de sesmaria", visto que deviam ter preferência os mesmos índios "naturais senhores
da terra".
Contribuiu para esta tentativa persistente de incorporação a Companhia de Jesus que, obrigando-se no Sul a
transigências forçadas, dominava no Norte. Excluindo quaisquer intenções condenáveis, os jesuítas ali
realizaram tarefa nobilitadora. Foram ao menos rivais do colono ganancioso. No embate estúpido da
perversidade contra a barbaria, apareceu uma função digna àqueles eternos condenados. Fizeram muito. Eram os
únicos homens disciplinados de seu tempo. Embora quimérica a tentativa de alçar o estado mental do aborígine
às abstrações do monoteísmo, ela teve o valor de o atrair por muito tempo, até a intervenção oportuna de
Pombal, para a nossa história.
O curso das missões, no Norte, em todo o trato de terras do Maranhão à Bahia, patenteia sobretudo um lento
esforço de penetração no âmago das terras sertanejas, das fraldas da Ibiapaba às da Itiúba, que completa de
algum modo a movimentação febril das bandeiras. Se estas difundiam largamente o sangue das três raças pelas
novas paragens descobertas, provocando um entrelaçamento geral, a despeito das perturbações que acarretavam
— os aldeamentos, centros da força atrativa do apostolado, fundiam as malocas em aldeias; unificavam as
cabildas; integravam as tribos. Penetrando fundo nos sertões, graças a um esforço secular, os missionários
salvaram em parte este fator das nossas raças. Surpreendidos vários historiadores pela vinda, em grandíssima
escala, do africano, que iniciada em fins do século 16 nunca mais parou até o nosso (1850) e considerando que
ele foi o melhor aliado do português na quadra colonial, dão-lhe geralmente influência exagerada na formação do
sertanejo do Norte. Entretanto, em que pese a esta invasão de vencidos e infelizes, e à sua fecundidade rara, e a
suas qualidades de adaptação, apuradas na África adusta, é discutível que ela tenha atingido profundamente os
sertões.
É certo que o consórcio afro-lusitano era velho, anterior mesmo ao descobrimento, porque se consumara
desde o século 15, com os azenegues e jalofos de Gil Eanes e Antão Gonçalves. Em 1530 salpintavam as ruas de
Lisboa mais de 10 mil negros, e o mesmo sucedia noutros lugares. Em Évora tinham maioria sobre os brancos.
Os versos de um contemporâneo, Garcia de Resende, são um documento:
"Vemos no reino meter,
Tantos cativos crescer,
Irem-se os naturais,
Que, se assim for, serão mais
Eles que nós, a meu ver."
A gênese do mulato
Assim a gênese do mulato teve uma sede fora do nosso país. A primeira mestiçagem com o africano operou-se
na metrópole. Entre nós, naturalmente, cresceu. A raça dominada, porém, teve, aqui, dirimidas pela situação
social, as faculdades de desenvolvimento. Organização potente afeita à humildade extrema, sem as rebeldias do
índio, o negro teve, de pronto, sobre os ombros toda a pressão da vida colonial. Era a besta de carga adstrita a
trabalhos sem folga. As velhas ordenações, estatuindo o "como se podem enjeitar os escravos e bestas por os
acharem doentes ou mancos", denunciam a brutalidade da época. Além disto — insistamos num ponto
incontroverso — as numerosas importações de escravos se acumulavam no litoral. A grande tarja negra debruava
a costa da Bahia ao Maranhão, mas pouco penetrava o interior. Mesmo em franca revolta, o negro humilde feito
quilombola temeroso, agrupando-se nos mocambos, parecia evitar o âmago do país. Palmares, com seus 30 mil
mocambeiros, distava afinal poucas léguas da costa.
Nesta última a uberdade da terra fixara simultaneamente dois elementos, libertando o indígena. A cultura
extensiva da cana, importada da Madeira, determinara o olvido dos sertões. Já antes da invasão holandesa, do
Rio Grande do Norte à Bahia havia 160 engenhos. E esta exploração, em dilatada escala, progrediu depois em
rápido crescendo.
O elemento africano de algum modo estacou nos vastos canaviais da costa, agrilhoado à terra e
determinando cruzamento de todo diverso do que se fazia no recesso das capitanias. Aí campeava, livre, o
indígena inapto ao trabalho e rebelde sempre, ou mal tolhido nos aldeamentos pela tenacidade dos missionários.
A escravidão negra, constituindo-se derivativo ao egoísmo dos colonos, deixava aqueles mais desembaraçados
que no Sul, nos esforços da catequese. Os próprios sertanistas ao chegarem, ultimando as rotas atrevidas, àquelas
paragens, tinham extinta a combatividade.
Alguns, como Domingos Sertão, cerravam a vida aventureira, atraídos pelos lucros das fazendas de criação,
abertas naqueles grandes latifúndios.
Deste modo se estabeleceu distinção perfeita entre os cruzamentos realizados no sertão e no litoral.
Com efeito, admitido em ambos como denominador comum o elemento branco, o mulato erige-se como
resultado principal do último e o curiboca do primeiro.
Capítulo II
Gênese dos jagunços
A demonstração é positiva. Há um notável traço de originalidade na gênese da população sertaneja, não
diremos do Norte, mas do Brasil subtropical.
Esbocemo-lo; e para não nos delongarmos demais, afastemo-nos pouco do teatro em que se desenrolou o
drama histórico de Canudos, percorrendo rapidamente o rio de São Francisco, “o grande caminho da civilização
brasileira”, conforme o dizer feliz de um historiador .
Vimos, de relance, em páginas anteriores, que ele atravessa as regiões mais dispares. Ampla nas cabeceiras,
a sua dilatada bacia colhe na rede de numerosos afluentes a metade de Minas, na zona das montanhas e das
florestas. Estreita-se depois passando na parte mediana pela paragem formosíssima dos gerais. No curso inferior,
a jusante de Juazeiro, constrita entre pendores que a desnivelam torcendo-a para o mar, torna-se pobre de
tributários, quase todos efêmeros, derivando, apertada por uma corredeira única de centenares de quilômetros,
até Paulo Afonso — e corta a região maninha das caatingas.
Ora, sob esta tríplice disposição, é um diagrama da nossa marcha histórica, refletindo, paralelamente, as
suas modalidades variáveis.
Balanceia a influência do Tietê.
Enquanto este, de traçado incomparavelmente mais próprio a penetração colonizadora, se tornou o caminho
predileto dos sertanistas visando sobretudo a escravização e o “descimento” do gentio, o S. Francisco foi, nas
altas cabeceiras, a sede essencial da agitação mineira; no curso inferior, o teatro das missões; e, na região média,
a tem clássica do regímen pastoril, único compatível com a situação econômica e social da colônia.
Bateram-lhe por igual as margens o bandeirante, o jesuíta e o vaqueiro.
Quando, mais tarde, maior cópia de documentos permitir a reconstrução da vida colonial, do século 17 ao
fim do 18, é possível que o último, de todo olvidado ainda, avulte com o destaque que merece na formação da
nossa gente. Bravo e destemeroso como o primeiro, resignado e tenaz como o segundo, tinha a vantagem de um
atributo supletivo que faltou a ambos — a fixação ao solo.
As bandeiras, sob os dois aspectos que mostram, já destacados, já confundidos, investindo com a tem ou
com o homem, buscando o ouro ou o escravo, desvendavam desmedidas paragens, que não povoavam e
deixavam porventura mais desertas, passando rápidas sobre as malocas e as catas.
A sua história, às vezes inextricável como os dizeres adrede obscuros dos roteiros, traduz a sucessão e
enlace destes estímulos únicos revezando-se quer consoante a índole dos aventureiros, quer de acordo com a
maior ou menor praticabilidade das empresas planeadas. E, neste permanente oscilar entre aqueles dois
desígnios, a sua função realmente útil, no desvendar o desconhecido, repontava como incidente obrigado,
conseqüência inevitável em que se não cuidava.
Assim é que extinta com a expedição de Glimmer (1601) a visão enganadora da serra das Esmeraldas, que
desde meados do século 18 atraíra para os flancos do Espinhaço, um após outros, inacessíveis a constantes
malogros, Bruzzo Spinosa, Sebastião Tourinho, Dias Adorno e Martins Carvalho, e desaparecendo ao norte o
pais encantado que idealizara a imaginação romântica de Gabriel Soares, grande parte do século 17 é dominada
pelas lendas sombrias dos caçadores de escravos, centralizados pela figura brutalmente heróica de Antônio
Raposo. É que se haviam apagado quase que ao mesmo tempo as miragens da misteriosa Sabará-buçu e as das
Minas de Prata, eternamente inatingíveis; até que, renovadas pelas pesquisas indecisas de Pais Leme, que avivou,
depois de um apagamento quase secular, as veredas de Glimmer; alentadas pelas oitavas de ouro de Arzão
pisando em 1693 as mesmas trilhas de Tourinho e Adorno; e ao cabo francamente ressurgindo logo depois com
Bartolomeu Bueno, em Itaberaba, e Miguel Garcia, no Ribeirão do Carmo, as entradas sertanejas volvessem ao
anelo primitivo e, irradiando do distrito de Ouro Preto, se espraiassem de novo, mais fortes, pelo país inteiro.
Ora, durante este período em que, aparentemente, só se observam, no litoral, a luta contra o batavo e, no
âmago dos planaltos, o espantoso ondular das bandeiras, surgira na região que interfere o médio São Francisco
um notável povoamento do qual os resultados somente depois apareceram.
Função histórica do rio S. Francisco
Formara-se obscuramente. Determinaram-no, em começo, as entradas a procura das minas de Moreia que,
embora anônimas e sem brilho, parecem ter-se prolongado até o governo de Lancastro, levando até as serranias
de Macaúbas, além do Paramirim, sucessivas turmas de povoadores . Vedado nos caminhos diretos e normais à
costa, mais curtos porém interrompidos pelos paredões das serras ou trancados pelas matas, o acesso fazia-se
pelo S. Francisco. Abrindo aos exploradores duas entradas únicas, à nascente e à foz, levando os homens do Sul
ao encontro dos homens do Norte, o grande rio erigia-se desde o princípio com a feição de um unificador étnico,
longo traço de união entre as duas sociedades que se não conheciam. Porque provindos dos mais diversos pontos
e origens, ou fossem os paulistas de Domingos Sertão, ou os baianos de Garcia d'Ávila, ou os pernambucanos de
Francisco Caldas, com os seus pequenos exércitos de tabajaras aliados, ou mesmo os portugueses de Manuel
Nunes Viana, que dali partiu da sua fazenda do Escuro, em Carinhanha, para comandar os emboabas no rio das
Mortes, os forasteiros, ao atingirem o âmago daquele sertão, raro voltavam.
A terra, do mesmo passo exuberante e acessível, compensava-lhes a miragem desfeita das minas cobiçadas.
A sua estrutura geológica original criando conformações topográficas em que as serranias, últimos esporões e
contrafortes da cordilheira marítima, têm a atenuante dos tabuleiros vastos; a sua flora complexa e variável, em
que se entrelaçam florestas sem a vastidão e o trançado impenetrável das do litoral, com o “mimoso” das
planuras e o “agreste” das chapadas, desafogadas, todas, salteadamente, nos vastos claros das caatingas; a sua
conformação hidrográfica especial de afluentes que se ajustam, quase simétricos, para o ocidente e o oriente
ligando-a, de um lado à costa, de outro ao centro dos planaltos — foram laços preciosos para a fusão desses
elementos esparsos, atraindo-os, entrelaçando-os. E o regímen pastoril ali se esboçou como uma sugestão
dominadora dos gerais.
Nem faltava para isto, sobre a rara fecundidade do solo recamado de pastagens naturais, um elemento
essencial, o sal, gratuito, nas baixadas salobras dos barreiros .
Constituiu-se, desta maneira favorecida, a extensa zona de criação de gado que já no alvorecer do século 18
ia das raias setentrionais de Minas a Goiás, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte e
às serranias das lavras baianas, a leste. Povoara-se e crescera autônoma e forte, mas obscura, desadorada dos
cronistas do tempo, de todo esquecida não já pela metrópole longínqua senão pelos próprios governadores e
vice-reis. Não produzia impostos ou rendas que interessassem o egoísmo da coroa. Refletia, entretanto,
contraposta à turbulência do litoral e às aventuras das minas, "o quase único aspecto tranqüilo da nossa cultura".
A parte os raros contingentes de povo adores pernambucanos e baianos, a maioria dos criadores opulentos, que
ali se formaram? vinha do sul, constituída pela mesma gente entusiasta e enérgica das bandeiras.
Os jagunços: colaterais prováveis dos paulistas
Segundo o que se colhe em preciosas páginas de Pedro Taques, foram numerosas as famílias de S. Paulo
que, em contínuas migrações, procuraram aqueles rincões longínquos, e acredita-se, aceitando o conceito de um
historiógrafo perspicaz, que o "vale de S. Francisco, já aliás muito povoado de paulistas e de seus descendentes
desde o século 18, tornou-se uma como colônia quase exclusiva deles" . É natural por isto que Bartolomeu
Bueno, ao descobrir Goiás, visse, surpreendido, sinais evidentes de predecessores, anônimos pioneiros que ali
tinham chegado, certo, pelo levante, transmontando a serra de Paranã; e que ao se reabrir em 1697 o ciclo mais
notável das pesquisas do ouro, nas agitadas e ruidosas vagas de imigrantes, que rolavam dos flancos orientais da
serra do Espinhaço ao talvegue do rio das Velhas, passassem mais fortes talvez, talvez precedendo as demais no
descobrimento das minas de Caeté, e sulcando-as de meio a meio, e avançando em direção contrária como um
refluxo promanado do Norte, as turmas dos "baianos", termo que, como o de "paulista", se tornara genérico no
abranger os povoadores setentrionais.
O vaqueiro
É que já se formara no vale médio do grande rio uma raça de cruzados idênticos àqueles mamalucos
estrênuos que tinham nascido em S. Paulo. E não nos demasiamos em arrojada hipótese admitindo que este tipo
extraordinário do paulista, surgindo e decaindo logo no Sul, numa degeneração completa ao ponto de declinar no
próprio território que lhe deu o nome, ali renascesse e, sem os perigos das migrações e do cruzamento, se
conservasse prolongando, intacta, ao nosso tempo, a índole varonil e aventureira dos avós.
Porque ali ficaram, inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo, murados a leste pela serra
Geral, tolhidos no ocidente pelos amplos campos gerais, que se desatam para o Piauí e que ainda hoje o sertanejo
acredita sem fins.
O meio atraía-os e guardava-os.
As entradas de um e outro lado da meridiana, impróprias à dispersão, facilitavam antes o entrelaçamento
dos extremos do país. Ligavam-nos no espaço e no tempo. Estabelecendo no interior a contigüidade do
povoamento, que faltava ainda em parte na costa, e surgindo entre os nortistas, que lutavam pela autonomia da
pátria nascente, e os sulistas, que lhe alargavam a área, abastecendo-os por igual com as fartas boiadas que
subiam para o vale do rio das Velhas ou desciam até as cabeceiras do Parnaíba, aquela rude sociedade,
incompreendida e olvidada, era o cerne vigoroso da nossa nacionalidade.
Os primeiros sertanistas que a criaram, tendo suplantado em toda a linha o selvagem, depois de o
dominarem escravizaram-no e captaram-no, aproveitando-lhe a índole na nova indústria que abraçavam.
Veio subseqüentemente o cruzamento inevitável. E despontou logo uma raça de curibocas puros quase sem
mescla de sangue africano, facilmente denunciada, hoje, pelo tipo normal daqueles sertanejos. Nasciam de um
amplexo feroz de vitoriosos e vencidos. Criaram-se numa sociedade revolta e aventurosa, sobre a terra farta; e
tiveram, ampliando os seus atributos ancestrais, uma rude escola de forca e de coragem naqueles gerais
amplíssimos, onde ainda hoje ruge impune o jaguar e vagueia a ema velocíssima, ou nas serranias de flancos
despedaçados pela mineração superficial, quando as lavras baianas, mais tarde, lhes deram esse derivativo à
faina dos rodeios.
Fora longo traçar-lhes a evolução do caráter. Caldeadas a índole aventureira do colono e a impulsividade do
indígena, tiveram, ulteriormente, o cultivo do próprio meio que lhes propiciou, pelo insulamento, a conservação
dos atributos e hábitos avoengos, ligeiramente modificados apenas consoante as novas exigências da vida. E ali
estão com as suas vestes características, os seus hábitos antigos, o seu estranho aferro às tradições mais remotas,
o seu sentimento religioso levado até o fanatismo, e o seu exagerado ponto de honra, e o seu folclore belíssimo
de rimas de três séculos...
Raça forte e antiga, de caracteres definidos e imutáveis mesmo nas maiores crises — quando a roupa de
couro do vaqueiro se faz a armadura flexível do jagunço — oriunda de elementos convergentes de todos os
pontos, porém diversa das demais deste país, ela é inegavelmente um expressivo exemplo do quanto importam as
reações do meio. Expandindo-se pelos sertões limítrofes ou próximos, de Goiás, Piauí, Maranhão, Ceará e
Pernambuco, tem um caráter de originalidade completa expresso mesmo nas fundações que erigiu. Todos os
povoados, vilas ou cidades, que lhe animam hoje o território, têm uma origem uniforme bem destacada das dos
demais que demoram ao norte e ao sul.
Enquanto deste lado se levantaram nas cercanias das minas ou à margem das catas, e no extremo norte, a
partir de dilatada linha entre a Itiúba e Ibiapaba, sobre o local de antigas aldeias das missões, ali surgiram, todas,
de antigas fazendas de gado.
Escusamo-nos de apontar exemplos por demais numerosos. Quem considera as povoações do S. Francisco,
das nascentes à foz, assiste à sucessão dos três casos apontados.
Deixa as regiões alpestres, cidades alcandoradas sobre serras, refletindo o arrojo incomparável das
bandeiras; atravessa depois os grandes gerais, desmedidas arenas feitas à sociedade rude, libérrima e forte dos
vaqueiros; e atinge por fim as paragens pouco apetecidas, amaninhadas pelas secas, eleitas aos roteiros lentos e
penosos das missões...
É o que indicam, completando estes ligeiros confrontos, os traçados das fundações jesuíticas, no trato de
terras que há pouco demarcamos.
Fundações jesuíticas na Bahia
Com efeito, ali, totalmente diversos na origem, os atuais povoados sertanejos se formaram de velhas aldeias
de índios, arrebatadas, em 1758, do poder dos padres pela política severa de Pombal. Resumindo-nos aos que
ainda hoje existem, próximos e em torno do lugar onde existia há cinco anos a Tróia de taipa dos jagunços,
vemos, mesmo em tão estreita área, os melhores exemplos.
De fato, em toda esta superfície de terras, que abusivas concessões de sesmarias subordinavam à posse de
uma só família, a de Garcia d'Ávila (Casa da Torre), acham-se povoados antiqüíssimos. De Itapicuru-de-Cima a
Jeremoabo e daí acompanhando o S. Francisco até os sertões de Rodelas e Cabrobó, avançaram logo no século
17 as missões num lento caminhar que continuaria até o nosso tempo.
Não tiveram um historiador.
A extraordinária empresa apenas se retrata, hoje, em raros documentos, escassos demais para traçarem a sua
continuidade. Os que existem, porém, são eloqüentes para o caso especial que consideramos. Dizem, de modo
iniludível, que, enquanto o negro se agitava na azáfama do litoral, o indígena se fixava em aldeamentos que se
tornariam cidades. A solicitude calculada do jesuíta e a rara abnegação dos capuchinhos e franciscanos
incorporavam as tribos à nossa vida nacional e quando no alvorecer do século 18 os paulistas irromperam em
Pambu e na Jacobina, deram de vistas, surpresos, nas paróquias que, ali, já centralizavam cabildas. O primeiro
daqueles lugares, 22 léguas a montante de Paulo Afonso, desde 1682 se incorporara à administração da
metrópole. Um capuchinho dominava-o, desfazendo as dissenções tribais e imperando, humílimo, sobre os
morubixabas mansos. No segundo preponderava, igualmente exclusivo, o elemento indígena da velhíssima
missão do Saí.
Jeremoabo aparece, já em 1698, como julgado, o que permite admitir-se-lhe origem muito mais remota. Aí o
elemento indígena se mesclava ligeiramente com o africano, o canhembora ao quilombola . Incomparavelmente
mais animado do que hoje, o humilde lugarejo desviava para si, não raro, a atenção de João de Lancastro,
governador geral do Brasil, principalmente quando se exacerbavam as rivalidades dos chefes índios, munidos
com as patentes, perfeitamente legais, de capitães. Em 1702 a primeira missão dos franciscanos disciplinou
aqueles lugares, tornando-se mais eficaz que as ameaças do governo. Harmonizaram-se as cabildas; e o afluxo de
silvícolas captados pela Igreja foi tal que em um só dia o vigário de Itapicuru batizou 3.700 catecúmenos .
Perto se erigia, também vetusta, a missão de Maçacará, onde, em 1687, tinha o opulento Garcia d'Ávila uma
companhia de seu regimento. Mais para o sul avultavam outras: Natuba, também bastante antiga aldeia, ereta
pelos jesuítas; Inhambupe, que no elevar-se a paróquia originou larga controvérsia entre os padres e o rico
sesmeiro precitado; Itapicuru ( 1639 ), fundada pelos franciscanos.
Mais para o norte, ao começar o século 18, o povoamento, com os mesmos elementos, continuou mais
intenso, diretamente favorecido pela metrópole.
Na segunda metade do século 17 surgira no sertão de Rodelas a vanguarda das bandeiras do sul. Domingos
Sertão centralizou na sua fazenda do Sobrado o círculo animado da vida sertaneja. A ação desse rude sertanista,
naquela região, não tem tido o relevo que merece. Quase na confluência das capitanias setentrionais, próximo ao
mesmo tempo do Piauí, do Ceará, de Pernambuco e da Bahia, o rústico landlord colonial aplicou no trato de suas
cinqüenta fazendas de criação a índole aventurosa e irrequieta dos curibocas. Ostentando, como os outros
dominadores do solo, um feudalismo achamboado — que o levava a transmudar, em vassalos os foreiros
humildes e em servos os tapuias mansos —, o bandeirante atingindo aquelas paragens, e havendo conseguido o
seu ideal de riqueza e poderio, aliava-se na mesma função integradora ao seu tenaz e humilde adversário, o
padre. 1: que a metrópole, no Norte, secundava, sem vacilar, os esforços deste último. Firmara-se desde muito o
princípio de combater o índio com o próprio índio, de sorte que cada aldeamento de catecúmenos era um reduto
ante as incursões dos silvícolas soltos e indomáveis.
Ao terminar o século 17, Lancastro fundou com o indígena catequizado o arraial da Barra, para atenuar as
depredações dos Acaroazes e Mocoazes. E daquele ponto à feição da corrente do São Francisco sucederam-se os
aldeamentos e as missões, em Nossa Senhora do Pilar, Sorobabé, Pambu, Aracapá, Pontal, Pajeú etc. É evidente,
pois, que, precisamente no trecho dos sertões baianos mais ligados aos dos demais Estados do Norte — em toda
a orla do sertão de Canudos — se estabeleceu desde o alvorecer da nossa história um farto povoamento, em que
sobressaía o aborígine amalgamando-se ao branco e ao negro, sem que estes se avolumassem ao ponto de dirimir
a sua influência inegável.
As fundações ulteriores à expulsão dos jesuítas calcaram-se no mesmo método. Do final do século 18 ao
nosso, em Pombal, no Cumbe, em Bom Conselho e Monte Santo etc., perseverantes missionários, de que é
modelo belíssimo Apolônio de Todi, continuaram até os nossos dias o apostolado penoso.
Ora, toda essa população perdida num recanto dos sertões lá permaneceu até agora, reproduzindo-se livre de
elementos estranhos, como que insulada, e realizando, por isso mesmo, a máxima intensidade de cruzamento
uniforme capaz de justificar o aparecimento de um tipo mestiço bem definido, completo.
Enquanto mil causas perturbadoras complicavam a mestiçagem no litoral revolvido pelas imigrações e pela
guerra; e noutros pontos centrais outros empeços irrompiam no rastro das bandeiras — ali, a população indígena,
aliada aos raros mocambeiros foragidos, brancos escapos à justiça ou aventureiros audazes, persistiu dominante.
Causas favoráveis à formação mestiça nos sertões
distinguindo-a dos cruzamentos no litoral
Não sofismemos a História Causas muito enérgicas determinaram o insulamento e conservação do
autóctone. Destaquemo-las.
Foram, primeiro, as grandes concessões de sesmarias, definidoras da feição mais durável do nosso
feudalismo tacanho.
Os possuidores do solo, de que são modelos clássicos os herdeiros de Antônio Guedes de Brito, eram ciosos
dos dilatados latifúndios, sem raias, avassalando a terra. A custo toleravam a intervenção da própria metrópole.
A ereção de capelas, ou paróquias, em suas terras fazia-se sempre através de controvérsias com os padres; e
embora estes afinal ganhassem a partida caíam de algum modo sob o domínio dos grandes potentados. Estes
dificultavam a entrada de novos povoadores ou concorrentes e tornavam as fazendas de criação, dispersas em
torno das freguesias recém-formadas, poderosos centros de atração à raça mestiça que delas promanava.
Assim, esta se desenvolveu fora do influxo de outros elementos. E entregues à vida pastoril, a que por
índole se afeiçoavam, os curibocas ou cafuzos trigueiros, antecedentes diretos dos vaqueiros atuais, divorciados
inteiramente das gentes do sul e da colonização intensa do litoral, evolveram, adquirindo uma fisionomia
original. Como que se criaram num país diverso.
A carta régia de 7 de fevereiro de 1701 foi, depois, uma medida supletiva desse isolamento. Proibira,
cominando severas penas aos infratores, quaisquer comunicações daquela parte dos sertões com o sul, com as
minas de São Paulo. Nem mesmo as relações comerciais foram toleradas; interditas as mais simples trocas de
produtos.
Ora, além destes motivos, sobreleva-se, considerando a gênese do sertanejo no extremo norte, um outro: o
meio físico dos sertões em todo o vasto território que se alonga do leito do Vaza-Barris ao do Parnaíba, no
ocidente.
Vimos-lhe a fisionomia original: a flora agressiva, o clima impiedoso, as secas periódicas, o solo estéril
crespo de serranias desnudas, insulado entre os esplendores do majestoso araxá do centro dos planaltos e as
grandes matas, que acompanham e orlam a curvatura das costas. Esta região ingrata para a qual o próprio tupi
tinha um termo sugestivo pora-pora-eima, remanescente ainda numa das serranias que a fecham pelo levante (
Borborema ), foi o asilo do tapuia. Batidos pelo português, pelo negro e pelo tupi coligados, refluindo ante o
número, os indômitos Cariris encontraram proteção singular naquele colo duro da terra, escalavrado pelas
tormentas, endurado pela ossamenta rígida das pedras, ressequido pelas soalheiras, esvurmando espinheirais e
caatingas. Ali se amorteciam, caindo no vácuo das chapadas, onde ademais nenhuns indícios se mostravam dos
minérios apetecidos, os arremessos das bandeiras. A tapui-retama misteriosa ataviara-se para o estoicismo do
missionário. As suas veredas multívias e longas retratavam a marcha lenta, torturante e dolorosa dos apóstolos.
As bandeiras, que a alcançavam, decampavam logo, seguindo, rápidas, fugindo, buscando outras paragens.
Assombrava-as a terra, que se modelara para as grandes batalhas silenciosas da fé. Deixavam-na, sem que
nada lhes determinasse a volta; e deixavam em paz o gentio.
Daí a circunstância, revelada por uma observação feliz, de predominarem ainda hoje, nas denominações
geográficas daqueles lugares, termos de origem tapuia resistentes às absorções do português e do tupi, que se
exercitaram noutros pontos. Sem nos delongarmos demais, resumamos às terras circunjacentes a Canudos a
exemplificação deste fato de linguagem, que tão bem traduz uma vicissitude histórica.
"Transpondo o S. Francisco em direção ao sul, penetra-se de novo numa região ingrata pela inclemência do
céu, e vai-se atravessando a bacia elevada do Vaza-Barris, antes de ganhar os trechos esparsos e mais deprimidos
das chapadas baianas que, depois do salto de Paulo Afonso, depois de Canudos e de Monte Santo, levam a
Itiúba, ao Tombador e ao Açuruá. Aí, nesse trecho do pátrio território, aliás dos mais ingratos, onde outrora se
refugiaram os perseguidos destroços dos Orizes, Procás e Cariris, de novo aparecem, designando os lugares, os
nomes bárbaros de procedência tapuia, que nem o português nem o tupi logrou suplantar.
Lêem-se então no mapa da região com a mesma freqüência dos acidentes topográficos os nomes como
Pambu, Patamuté, Uauá, Bendegó, Cumbe, Maçacará, Cocorobó, Jeremoabo, Tragagó, Canché. Chorrochó,
Quincuncá, Conchó, Centocé, Açuruá, Xique-Xique, Jequié, Sincorá, Caculé ou Catolé, Orobó, Mocugé, e
outros, igualmente bárbaros e estranhos."
É natural que grandes populações sertanejos, de par com as que se constituíam no médio S. Francisco, se
formassem ali com a dosagem preponderante do sangue tapuia. E lá ficassem ablegadas, evolvendo em círculo
apertado durante três séculos, até a nossa idade, num abandono completo, de todo alheio aos nossos destinos,
guardando, intactas, as tradições do passado. De sorte que. hoje, quem atravessa aqueles lugares observa uma
uniformidade notável entre os que os povoam: feições e estaturas variando ligeiramente em torno de um modelo
único, dando a impressão de um tipo antropológico invariável, logo ao primeiro lance de vistas distinto do
mestiço proteiforme do litoral. Porque enquanto este patenteia todos os cambiantes da cor e se erige ainda
indefinido, segundo o predomínio variável dos seus agentes formadores, e homem do sertão parece feito por um
molde único, revelando quase os mesmos caracteres físicos, a mesma tez, variando brevemente do mamaluco
bronzeado ao cafuz trigueiro; cabelo corredio e duro ou levemente ondeado; a mesma envergadura atlética e os
mesmos caracteres morais traduzindo-se nas mesmas superstições. nos mesmos vícios, e nas mesmas virtudes.
A uniformidade, sob estes vários aspectos, é impressionadora. O sertanejo do norte é, inegavelmente, o tipo
de uma subcategoria étnica já constituída.
Um parêntesis irritante
Abramos um parêntesis...
A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo,
ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A
mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem
estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é
um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço — traço de união
entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares — é, quase sempre, um
desequilibrado. Foville compara-os, de um modo geral, aos histéricos. Mas o desequilíbrio nervoso, em tal caso,
é incurável: não há terapêutica para este embater de tendências antagonistas, de raças repentinamente
aproximadas, fundidas num organismo isolado. Não se compreende que após divergirem extremadamente,
através de largos períodos entre os quais a História é um momento, possam dois ou três povos convergir, de
súbito, combinando constituições mentais diversas, anulando em pouco tempo distinções resultantes de um lento
trabalho seletivo. Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem não se
acrescentam, subtraem-se ou destróem-se segundo os caracteres positivos e negativos em presença. E o mestiço
— mulato, mamaluco ou cafuz — menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos
ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores. Contrastando com a fecundidade que
acaso possua, ele revela casos de hibridez moral extraordinários: espíritos fulgurantes, às vezes, mais frágeis,
irrequietos, inconstantes, deslumbrando um momento e extinguindo-se prestes, feridos pela fatalidade das leis
biológicas, chumbados ao plano inferior da raça menos favorecida. Impotente para formar qualquer solidariedade
entre as gerações opostas, de que resulta, reflete-lhes os vários aspectos predominantes num jogo permanente de
antíteses. E quando avulta — não são raros os casos — capaz das grandes generalizações ou de associar as mais
complexas relações abstratas, todo esse vigor mental repousa (salvante os casos excepcionais cujo destaque
justifica o conceito) sobre uma moralidade rudimentar, em que se pressente o automatismo impulsivo das raças
inferiores.
É que nessa concorrência admirável dos povos, evolvendo todos em luta sem tréguas, na qual a seleção
capitaliza atributos que a hereditariedade conserva, o mestiço é um intruso. Não lutou; não é uma integração de
esforços; é alguma coisa de dispersivo e dissolvente; surge, de repente, sem caracteres próprios, oscilando entre
influxos opostos de legados discordes. A tendência à regressão às raças matrizes caracteriza a sua instabilidade.
É a tendência instintiva a uma situação de equilíbrio. As leis naturais pelo próprio jogo parecem extinguir, a
pouco e pouco, o produto anômalo que as viola, afogando-o nas próprias fontes geradoras. O mulato despreza
então, irresistivelmente, o negro e procura com uma tenacidade ansiosíssima cruzamentos que apaguem na sua
prole o estigma da fronte escurecida; o mamaluco faz-se o bandeirante inexorável, precipitando-se, ferozmente,
sobre as cabildas aterradas...
Esta tendência é expressiva. Reata, de algum modo, a série contínua da evolução, que a mestiçagem partira.
A raça superior torna-se o objetivo remoto para onde tendem os mestiços deprimidos e estes, procurando-a,
obedecem ao próprio instinto da conservação e da defesa. É que são invioláveis as leis do desenvolvimento das
espécies; e se toda a sutileza dos missionários tem sido impotente para afeiçoar o espírito do selvagem às mais
simples concepções de um estado mental superior; se não há esforços que consigam do africano, entregue à
solicitude dos melhores mestres, o aproximar-se sequer do nível intelectual médio do indo-europeu — porque
todo o homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro uma herança —
, como compreender-se a normalidade do tipo antropológico que aparece, de improviso, enfeixando tendências
tão opostas ?
Uma raça forte
Entretanto a observação cuidadosa do sertanejo do Norte mostra atenuado esse antagonismo de tendências e
uma quase fixidez nos caracteres fisiológicos do tipo emergente.
Este fato, que contrabate, ao parecer, as linhas anteriores, é a sua contraprova frisante.
Com efeito, é inegável que para a feição anormal dos mestiços de raças mui diversas contribui bastante o
fato de acarretar o elemento étnico mais elevado, mais elevadas condições de vida, de onde decorre a
acomodação penosa e difícil para aqueles. E desde que desça sobre eles a sobrecarga intelectual e moral de uma
civilização, o desequilíbrio é inevitável.
A índole incoerente, desigual e revolta do mestiço, como que denota um íntimo e intenso esforço de
eliminação dos atributos que lhe impedem a vida num meio mais adiantado e complexo. Reflete — em círculo
diminuto — esse combate surdo e formidável, que é a própria luta pela vida das raças, luta comovedora e eterna
caracterizada pelo belo axioma de Gumplowicz como a força motriz da História. O grande professor de Gratz
não a considerou sob este aspecto. A verdade, porém, é que se todo o elemento étnico forte "tende subordinar ao
seu destino o elemento mais fraco antes o qual se acha", encontra na mestiçagem um caso perturbador. A
expansão irresistível do seu círculo singenético, porém, por tal forma iludida, retarda-se apenas. Não se extingue.
A luta transmuda-se, tornando-se mais grave. Volve do caso vulgar, do extermínio franco da raça inferior pela
guerra, à sua eliminação lenta, à sua absorção vagarosa, à sua diluição no cruzamento. E durante o curso deste
processo redutor, os mestiços emergentes, variáveis, com todas as nuanças da cor, da forma e do caráter, sem
feições definidas, sem vigor, e as mais vezes inviáveis, nada mais são, em última análise, do que os mutilados
inevitáveis do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades.
É que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização.
Ora, os nossos rudes patrícios dos sertões do Norte forraram-se a esta última. O abandono em que jazeram teve
função benéfica. Libertou-os da adaptação penosíssima a um estádio social superior, e, simultaneamente, evitou
que descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados.
A fusão entre eles operou-se em circunstâncias mais compatíveis com os elementos inferiores. O fator
étnico preeminente transmitindo-lhes as tendências civilizadoras não lhes impôs a civilização.
Este fato destaca fundamentalmente a mestiçagem dos sertões da do litoral. São formações distintas, senão
pelos elementos, pelas condições do meio. O contraste entre ambas ressalta ao paralelo mais simples. O sertanejo
tomando em larga escala, do selvagem, a intimidade com o meio físico, que ao invés de deprimir enrija o seu
organismo potente, reflete, na índole e nos costumes, das outras raças formadoras apenas aqueles atributos mais
ajustáveis à sua fase social incipiente.
É um retrógrado; não é um degenerado. Por isto mesmo que as vicissitudes históricas o libertaram, na fase
delicadíssima da sua formação, das exigências desproporcionadas de uma cultura de empréstimo, prepararam-no
para a conquistar um dia.
A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada a ser, tem, agora, a garantia de um tipo
fisicamente constituído e forte. Aquela raça cruzada surge autônoma e, de algum modo, original, transfigurando,
pela própria combinação, todos os atributos herdados; de sorte que, despeada afinal da existência selvagem, pode
alcançar a `:ida civilizada por isto mesmo que não a atingiu de repente.
Aparece logicamente.
Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas
se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento — nos
sertões a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de
evolver, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos. porque é a sólida base física do
desenvolvimento moral ulterior.
Deixemos, porém, este divagar pouco atraente.
Prossigamos considerando diretamente a figura original dos nossos patrícios retardatários. Isto sem método,
despretensiosamente, evitando os garbosos neologismos etnológicos.
Faltaram-nos, do mesmo passo, tempo e competência para nos enredarmos em fantasias
psíquico-geométricas, que hoje se exageram num quase materialismo filosófico, medindo o ângulo facial, ou
traçando a norma verticalis dos jagunços.
Se nos embaraçássemos nas imaginosas linhas dessa espécie de topografia psíquica, de que tanto se tem
abusado, talvez não os compreendêssemos melhor. Sejamos simples copistas.
Reproduzamos, intactas, todas as impressões, verdadeiras ou ilusórias, que tivemos quando, de repente,
acompanhando a celeridade de uma marcha militar, demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles
desconhecidos singulares, que ali estão — abandonados — há três séculos.
CapítuloIII
O sertanejo
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do
litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o
desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O
andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados.
Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade
deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a
cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos,
descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme.
Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das
trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou
travar ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa
posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre
os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito,
no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida
operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o
desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas
linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar
desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do
relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto
dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade
extraordinárias.
Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida
sertaneja — caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.
É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da
montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão,
desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando
morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o
“campeão” que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência.
Mas se uma rês “alevantada” envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta, ou se uma ponta de
gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas
ilhargas da montaria e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas.
Vimo-lo neste steeple-chase bárbaro.
Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras, coivaras, moiras de
espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar o garrote desgarrado, porque “por onde passa o boi
passa o vaqueiro com o seu cavalo”...
Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças a pressão dos jarretes firmes, realiza a criação
bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas macegas altas;
saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes;
precipitando-se, a toda brida, no largo dos tabuleiros . . .
A sua compleição robusta ostenta-se, nesse momento, em toda a plenitude. Como que é o cavaleiro robusto
que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustenta-o nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o
nas esporas, arrojando-o na carreira -estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso
colado no arção — "escanchado no rastro" do novilho esquivo: aqui curvando-se agilíssimo, sob um ramalho,
que lhe roça quase pela sela; além desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal,
para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento e galgando, logo depois, num pulo, o selim; —
e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra sem a perder nunca, sem a deixar no
inextricável dos cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro encastoada em couro, que por si só constituiria,
noutras mãos, sérios obstáculos à travessia...
Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rès dominada, ei-lo, de novo caído sobre o lombilho
retovado, outra vez desgracioso e inerte, oscilando à feição da andadura lenta' com a aparência triste de um
inválido esmorecido.
Tipos díspares: o jagunço e o gaúcho
O gaúcho do Sul, ao encontrá-lo nesse instante, sobreolhá-lo-ia comiserado.
O vaqueiro do Norte é a sua antítese. Na postura, no gesto, na palavra, na índole e nos hábitos não há
equipará-los. O primeiro, filho dos plainos sem fins, afeito às correrias fáceis nos pampas e adaptado a uma
natureza carinhosa que o encanta, tem, certo, feição mais cavalheirosa e atraente. A luta pela vida não lhe
assume o caráter selvagem da dos sertões do Norte. Não conhece os horrores da seca e os combates cruentos
com a terra árida e exsicada. Não o entristecem as cenas periódicas da devastação e da miséria, o quadro
assombrador da absoluta pobreza do solo calcinado, exaurido pela adustão dos sóis bravios do Equador. Não
tem, no meio das horas tranqüilas da felicidade, a preocupação do futuro, que é sempre uma ameaça, tornando
aquela instável e fugitiva. Desperta para a vida amando a natureza deslumbrante que o aviventa; e passa pela
vida, aventureiro, jovial, diserto, valente e fanfarrão, despreocupado, tendo o trabalho como uma diversão que
lhe permite as disparadas, domando distancias, nas pastagens planas, tendo aos ombros, palpitando aos ventos o
pala inseparável, como uma flâmula festivamente desdobrada.
As suas vestes são um traje de festa, ante a vestimenta rústica do vaqueiro. As amplas bombachas, adrede
talhadas para a movimentação fácil sobre os baguaís, no galope fechado ou no corcovear raivoso, não se
estragam em espinhos dilaceradores de caatingas. O seu poncho vistoso jamais fica perdido, embaraçado nos
esgalhos das árvores garranchentas. E, rompendo pelas coxilhas, arrebatadamente na marcha do redomão
desensofrido, calçando as largas botas russilhonas, em que retinem as rosetas das esporas de prata; lenço de seda
encarnado, ao pescoço; coberto pelo sombreiro de enormes abas flexíveis, e tendo à cinta, rebrilhando, presas
pela guaiaca, a pistola e a faca — é um vitorioso jovial e forte. O cavalo, sócio inseparável desta existência algo
romanesca, é quase objeto de luxo. Demonstra-o o arreamento complicado e espetaculoso. O gaúcho andrajoso
sobre um "pingo" bem aperado está decente, está corretíssimo. Pode atravessar sem vexames os vilarejos em
festa.
O vaqueiro
O vaqueiro, porém, criou-se em condições opostas, em uma intermitência, raro perturbada, de horas felizes
e horas cruéis, de abastança e misérias — tendo sobre a cabeça, como ameaça perene, o sol, arrastando de
envolta, no volver das estações, períodos sucessivos de devastações e desgraças.
Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança.
Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão. Cedo
encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida. Compreendeu-se envolvido em combate
sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias.
Fez-se forte, esperto, resignado e prático.
Aprestou-se, cedo, para a luta.
O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo exausto da refrega. As vestes são
uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro;
calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas,
articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado — é
como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo.
Esta armadura, porém, de um vermelho pardo, como se fosse de bronze flexível, não tem cintilações, não
rebrilha ferida pelo sol. É fosca e poenta. Envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias.. .
A sela da montaria, feita por ele mesmo, imita o lombilho rio-grandense, mas é mais curta e cavada, sem os
apetrechos luxuosos daquele. São acessórios uma manta de pele de bode, um couro resistente, cobrindo as ancas
do animal, peitorais que lhe resguardam o peito, e as joelheiras apresilhadas às juntas.
Este equipamento do homem e do cavalo talha-se à feição do meio. Vestidos doutro modo não romperiam,
incólumes, as caatingas e os pedregais cortantes.
Nada mais monótono e feio, entretanto, do que esta vestimenta original, de uma só cor — o pardo
avermelhado do couro curtido — sem uma variante, sem uma lista sequer diversamente colorida. Apenas, de
longe em longe, nas raras encamisadas em que aos descantes da viola o matuto deslembra as horas fatigadas,
surge uma novidade — um colete vistoso de pele de gato do mato ou de suçuarana, com o pelo mosqueado
virado para fora, ou uma bromélia rubra e álacre fincada no chapéu de couro.
Isto, porém, é incidente passageiro e raro.
Extintas as horas do folguedo, o sertanejo perde o desgarre folgazão — largamente expandido nos
sapateados, em que o estalo seco das alpercatas sobre o chão se perde nos tinidos das esporas e soalhas dos
pandeiros, acompanhando a cadência das violas vibrando nos rasgados — e cai na postura habitual, tosco,
deselegante e anguloso, num estranho manifestar de desnervamento e cansaço extraordinários.
Ora, nada mais explicável do que este permanente contraste entre extremas manifestações de força e
agilidade e longos intervalos de apatia.
Perfeita tradução moral dos agentes físicos da sua terra, o sertanejo do norte teve uma árdua aprendizagem
de reveses. Afez-se, cedo, a encontrá-los, de chofre, e a reagir, de pronto.
Atravessa a vida entre ciladas, surpresas repentinas de uma natureza incompreensível, e não perde um
minuto de tréguas. É o batalhador perenemente combalido e exausto, perenemente audacioso e forte;
preparando-se sempre para um rencontro que não vence e em que se não deixa vencer; passando da máxima
quietude à máxima agitação; da rede preguiçosa e cômoda para o lombilho duro, que o arrebata como um raio
pelos arrastadores estreitos, em busca das malhadas. Reflete, nestas aparências que se contrabatem, a própria
natureza que o rodeia — passiva ante o jogo dos elementos e passando, sem transição sensível, de uma estação à
outra, da maior exuberância à penúria dos desertos incendidos, sob o reverberar dos estios abrasantes.
É inconstante como ela. É natural que o seja. Viver é adaptar-se. Ela talhou-o à sua imagem: bárbaro,
impetuoso, abrupto. . .
O gaúcho
O gaúcho, o pealador valente, é, certo, inimitável, numa carga guerreira; precipitando-se, ao ressoar
estrídulo dos clarins vibrantes, pelos pampas, com o conto da lança enristada, firme no estribo; atufando-se
loucamente nos entreveros; desaparecendo, com um grito triunfal, na voragem do combate, onde espadanam
cintilações de espadas; transmudando o cavalo em projétil e varanda quadrados e levando de rojo o adversário no
rompão das ferraduras, ou tombando, prestes, na luta, em que entra com despreocupação soberana pela vida.
O jagunço
O jagunço é menos teatralmente heróico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é mais forte; é
mais duro.
Raro assume esta feição romanesca e gloriosa. Procura o adversário com o propósito firme de o destruir,
seja como for.
Está afeiçoado aos prélios obscuros e longos, sem expansões entusiásticas. A sua vida é uma conquista
arduamente feita, em faina diuturna. Guarda-a como capital precioso. Não esperdiça a mais ligeira contração
muscular, a mais leve vibração nervosa sem a certeza do resultado. Calcula friamente o pugilato. Ao "riscar da
faca" não dá um golpe em falso. Ao apontar a lazarina longa ou o trabuco pesado, dorme na pontaria. . .
Se, ineficaz o arremesso fulminante, contrário enterreirado não baqueia, o gaúcho, vencido ou pulseado, é
fragílimo nas aperturas de uma situação inferior ou indecisa.
O jagunço, não. Recua. Mas, no recuar é mais temeroso ainda. É um negacear demoníaco. O adversário
tem, daquela hora em diante, visando-o pelo cano da espingarda, um ódio inextinguível, oculto no sombreado
das tocaias...
Os vaqueiros
Esta oposição de caracteres acentua-se nas quadras normais.
Assim todo sertanejo é vaqueiro. À parte a agricultura rudimentar das plantações da vazante pela beira dos
rios, para a aquisição de cereais de primeira necessidade, a criação de gado é, ali, a sorte de trabalho menos
impropriada ao homem e à terra.
Entretanto não há vislumbrar nas fazendas do sertão a azáfama festiva das estâncias do Sul.
"Parar o rodeio" é para o gaúcho uma festa diária, de que as cavalhadas espetaculosas são ampliações
apenas. No âmbito estreito das mangueiras ou em pleno campo, ajuntando o gado costeado ou encalçando os
bois esquivos pelas sangas e banhados, os pealadores, capatazes e peões, preando à ilhapa dos laços o potro
bravio, ou fazendo tombar, fulminado pelas bolas silvantes, o touro alçado, nas evoluções rápidas das carreiras,
como se tirassem "argolinhas", seguem no alarido e na alacridade de uma diversão tumultuosa. Nos trabalhos
mais calmos, quando nos rodeios marcam o gado, curam-lhe as feridas, apartam os que se destinam às
charqueadas, separam os novilhos tambeiros ou escolhem os baguais condenados às chilenas do domador — o
mesmo fogo, que encandesce as marcas, dá as brasas para os ágapes rudes de assados com couro ou ferve a água
para o chimarrão amargo.
Decorre-lhes a vida variada e farta.
Servidão
inconsciente
O mesmo não acontece ao Norte. Ao contrário do entancieiro, o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe
dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros
da colônia, usufruem, parasitariamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes servos
submissos.
Graças a um contrato pelo qual percebem certa percentagem dos produtos, ali ficam, anônimos — nascendo,
vivendo e morrendo na mesma quadra de terra — perdidos nos arrastadores e mocambos; e cuidando, a vida
inteira, fielmente, dos rebanhos que Ihes não pertencem.
O verdadeiro dono, ausente, conhece-lhes a fidelidade sem par. Não os fiscaliza. Sabe-lhes, quando muito,
os nomes.
Envoltos, então, no traje característico, os sertanejos encourados erguem a choupana de pau-a-pique à borda
das cacimbas, rapidamente, como se armassem tendas; e entregam-se, abnegados, à servidão que não avaliam.
A primeira coisa que fazem é aprender o a b c e, afinal, toda a exigência da arte em que são eméritos:
conhecer os "ferros" das suas fazendas e os das circunvizinhas. Chamam-se assim os sinais de todos os feitios,
ou letras, ou desenhos caprichosos como siglas, impressos, por tatuagem a fogo, nas ancas do animal,
completados pelos cortes, em pequenos ângulos, nas orelhas. Ferrado o boi, está garantido. Pode romper
tranqueiras e tresmalhar-se. Leva, indelével, a indicação que o reporá na "solta" primitiva. Porque o vaqueiro não
se contentando com ter de cor os ferros de sua fazenda, aprende os das demais. Chega, às vezes por
extraordinário esforço de memória, a conhecer, uma por uma, não só as reses de que cuida, como as dos
vizinhos, incluindo-lhes a genealogia e hábitos característicos, e os nomes, e as idades etc. Deste modo, quando
surge no seu logrador um animal alheio, cuja marca conhece, o restitui de pronto. No caso contrário, conserva o
intruso, tratando-o como aos demais. Mas não o leva à feira anual, nem o aplica em trabalho algum; deixa-o
morrer de velho. Não lhe pertence.
Se é uma vaca e dá cria, ferra a esta com o mesmo sinal desconhecido, que reproduz com perfeição
admirável; e assim pratica com toda a descendência daquela. De quatro em quatro bezerros, porém, separa um,
para si. É a sua paga. Estabelece com o patrão desconhecido o mesmo convênio que tem com o outro. E cumpre
estritamente, sem juízes e sem testemunhas, o estranho contrato, que ninguém escreveu ou sugeriu.
Sucede muitas vezes ser decifrada, afinal, uma marca somente depois de muitos anos, e o criador feliz
receber, ao invés da peça única que lhe fugira e da qual se deslembrara, numa ponta de gado, todos os produtos
dela.
Parece fantasia este fato, vulgar, entretanto, nos sertões.
Indicamo-lo como traço encantador da probidade dos matutos. Os grandes proprietários da terra e dos
rebanhos a conhecem. Têm, todos, com o vaqueiro o mesmo trato de parceria, resumido na cláusula única de lhe
darem, em troca dos cuidados que ele despende, um quarto dos produtos da fazenda. E sabem que nunca se
violará a percentagem.
O ajuste de contas faz-se no fim do inverno e realiza-se, ordinariamente, sem que esteja presente a parte
mais interessada. É formalidade dispensável. O vaqueiro separa escrupulosamente a grande maioria de novas
cabeças pertencentes ao patrão (nas quais imprime o sinal da fazenda) das poucas, um quarto, que lhe couberam
por sorte. Grava nestas o seu sinal particular; e conserva-as ou vende-as. Escreve ao patrão, dando-lhe conta
minuciosa de todo o movimento do sítio, alongando-se aos mínimos pormenores; e continua na faina
ininterrupta.
Esta, ainda que, em dadas ocasiões, fatigante, é a mais rudimentar possível. Não existe no Norte uma
indústria pastoril. O gado vive e multiplica-se à gandaia. Ferrados em junho, os garrotes novos perdem-se nas
caatingas, com o resto das malhadas. Ali os rareiam epizootias intensas, em que se sobrelevam o "rengue" e o
"mal triste". Os vaqueiros mal procuram atenuá-las. Restinguem a atividade às corridas desabaladas pelos
arrastadores. Se a bicheira devasta a tropa, sabem de específico mais eficaz que o mercúrio: a reza. Não precisam
de ver o animal doente. Voltam-se apenas na direção em que ele se acha e rezam, tracejando no chão
inextricáveis linhas cabalísticas. Ou então, o que é ainda mais transcendente, curam-no pelo rastro.
E assim passam numa agitação estéril.
Raro, um incidente, uma variante alegre, quebra a sua vida monótona.
Solidários todos, auxiliam-se incondicionalmente em todas as conjunturas. Se foge a algum boi levantadiço,
toma da "guiada", põe pernas ao campeão. e ei-lo escanchado no rastro, jogado pelas veredas tiradas a facão. Se
não pode levar avante a empresa, "pede campo", frase característica daquela cavalaria rústica, aos companheiros
mais vizinhos, e lá seguem todos, aos dez, aos vinte, rápidos, ruidosos, amigos — "campeando", voando pelos
tombadores e esquadrinhando as caatingas até que o bruto, "desautorizado" dê a venta no termo da corrida, ou
tombe, de rijo, mancornado às mãos possantes que se lhe aferram aos chifres.
A vaquejada
Esta solidariedade de esforços evidencia-se melhor na "vaquejada", trabalho consistindo essencialmente no
reunir, e discriminar depois, os gados de diferentes fazendas convizinhas, que por ali vivem em comum, de
mistura, em um compáscuo único e enorme, sem cercas e sem valos.
Realizam-na de junho a julho.
Escolhido um lugar mais ou menos central, as mais das vezes uma várzea complanada e limpa, o
"rodeador", congrega-se a vaqueirama das vizinhanças. Concertam nos dispositivos da empresa. Distribuem-se as funções que a cada um caberão na lide. E para logo, irradiantes pela superfície da arena, arremetem com as
caatingas que a envolvem os encourados atléticos.
O quadro tem a movimentação selvagem e assombrosa de uma corrida de tártaros.
Desaparecem em minutos os sertanejos, perdendo-se no matagal circundante. O rodeio permanece por
algum tempo deserto. . .
De repente estruge ao lado um estrídulo tropel de cascos sobre pedras, um estrépido de galhos estalando,
um estalar de chifres embatendo; tufa nos ares, em novelos, uma nuvem de pó; rompe, a súbitas, na clareira,
embolada, uma ponta de gado; e, logo após, sobre o cavalo que estaca esbarrado, o vaqueiro, teso nos estribos...
Traz apenas exígua parte do rebanho. Entrega-a aos companheiros que ali ficam, `'de esteira"; e volve em
galope desabalado, renovando a pesquisa. Enquanto outros repontam além, mais outros, sucessivamente, por
toda a banda, por todo o âmbito do rodeio, que se anima, e tumultua em disparos: bois às marradas ou
escarvando o chão, cavalos curveteando, confundidos e embaralhados sobre os plainos vibrantes num
prolongado rumor de terremoto. Aos lados, na caatinga, os menos felizes se agitam às voltas com os marruás
recalcitrantes. O touro largado ou o garrote vadio em geral refoge à revista. Afunda na caatinga. Segue-o o
vaqueiro. Cose-se-lhe no rastro. Vai com ele às últimas bibocas. Não o larga; até que surja o ensejo para um ato
decisivo: alcançar repentinamente o fugitivo, de arranco; cair logo para o lado da sela, suspenso num estribo e
uma das mãos presa às crinas do cavalo; agarrar com a outra a cauda do boi em disparada e com um rapelão
fortíssimo, de banda, derribá-lo pesadamente em terra... Põe-lhe depois a pela ou a máscara de couro, levando-o
jugulado ou vendado para o rodeador.
Ali o recebem ruidosamente os companheiros. Conta-lhes a façanha. Contam-lhe outras idênticas, e
trocam-se as impressões heróicas numa adjetivação ad boc, que vai num crescendo do "destalado" ríspido ao
"temero" pronunciado num trêmulo enrouquecido e longo.
Depois, ao findar do dia, a última tarefa: contam as cabeças reunidas. Apartam-nas. Separam-se, seguindo
cada um para sua fazenda tangendo por diante as reses respectivas. E pelos ermos ecoam melancolicamente as
notas do "aboiado" . . .
A arribada
Segue a boiada vagarosamente, à cadência daquele canto triste e preguiçoso. Escanchado,
desgraciosamente, na sela, o vaqueiro, que a revê unida e acrescida de novas crias, rumina os lucros prováveis: o
que toca ao patrão, e o que lhe toca a ele, pelo trato feito. Vai dali mesmo contando as peças destinadas à feira;
considera, aqui, um velho boi que ele conhece há dez anos e nunca levou à feira, mercê de uma amizade antiga;
além, um mumbica claudicante, em cujo flanco se enterra estrepe agudo, que é preciso arrancar; mais longe,
mascarado, cabeça alta e desafiadora, seguindo apenas guiado pela compressão dos outros, o garrote bravo, que
subjugou, pegando-o "de saia", e derrubando-o, na caatinga; acolá, soberbo, caminhando folgado, porque os
demais o respeitam, abrindo-lhe em roda um claro, largo pescoço, envergadura de búfalo, o touro vigoroso,
inveja de toda a redondeza, cujas armas regidas e curtas relembram, estaladas, rombas e cheias de terra,
guampaços formidáveis, em luta com os rivais possantes, nos logradouros; além, para toda a banda, outras peças,
conhecidas todas, revivendo-lhe todas, uma a uma, um incidente, um pormenor qualquer da sua existência
primitiva e simples.
E prosseguem, em ordem, lentos, ao toar merencório da cantiga, que parece acalentá-los, embalando-os com
o refrão monótono:
E cou mansão
E cou...è caõ...
ecoando saudoso nos descampados mudos...
Estouro da boiada
De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção repentino, aqueles centenares de dorsos
luzidios. Há uma parada instantânea .Entrebatem-se, enredam-se, trançam-se e alteiam-se fisgando vivamente o
espaço, e inclinam-se, embaralham-se milhares ele chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada estoura. . .
A boiada arranca.
Nada explica, às vezes, o acontecimento, aliás vulgar, que é o desespero dos campeiros.
Origina o incidente mais trivial — o súbito vôo rasteiro de uma araquã ou a corrida de um mocó esquivo. Uma
rês se espanta e o contágio, uma descarga nervosa subitânea, transfunde o espanto sobre o rebanho inteiro. É um
solavanco único, assombroso, atirando, de pancada, por diante, revoltos, misturando-os embolados, em
vertiginosos disparos, aqueles maciços corpos tão normalmente tardos e morosos.
E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-los. Acamam-se as caatingas, árvores dobradas, partidas,
estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente as baixadas num marulho de chifres; estrepitam, britando e
esfarelando as pedras, torrentes de cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e
longo de trovão longínquo...
Destroem-se em minutos, feito montes de leivas, antigas roças penosamente cultivadas; extinguem-se, em
lameiros revolvidos, as ipueiras rasas; abatem-se, apisoados, os pousos; ou esvaziam-se, deixando-os os
habitantes espavoridos, fugindo para os lados, evitando o rumo retilíneo em que se despenha a "arribada" —
milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico, precipitado
na carreira doida. E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou arremessando-se impetuoso na esteira de destroços, que
deixa após si aquela avalancha viva, largado numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos, e cerros, e
galhadas — enristado o ferrão, rédeas soltas, soltos os estribos, estirado sobre o lombilho, preso às crinas do
cavalo — o vaqueiro !
Já se lhe tem associado, em caminho, os companheiros, que escutaram, de longe, o estouro da boiada.
Renova-se a lida: novos esforços, novos arremessos, novas façanhas, novos riscos e novos perigos a despender, a
atravessar e a vencer, até que o boiadão, não já pelo trabalho dos que o encalçam e rebatem pelos flancos senão
pelo cansaço, a pouco e pouco afrouxe e estaque, inteiramente abombado.
Reaviam-no à vereda da fazenda; e ressoam, de novo, pelos ermos, entristecedoramente. as notas melancólicas
do aboiado.
Tradições
Volvem os vaqueiros ao pouso e ali, nas redes bamboantes, relatando as peripécias da vaquejada ou famosas
aventuras de feira, passam as horas matando, na significação completa do termo, o tempo, e desalterando-se com
a umbuzada saborosíssima, ou merendando a iguaria incomparável de jerimum com leite.
Se a quadra é propícia, e vão bem as plantações da vazante, e viça o "panasco" e o "mimoso" nas soltas
dilatadas, e nada revela o aparecimento da seca, refinam a ociosidade nos braços da preguiça benfazeja. Seguem
para as vilas se por lá se fazem festas de cavalhadas e mouramas, divertimentos anacrônicos que os povoados
sertanejos reproduzem, intactos, com os mesmos programas de há três séculos. E entre eles a exótica
"encamisada", que é o mais curioso exemplo do aferro às mais remotas tradições. Velhíssima cópia das vetustas
quadras dos fossados ou arrancadas noturnas, na Península, contra os castelos árabes, e de todo esquecido na
terra onde nasceu, onde a sua mesma significação é hoje inusitado arcaísmo, esta diversão dispendiosa e
interessante, feita à luz de lanternas e archotes, com os seus longos cortejos de homens a pé, vestidos de branco,
ou à maneira de muçulmanos, e outros a cavalo em animais estranhamente ajaezados, desfilando rápidos, em
escaramuças e simulados recontros, é o encanto máximo dos matutos folgazãos.
Danças
Nem todos, porém, a compartem. Baldos de recursos para se alongarem das rancharias, agitam-se, então,
nos folguedos costumeiros. Encourados de novo, seguem para os sambas e cateretês ruidosos, os solteiros,
famanazes no 'desafio, sobraçando os machetes, que vibram no "choradinho" ou "baião", e os casados levando
toda a "obrigação", a família. Nas choupanas em festa recebem-se os convivas com estrepitosas salvas de
ronqueiras e como em geral não há espaço para tantos, arma-se fora, no terreiro varrido, revestido de ramagens,
mobiliado de cepos e troncos, e raros tamboretes, mas imenso, alumiado pelo luar e pelas estrelas! o salão de
baile. "Despontam o dia" com uns largos traços de aguardente, a "teimosa". E rompem estrídulamente os
sapateados vivos.
Um cabra destalado ralha na viola. Serenam, em vagarosos meneios, as caboclas bonitas. Revoluteia,,
"brabo e corado", o sertanejo moço.
Desafios
Nos intervalos travam-se os desafios.
Enterreiram-se, adversários, dois cantores rudes. As rimas saltam e casam-se em quadras muita vez
belíssimas.
Nas horas de Deus, amém,
Não é zombaria, não!
Desafio o mundo inteiro
Pra cantar nesta função !
O adversário retruca logo, levantando-lhe o último verso da quadra:
Pra cantar nesta função,
Amigo, meu camarada,
Aceita teu desafio
O "fama" deste sertão!
É o começo da luta que só termina quando um dos bardos se engasga numa rima difícil e titubeia,
repinicando nervosamente o machete, sob uma avalancha de risos saudando-lhe a derrota. E a noite vai
deslizando rápida no folguedo que se generaliza, até que as barras venham quebrando e cantem as sericóias nas
ipueiras, dando o sinal de debandar ao agrupamento folgazão.
Terminada a festa volvem os vaqueiros à tarefa ou à rede preguiçosa.
Alguns, de ano em ano, arrancam dos pousos tranquilos para remotas paragens. Transpõem o S. Francisco;
mergulham nos gerais enormes do ocidente, vastos planaltos indefinidos em que se confundem as bacias daquele
e do Tocantins em alagados de onde partem os rios indiferentemente para o levante e para o poente; e penetram
em Goiás, ou, avantajando-se mais para o norte, as serras do Piauí.
Vão à compra de gados. Aqueles lugares longínquos, pobres e obscuros vilarejos que o Porto Nacional
extrema, animam-se, então, passageiramente, com a romaria dos "baianos" São os autocratas das feiras. Dentro
da armadura de couro, galhardos, brandindo a guiada, sobre os cavalos ariscos, entram naqueles vilarejos com
um desgarre atrevido de triunfadores felizes. E ao tornarem — quando não se perdem para todo o sempre, sem
tino, na "travessia" perigosa dos descampados uniformes — reatam a mesma vida monótona e primitiva.
A seca
De repente, uma variante trágica.
Aproxima-se a seca.
O sertanejo adivinha-a e graças ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo.
Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que irradia do
Ceará.
Buckle, em página notável, assinala a anomalia de se não afeiçoar nunca, o homem, às calamidades naturais
que o rodeiam. Nenhum povo tem mais pavor aos terremotos que o peruano; e no Peru as crianças ao nascerem
tem o berço embalado pelas vibrações da terra.
Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra. A seca não o apavora. É um complemento à sua vida tormentosa,
emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a, estóico. Apesar das dolorosas tradições que conhece através
de um sem numero de terríveis episódios, alimenta a todo o transe esperanças de uma resistência impossível.
Com os escassos recursos das próprias observações e das dos seus maiores, em que ensinamentos práticos
se misturam a extravagantes crendices, tem procurado estudar o mal, para o conhecer, suportar e suplantar.
Aparelha-se com singular serenidade para a luta. Dois ou três meses antes do solstício de verão, especa e
fortalece os muros dos açudes, ou limpa as cacimbas. Faz os roçados e arregoa as estreitas faixas de solo arável à
orla dos ribeirões. Está preparado para as plantações ligeiras à vinda das primeiras chuvas.
Procura em seguida desvendar o futuro. Volve o olhar para as alturas; atenta longamente nos quadrantes; e
perquire os traços mais fugitivos das paisagens.
Os sintomas do flagelo despontam-lhe, então, encadeados em série, sucedendo-se inflexíveis, como sinais
comemorativos de uma moléstia cíclica, da sezão assombradora da Terra. Passam as "chuvas do caju" em
outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e "pintam" as
caatingas, aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores marcescentes, cada vez mais
numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; e
abaixa-se vagarosamente o nível das cacimbas... Do mesmo passo nota que os dias, estuando logo ao alvorecer,
transcorrem abrasantes, à medida que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera absorve-lhe,
com avidez de esponja, o suor na fronte, enquanto a armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva, se
lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao descer das tardes, dia a dia
menores e sem crepúsculos, considera, entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes,
transvoando a outros climas.
É o prelúdio da sua desgraça.
Vê-o acentuar-se num crescendo, até dezembro.
Precautela-se: revista, apreensivo, as malhadas. Percorre os logradouros longos. Procura entre as chapadas
que se esterilizam várzeas mais benignas para onde tange os rebanhos. E espera, resignado, o dia 13 daquele mês
Porque, em tal data, usança avoenga lhe faculta sondar o futuro, interrogando a Providência.
E a experiência tradicional de Santa Luzia. No dia 12 ao anoitecer expõe ao relento, em linha, seis
pedrinhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de
janeiro a junho. Ao alvorecer de 13 observa-as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se
deliu, transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro; se a maioria ou
todas, é inevitável o inverno benfazejo.
Esta experiência é belíssima. Em que pese ao estigma supersticioso, tem base positiva, e é aceitável desde
que se considera que dela se colhe a maior ou menor dosagem de vapor d'água nos ares, e, dedutivamente,
maiores ou menores probabilidades de depressões barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas.
Entretanto, embora tradicional, esta prova deixa ainda vacilante o sertanejo. Nem sempre desanima, ante os
seus piores vaticínios. Aguarda, paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos.
Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e no dia de S. José, 19 de março, procura novo augúrio, o
último.
Aquele dia é para ele o índice dos meses subseqüentes. Retrata-lhe, abreviadas em doze horas, todas as
alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno: se, ao contrário, o Sol atravessa
abrasadoramente o firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças.
A seca é inevitável.
Insulamento no deserto
Então se transfigura. Não é mais o indolente incorrigível ou o impulsivo violento, vivendo às disparadas
pelos arrastadores. Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e tenaz, com a placabilidade superior dos
fortes, encara de fito a fatalidade incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas,
tragédias espantosas. Não há revivê-las ou episodiá-las. Surgem de uma luta que ninguém descreve — a
insurreição da terra contra o homem. A princípio este reza, olhos postos na altura. O seu primeiro amparo é a fé
religiosa. Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras do Divino ruflando, lá
se vão, descampados em fora, famílias inteiras — não já os fortes e sadios senão os próprios velhos combalidos e
enfermos claudicantes, carregando aos ombros e à cabeça as pedras dos caminhos, mudando os santos de uns
para outros lugares. Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos, por onde passam as lentas procissões
propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes as velas dos penitentes...
Mas os céus persistem sinistramente claros; o Sol fulmina a Terra; progride o espasmo assombrados da seca. O
matuto considera a prole apavorada; contempla entristecido os bois sucumbidos, que se agrupam sobre as
fundagens das ipueiras, ou, ao longe, em grupos erradios e lentos, pescoços dobrados, acaroados com o chão, em
mugidos prantivos “farejando a água"; — e sem que se lhe amorteça a crença, sem duvidar da Providência que o
esmaga, murmurando às mesmas horas as preces costumeiras, apresta-se ao sacrifício. Arremete de alvião a
enxada com a terra, buscando nos estratos inferiores a água que fugiu da superfície. Atinge-os às vezes; outras,
após enormes fadigas, esbarra em uma lajem que lhe anula todo o esforço despendido; e outras vezes, o que é
mais corrente, depois de desvendar tênue lençol líquido subterrâneo, o vê desaparecer um, dois dias passados,
evaporando-se, ou sugado pelo solo. Acompanha-o tenazmente, reprofundando a mina, em cata do tesouro
fugitivo. Volve, por fim, exausto, à beira da própria cova que abriu, feito um desenterrado. Mas como
frugalidade rara lhe permite passar os dias com alguns manelos de paçoca, não se lhe afrouxa, tão de pronto, o
ânimo.
Ali está, em torno, a caatinga, o seu celeiro agreste. Esquadrinha-o. Talha em pedaços os mandacarus que
desalteram, ou as ramas verdoengas dos juazeiros que alimentam os magros bois famintos; derruba os estipites
dos ouricuris e rala-os, amassa-os, cozinha-os, fazendo um pão sinistro, o "bró", que incha os ventres num
enfarte ilusório, empanzinando o faminto; atesta os jiraus de coquilhos; arranca as raízes túmidas dos
umbuzeiros, que lhe dessedentam os filhos, reservando para si o sumo adstringente dos cladódios do xiquexique,
que enrouquece ou extinguem a voz de quem o bebe, e demasia-se em trabalhos, apelando infatigável para todos
os recursos — forte e carinhoso — defendendo-se e estendendo à prole abatida e aos rebanhos confiados a
energia sobre-humana.
Baldam-se-lhe, porém, os esforços.
A natureza não o combate apenas com o deserto. Povoa-a, contrastando com a fuga das seriemas, que
emigram para outros "tabuleiros", e jandaias, que fogem para o litoral remoto, uma fauna cruel. Miríades de
morcegos agravam a "magrém", abatendo-se sobre o gado, dizimando-o. Chocalham as cascavéis, inúmeras,
tanto mais numerosas quanto mais ardente o estio, entre as macegas recrestadas.
À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra, que lhe rouba os bezerros e os novilhos, vem beirar a sua lancharia
pobre.
É mais um inimigo a suplantar.
Afugenta-a e espanta-a, precipitando-se com um tição aceso no terreiro deserto. E se ela não recua,
assalta-a. Mas não a tiro, porque sabe que, desviada a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a onça, "vindo em cima
da fumaça", é invencível.
O pugilato é mais comovente. O atleta enfraquecido, tendo à mão esquerda a forquilha e à direita a faca,
irrita e desafia a fera, provoca-lhe o bote e apara-a no ar, trespassando-a de um golpe.
Nem sempre, porém, pode aventurar-se à façanha arriscada. Uma moléstia extravagante completa a sua
desdita — a hemeralopia. Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas reações da luz; nasce dos dias claros e
quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do
olhar. Mas o Sol se esconde no poente a vítima nada mais vê. Está cega. A noite afoga-se de súbito, antes de
envolver a Terra. E na manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro lampejo do levante,
para se apagar, de novo, à tarde, com intermitência dolorosa.
Renasce-lhe com ela a energia. Ainda se não considera vencido. Restam-lhe, para desalterar e sustentar os
filhos, os talos tenros, os mangarás das bromélias selvagens. Ilude-os com essas iguarias bárbaras.
Segue, a pé agora, porque se Ihe parte o coração só de olhar para o cavalo, para os logradouros. Contempla
ali a ruína da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como, caídos sob as árvores mortas, mal soerguendo o
arcabouço murcho sobre as pernas secas, marchando vagarosamente, cambaleantes; bois mortos há dias e
intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a bicadas as suas peles esturradas; bois jururus,
em roda da clareira de chão entorroado onde foi a aguada predileta; e, o que mais Ihe dói, os que ainda não de
todo exaustos o procuram, e o circundam, confiantes, urrando em longo apelo triste que parece um choro.
E nem um cereus avulta mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas verdes dos juás...
Trançam-se, porém, ao lado, impenetráveis renques de macambiras. É ainda um recurso. Incendeia-os,
batendo o isqueiro nas acendalhas das folhas ressequidas para os despir, em combustão rápida, dos espinhos. E
quando os rolos de fumo se enovelam e se diluem no ar puríssimo, vêem-se, correndo de todos os lados, em
tropel moroso de estropeados, os magros bois famintos, em busca do último repasto.
Por fim tudo se esgota e a situação não muda. Não há probabilidade sequer de chuvas. A casca das
marizeiras não transuda, prenunciando-as. O nordeste persiste intenso, rolando, pelas chapadas, zunindo em
prolongações uivadas na galhada estrepitante das caatingas e o Sol alastra, reverberando no firmamento claro, os
incêndios inextinguíveis da canícula. O sertanejo, assoberbado de reveses, dobra-se afinal.
Passa certo dia, a sua porta, a primeira turma de "retirantes". Vê-a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda,
desaparecendo adiante numa nuvem de poeira, na curva do caminho... No outro dia, outra. E outras. É o sertão
que se esvazia.
Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho em fora, debruando de ossadas
as veredas, e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares
onde o não mate o elemento primordial da vida.
Atinge-os. Salva-se.
Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o saudade do sertão. Remigra. E torna feliz,
revigorado, cantando; esquecido de infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdidiça e
instável, os mesmos dias longos de transes e provações demoradas.
Religião mestiça
Insulado deste modo no país, que o não conhece, em luta aberta com o meio, que lhe parece haver
estampado na organização e no temperamento a sua rudeza extraordinária, nômade ou mal fixo à terra, o
sertanejo não tem, por bem dizer, ainda capacidade orgânica para se afeiçoar a situação mais alta.
O círculo estreito da atividade remorou-lhe o aperfeiçoamento psíquico. Está na fase religiosa de um
monoteísmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do índio e do
africano. E o homem primitivo, audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crédulo, deixando-se facilmente
arrebatar pelas superstições mais absurdas. Uma análise destas revelaria a fusão de estádios emocionais distintos.
A sua religião é como ele — mestiça.
Resumo dos caracteres físicos e fisiológicos das raças de que surge, sumaria-lhes identicamente as
qualidades morais. E um índice da vida de três povos. E as suas crenças singulares traduzem essa aproximação
violenta de tendências distintas. E desnecessário descrevê-las. As lendas arrepiadoras do caapora travesso e
maldoso, atravessando célere, montado em caititu arisco, as chapadas desertas, nas noites misteriosas de luares
claros; os sacis diabólicos, de barrete vermelho à cabeça, assaltando o viandante retardatário, nas noites aziagas
das sextas-feiras, de parceria com os lobisomens e mulas-sem-cabeça notívagos; todos os mal-assombramentos,
todas as tentações do maldito ou do diabo — este trágico emissário dos rancores celestes em comissão na Terra;
as rezas dirigidas a S. Campeiro, canonizado in partibus, ao qual se acendem velas pelos campos, para que
favoreça a descoberta de objetos perdidos; as benzeduras cabalísticas para curar os animais, para 'amassar" e
"vender" sezões; todas as visualidades, todas aparições fantásticas, todas as profecias esdrúxulas de messias
insanos; e as romarias piedosas; e as missões; e as penitências.... todas as manifestações complexas de
religiosidade indefinida são explicáveis.
Fatores históricos da religião mestiça
Não seria difícil caracterizá-las como uma mestiçagem de crenças. Ali estão, francos, o antropismo do
selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional da raça superior, na época do
descobrimento e da colonização.
Este último é um caso notável de atavismo, na Historia.
Considerando as agitações religiosas do sertão e os evangelizadores e messias singulares, que,
intermitentemente, o atravessam, ascetas mortificados de flagícios, encalçados sempre pelos sequazes
numerosos, que fanatizam, que arrastam, que dominam, que endoidecem — espontaneamente recordamos a fase
mais crítica da alma portuguesa, a partir do final do século 16, quando, depois de haver por momentos
centralizado a História, o mais interessante dos povos caiu, de súbito, em decomposição rápida, mal disfarçada
pela corte oriental de d. Manuel.
O povoamento do Brasil fez-se, intenso, com d. João III, precisamente no fastígio de completo desequilíbrio
moral, quando "todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo peninsular".
Uma grande herança de abusões extravagantes, extinta na orla marítima pelo influxo modificador de outras
crenças e de outras raças, no sertão ficou intacta. Trouxeram-na as gentes impressionáveis, que afluíram para a
nossa terra, depois de desfeito no Oriente o sonho miraculoso da Índia. Vinham cheias daquele misticismo feroz,
em que o fervor religioso reverberava à cadência forte das fogueiras inquisitoriais, lavrando intensas na
península. Eram parcelas do mesmo povo que em Lisboa, sob a obsessão dolorosa dos milagres e assaltado de
súbitas alucinações, via, sobre o paço dos reis, ataúdes agoureiros, línguas de flamas misteriosas, catervas de
mouros de albornozes brancos, passando processionalmente; combates de paladinos nas alturas... E da mesma
gente que após Alcácer-Quibir, em plena "caquexia nacional", segundo o dizer vigoroso de Oliveira Martins,
procurava, ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula superior das esperanças messiânicas.
De feito, considerando as desordens sertanejas, hoje, e os messias insanos que as provocam,
irresistivelmente nos assaltam, empolgantes' as figuras dos profetas peninsulares de outrora—o rei de
Penamacor, o rei da Ericeira, errantes pelas faldas das serras, devotados ao martírio, arrebatando na mesma
idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio, as multidões crendeiras.
Esta justaposição histórica calca-se sobre três séculos. Mas é exata, completa, sem dobras. Imóvel o tempo
sobre a rústica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral da evolução humana, ela respira ainda na
mesma atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doidos, o Miguelinho ou o Bandarra. Nem lhe falta,
para completar o símile, o misticismo político do sebastianismo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de
modo singularmente impressionador, nos sertões do Norte.
Mas não antecipemos.
Caráter variável da religiosidade
sertaneja
Estes estigmas atávicos tiveram entre nós, favoráveis, as reações do meio, determinando psicologia
especial.
O homem dos sertões — pelo que esboçamos — mais do que qualquer outro, está em função imediata da
terra. É uma variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar resulta,
mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade. Em
paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela sobrenatural não seria tão imperiosa. Ali, porém, as
tendências pessoais como que se acolchetam às vicissitudes externas, e deste entrelaçamento resulta, copiando o
contraste que observamos entre a exaltação impulsiva e a apatia enervadora da atividade, a indiferença fatalista
pelo futuro e a exaltação religiosa. Os ensinamentos dos missionários não poderiam exercitar-se estremes das
tendências gerais da sua época. Por isto, como um palimpsesto, a consciência imperfeita dos matutos revela nas
quadras agitadas, rompendo dentre os ideais belíssimos do catolicismo incompreendido, todos os estigmas de
estádio inferior.
É que, mesmo em períodos normais, a sua religião é indefinida e vária. Da mesma forma que os negros
Haúças, adaptando à liturgia todo o ritual iorubano, realizam o fato anômalo, mas vulgar mesmo na capital da
Bahia, de seguirem para as solenidades da Igreja por ordem dos fetiches, os sertanejos, herdeiros infelizes de
vícios seculares, saem das missas consagradas para os ágapes selvagens dos candomblés africanos ou poracês do
tupi. Não espanta que patenteiem, na religiosidade indefinida, antinomias surpreendentes.
Quem vê a família sertaneja, ao cair da noite, ante o oratório tosco ou registro paupérrimo, à meia luz das
candeias de azeite, orando pelas almas dos mortos queridos, ou procurando alentos à vida tormentosa,
encanta-se.
O culto dos mortos é impressionador. Nos lugares remotos, longe dos povoados, inumam-nos à beira das
estradas, para que não fiquem de todo em abandono, para que os rodeiem sempre as preces dos viandantes, para
que nos ângulos da cruz deponham estes, sempre, uma flor, um ramo, uma recordação fugaz mas renovada
sempre. E o vaqueiro, que segue arrebatadamente, estaca, prestes, o cavalo, ante o humilde monumento — uma
cruz sobre pedras arrumadas — e, a cabeça descoberta, passa vagaroso, rezando pela salvação de quem ele nunca
viu talvez, talvez de um inimigo.
A terra é o exílio insuportável, o morto um bem -aventurado sempre.
O falecimento de uma criança é um dia de festa. Ressoam as violas na cabana dos pobres pais, jubilosos
entre as lágrimas; referve o samba turbulento; vibram nos ares, fortes, as coplas dos desafios; enquanto, a uma
banda, entre duas velas de carnaúba, coroado de flores, o anjinho exposto espelha, no último sorriso paralisado, a
felicidade suprema da volta para os céus, para a felicidade eterna — que é a preocupação dominadora daquelas
almas ingênuas e primitivas.
No entanto há traços repulsivos no quadro desta religiosidade de aspectos tão interessantes, aberrações
brutais, que a derrancam ou maculam.
A "Pedra Bonita"
As agitações sertanejas, do Maranhão à Bahia, não tiveram ainda um historiador. Não as esboçaremos
sequer. Tomemos um fato, entre muitos, ao acaso.
No termo de Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações graníticas da costa se alteiam, em
formas caprichosas, na serra Talhada, dominando, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo
anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquele, como púlpito
gigantesco, ergue-se um bloco solitário — a Pedra Bonita.
Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades religiosas dos Achantis. Um
mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou toda a população dos sítios convizinhos e, engrimpando-se à
pedra, anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado do rei d. Sebastião. Quebrada a pedra, a que
subira, não a pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ela em
holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexorável, a humanidade
ingrata, mas cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para o desencanto.
Passou pelo sertão um frêmito de necrose...
O transviado encontrara meio propício ao contágio da sua insânia. Em torno da ara monstruosa
comprimiam-se as mães erguendo os filhos pequeninos e lutavam, procurando-lhes a primazia no sacrifício... O
sangue espadanava sobre a rocha jorrando, acumulando-se em torno; e, afirmam os jornais do tempo, em copia
tal que, depois de desfeita aquela lúgubre farsa, era impossível a permanência no lugar infeccionado.
Por outro lado, fatos igualmente impressionadores contrabatem tais aberrações. A alma de um matuto é
inerte ante as influências que a agitam. De acordo com estas pode ir da extrema brutalidade ao máximo
devotamento.
Vimo-la, neste instante, pervertida pelo fanatismo. Vejamo-la transfigurada pela fé.
Monte Santo
Monte Santo é um lugar lendário.
Quando, no século 17, as descobertas das minas determinaram a atração do interior sobre o litoral, os
aventureiros que ao norte investiam com o sertão, demandando as serras da Jacobina, arrebatados pela miragem
das minas de prata e rastreando o itinerário enigmático de Belchior Dias, ali estacionavam longo tempo. A serra
solitária — a Piquaraçá dos roteiros caprichosos — , dominando os horizontes, norteava-lhes a marcha
vacilante.
Além disto, atraía-os por si mesma, irresistivelmente.
É que em um de seus flancos, escritas em caligrafia ciclópica com grandes pedras arrumadas, apareciam
letras singulares — um A, um L e um S — ladeadas por uma cruz, de modo a fazerem crer que estava ali e não
avante, para o ocidente ou para o sul, o el-dorado apetecido.
Esquadrinharam-na, porém, debalde os êmulos do Muribeca astuto, seguindo, afinal, para outros rumos, com as
suas tropas de potiguaras mansos e forasteiros armados de biscainhos . . .
A serra desapareceu outra vez entre as chapadas que domina ...
No fim do século passado, porém, descobriu-a um missionário — Apolônio de Todi. Vindo da missão de
Maçacará, o maior apóstolo do Norte impressionou-se tanto com o aspecto da montanha, "achando-a semelhante
ao calvário de Jerusalém", que planeou logo a ereção de uma capela. Ia ser a primeira do mais tosco e do mais
imponente templo da fé religiosa.
Descreve o sacerdote, longamente, o começo e o curso dos trabalhos e o auxílio franco que lhe deram os
povoadores dos lugares próximos. Pinta a última solenidade, procissão majestosa e lenta ascendendo a
montanha, entre as raladas de tufão violento que se alteou das planícies apagando as tochas; e, por fim, o sermão
terminal da penitencia, exortando o povo a "que nos dias santos viesse visitar os santos lugares, já que vivia em
tão grande desamparo das coisas espirituais".
"E aqui, termina , sem pensar em mais nada disse que daí em diante não chamariam mais serra de
Piquaraçá, mas sim Monte Santo."
E fez-se o templo prodigioso, monumento erguido pela natureza e pela fé, mais alto que as mais altas
catedrais da Terra.
A população sertaneja completou a empresa do missionário.
Hoje quem sobe a extensa via-sacra de três quilômetros de comprimento, em que se origem, a espaços, 25
capelas de alvenaria, encerrando painéis dos "passos", avalia a constância e a tenacidade do esforço despendido.
Amparada por muros capeados; calçada em certos trechos; tendo, noutros, como leito, a rocha viva talhada
em degraus, ou rampeada, aquela estrada branca, de quartzolito, onde ressoam, há cem anos, as litanias das
procissões da quaresma e têm passado legiões de penitentes, é um prodígio de engenharia rude e audaciosa.
Começa investindo com a montanha, segundo a normal de máximo declive, em rampa de cerca de vinte graus.
Na quarta ou quinta capelinha inflete à esquerda e progride menos íngreme. Adiante, a partir da capela maior —
ermida interessantíssima ereta num ressalto da pedra a cavaleiro do abismo — , volta à direita, diminuindo de
declive até a linha de cumeadas. Segue por esta segundo uma selada breve. Depois se alteia, de improviso,
retilínea, em ladeira forte, arremetendo com o vértice pontiagudo do monte, até o Calvário no alto !
A medida que ascende, ofegante, estacionando nos “passos”, o observador depara perspectivas que seguem
num crescendo de grandezas soberanas: primeiro, os planos das chapadas e tabuleiros, esbatidos embaixo em
planícies vastas; depois, as serranias remotas, agrupadas, longe, em todos os quadrantes; e, atingindo o alto, o
olhar a cavaleiro das serras — o espaço indefinido, a emoção estranha de altura imensa, realçada pelo aspecto da
pequena vila, embaixo, mal percebida na confusão caótica dos telhados.
E quando, pela Semana Santa, convergem ali as famílias da redondeza e passam os crentes pelos mesmos
flancos em que vaguearam outrora, inquietos de ambição, os aventureiros ambiciosos, vê-se que Apolônio de
Todi, mais hábil que o Muribeca, decifrou o segredo das grandes letras de pedra descobrindo o el-dorado
maravilhoso, a mina opulentíssima oculta no deserto...
As missões atuais
Infelizmente o apóstolo não teve continuadores. Salvo raríssimas exceções, o missionário moderno é um
agente prejudicialíssimo no agravar todos os desequilíbrios do estado emocional dos tabaréus. Sem a altitude dos
que o antecederam, a sua ação é negativa: destrói, apaga e perverte o que incutiram de bom naqueles espíritos
ingênuos os ensinamentos dos primeiros evangelizadores, dos quais não tem o talento e não tem a arte
surpreendente da transfiguração das almas. Segue vulgarmente processo inverso do daqueles: não aconselha e
consola, aterra e amaldiçoa; não ora, esbraveja. E brutal e traiçoeiro. Surge das dobras do hábito escuro como da
sombra de uma emboscada armada à credulidade incondicional dos que o escutam. Sobe ao púlpito das igrejas
do sertão e não alevanta a imagem arrebatadora dos céus; descreve o inferno truculento e flamívomo, numa
algaravia de frases rebarbativas a que completam gestos de maluco e esgares de truão.
É ridículo, e é medonho. Tem o privilégio estranho das bufonerias melodramáticas. As parvoíces saem-lhe
da boca trágicas.
Não traça ante os matutos simples a feição honesta e superior da vida — não a conhece; mas brama em
todos os tons contra o pecado; esboça grosseiros quadros de torturas; e espalha sobre o auditório fulminado
avalanchas de penitencias, extravagando largo tempo, em palavrear interminável, fungando as pitadas habituais e
engendrando catástrofes, abrindo alternativamente a caixa de rapé e a boceta de Pandora...
E alucina o sertanejo crédulo; alucina-o, deprime-o, perverte-o.
Os "Serenos"
Busquemos um exemplo único, o último.
Em 1850 os sertões de Cariri foram alvorotados pelas depredações dos Serenos, exercitando o roubo em
larga escala.
Aquela denominação indicava "companhias de penitentes" que à noite, nas encruzilhadas ermas, em torno
das cruzes misteriosas, se agrupavam, adoidadamente, numa agitação macabra de flagelantes, impondo-se o
cilício dos espinhos, das urtigas e outros duros tratos de penitência. Ora, aqueles agitados saíram certo dia,
repentinamente, da matriz do Crato, dispersos, em desalinho — mulheres em prantos, homens apreensivos,
crianças trementes — em procura dos flagícios duramente impostos. Dentro da igreja, missionários recém-vindos
haviam profetizado próximo fim do mundo. Deus o dissera — em mau português, em mau italiano e em mau
latim — estava farto dos desmandos da Terra...
E os derivados foram pelos sertões em fora, esmolando, chorando, rezando, numa mandria deprimente, e como a
caridade pública não os podia satisfazer a todos, acabaram — roubando.
Era fatal. Os instrutores do crime foram, afinal, infelicitar outros lugares e a justiça a custo reprimiu o
banditismo incipiente.
Capítulo IV
Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo
É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal
extraordinária — Antônio Conselheiro...
A imagem é corretíssima.
Da mesma forma que o geólogo, interpretando a inclinação e a orientação dos estratos truncados de antigas
formações, esboça o perfil de uma montanha extinta, o historiador só pode avaliar a altitude daquele homem, que
por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou. Isolado, ele se perde na turba dos
nevróticos vulgares. Pode ser incluído numa modalidade qualquer de psicose progressiva. Mas, posto em função
do meio, assombra. É uma diátese e é uma síntese. As fases singulares da sua existência não são, talvez, períodos
sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado dos aspectos predominantes de mal
social gravíssimo. Por isto o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência
superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a História como poderia ter ido para o hospício. Porque
ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais — vagos,
indecisos, mal percebidos quando dispersos na multidão, mas enérgicos e definidos, quando resumidos numa
individualidade.
Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas
das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se condensaram no seu misticismo
feroz e extravagante. Ele foi, simultaneamente, o elemento ativo e passivo da agitação de que surgiu. O
temperamento mais impressionável apenas fê-lo absorver as crenças ambientes, a princípio numa quase
passividade pela própria receptividade mórbida do espirito torturado de reveses, e elas refluíram, depois, mais
fortemente, sobre o próprio meio de onde haviam partido, partindo da sua consciência delirante.
É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências coletivas: a vida
resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade...
Acompanhar a primeira é seguir paralelamente e com mais rapidez a segunda: acompanhá-las juntas é
observar a mais completa mutualidade de influxos.
Considerando em torno, o falso apóstolo, que o próprio excesso de subjetivismo predispusera à revolta
contra a ordem natural, como que observou a fórmula do próprio delírio. Não era um incompreendido. A
multidão aclamava-o representante natural das suas aspirações mais altas. Não foi, por isto, além. Não deslizou
para a demência. No gravitar contínuo para o mínimo de uma curva, para o completo obscurecimento da razão, o
meio reagindo por sua vez amparou-o, corrigindo-o, fazendo-o estabelecer encadeamento nunca destruído nas
mais exageradas concepções, certa ordem no próprio desvario, coerência indestrutível em. todos os atos e
disciplina rara em todas as paixões, de sorte que ao atravessar, largos anos, nas práticas ascéticas, o sertão
alvorotado, tinha na atitude, na palavra e no gesto, a tranqüilidade, a altitude e a resignação soberana de um
apóstolo antigo.
Doente grave, só lhe pode ser aplicado o conceito da paranóia, de Tanzi e Riva.
Em seu desvio ideativo vibrou sempre, a bem dizer exclusiva, a nota étnica. Foi um documento raro de
atavismo.
A constituição mórbida levando-o a interpretar caprichosamente as condições objetivas, e alterando-lhe as
relações com o mundo exterior, traduz-se fundamentalmente como uma regressão ao estádio mental dos tipos
ancestrais da espécie.
Um gnóstico bronco
Evitada a intrusão dispensável de um médico, um antropologista encontrá-lo-ia normal, marcando
logicamente certo nível da mentalidade humana, recuando no tempo, fixando uma fase remota da evolução. O
que o primeiro caracterizaria como caso franco de delírio sistematizado, na fase persecutória ou de grandezas, o
segundo indicaria como fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização — um
anacronismo palmar, a revivescência de atributos psíquicos remotíssimos. Os traços mais típicos do seu
misticismo estranho, mas naturalíssimo para nós, já foram, dentro de nossa era, aspectos religiosos vulgares.
Deixando mesmo de lado o influxo das raças inferiores, vimo-los há pouco, de relance, em período angustioso da
vida portuguesa.
Poderíamos apontá-los em cenário mais amplo. Bastava que volvêssemos aos primeiros dias da Igreja,
quando o gnosticismo universal se erigia como transição obrigatória entre o paganismo e o cristianismo, na
última fase do mundo romano em que, precedendo o assalto dos bárbaros, a literatura latina do ocidente
declinou, de súbito, mal substituída pelos sofistas e letrados tacanhos de Bizâncio.
Com efeito, os montanistas da Frígia, os adamitas infames, os ofiolatras, os maniqueus bifrontes entre o
ideal cristão emergente e o budismo antigo, os discípulos de Markos, os encratitas abstinentes e macerados de
flagícios, todas as seitas em que se fracionava a religião nascente, com os seus doutores histéricos e exegeses
hiperbólicas, forneceriam hoje casos repugnantes de insânia. E foram normais. Acolchetaram-se bem a todas as
tendências da época em que as extravagâncias de Alexandre Abnótico abalavam a Roma de Marco Aurélio, com
as suas procissões fantásticas, os seus mistérios e os seus sacrifícios tremendos de leões lançados vivos ao
Danúbio, com solenidades imponentes presididas pelo imperador filósofo...
A história repete-se.
Antônio Conselheiro foi um gnóstico bronco.
Veremos mais longe a exação do símile.
Grande homem pelo avesso
Paranóico indiferente, este dizer, talvez, mesmo não lhe possa ser ajustado, inteiro. A regressão ideativa que
patenteou, caracterizando-lhe o temperamento vesânico, é, certo, um caso notável de degenerescência intelectual,
mas não o isolou — incompreendido, desequilibrado, retrógrado, rebelde — no meio em que agiu.
Ao contrário, este fortaleceu-o. Era o profeta, o emissário das alturas, transfigurado por ilapso estupendo,
mas adstrito a todas as contingências humanas, passível do sofrimento e da morte, e tendo uma função exclusiva:
apontar aos pecadores o caminho da salvação. Satisfez-se sempre com este papel de delegado dos céus. Não foi
além. Era um servo jungido à tarefa dura; e lá se foi, caminho dos sertões bravios, largo tempo, arrastando a
carcaça claudicante, arrebatado por aquela idéia fixa, mas de algum modo lúcido em todos os atos,
impressionando pela firmeza nunca abalada e seguindo para um objetivo fixo com finalidade irresistível.
A sua frágil consciência oscilava em torno dessa posição média, expressa pela linha ideal que Maudsley
lamenta não se poder traçar entre o bom senso e a insânia.
Parou aí indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se confundem
facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e se acotovelam gênios e degenerados. Não a
transpôs. Recalcado pela disciplina vigorosa de uma sociedade culta, a sua nevrose explodiria na revolta, o seu
misticismo comprimido esmagaria a razão. Ali, vibrando a primeira uníssona com o sentimento ambiente,
difundido o segundo pelas almas todas que em torno se congregavam, se normalizaram.
Representante natural do meio em que nasceu
O fator sociológico, que cultivara a psicose mística do indivíduo, limitou-a sem a comprimir, numa
harmonia salvadora. De sorte que o espírito predisposto para a rebeldia franca contra a ordem natural cedeu à
única reação de que era passível. Cristalizou num ambiente propício de erros e superstições comuns.
Antecedentes de família. Os Maciéis
A sua biografia compendia e resume a existência da sociedade sertaneja. Esclarece o conceito etiológico da
doença que o vitimou. Delineemo-la de passagem.
"Os Maciéis, que formavam, nos sertões entre Quixeramobim e Tamboril, uma família numerosa de homens
válidos, ágeis, inteligentes e bravos, vivendo de vaqueirice e pequena criação, vieram, pela lei fatal dos tempos, a
fazer parte dos grandes fastos criminais do Ceará, em uma guerra de família. Seus êmulos foram os Araújos, que
formavam uma família rica, filiada a outras das mais antigas do norte da província.
Viviam na mesma região, tendo como sede principal a povoação de Boa Viagem, que demora cerca de dez
léguas de Quixeramobim.
Foi uma das lutas mais sangrentas dos sertões do Ceará, a que se travou entre estes dois grupos de homens,
desiguais na fortuna e posição oficial, ambos embravecidos na prática das violências, e numerosos."
Assim começa o narrador consciencioso breve notícia sobre a genealogia de Antônio Conselheiro.
Os fatos criminosos a que se refere são um episódio apenas entre as razias, quase permanentes, da vida
turbulenta dos sertões. Copiam mil outros de que ressaltam, evidentes, a prepotência sem freios dos mandões de
aldeia e a exploração pecaminosa por eles exercida sobre a bravura instintiva do sertanejo. Luta de famílias — é
uma variante apenas de tantas outras, que ali surgem, intermináveis, comprometendo as próprias descendências
que esposam as desavenças dos avós, criando uma quase predisposição fisiológica e tornando hereditários os
rancores e as vinganças.
Lutas entre Maciéis e Araújos
Surgiu de incidente mínimo: pretensos roubos cometidos pelos Maciéis em propriedade de família
numerosa, a dos Araújos.
Tudo indicava serem aqueles vítimas de acusação descabida. Eram "homens vigorosos, simpáticos, bem
apessoados. verdadeiros e serviçais" gozando em toda a redondeza de reputação invejável.
Araújo da Costa e um seu parente, Silvestre Rodrigues Veras, não viam, porém, com bons olhos, a família
pobre que lhes balanceava a influência, sem a justificativa de vastos latifúndios e boiadas grandes. Criadores
opulentos, senhores de baraço e cutelo, vezados a fazer justiça por si mesmos, concertaram em dar exemplar
castigo aos delinqüentes. E como estes eram bravos até à temeridade, chamaram a postos a guarda pretoriana dos
capangas.
Assim apercebidos abalaram na expedição criminosa para Quixeramobim.
Mas volveram logo depois, contra a expectativa geral, em derrota. Os Maciéis, reunida toda a parentela,
rapazes desempenados e temeros, haviam-se afrontado com a malta assalariada, repelindo-a vigorosamente,
suplantando-a, espavorindo-a.
O fato passou em 1333.
Batidos, mal sofreando o desapontamento e a cólera, os potentados, cuja imbecilidade triunfante passara por
tão duro trato, apelaram para recursos mais enérgicos. Não faltavam então, como não faltam hoje, facínoras de
fama que lhes alugassem a coragem. Conseguiram dois, dos melhores: José Joaquim de Meneses,
pernambucano, sanhudo, célebre pela rivalidade sanguinolenta com os Mourões famosos; e um cangaceiro
terrível, Vicente Lopes, de Aracatiaçu. Reunida a matula turbulenta, a que se ligaram os filhos e genros de
Silvestre, seguiu, de pronto, para a empreitada criminosa.
Ao acercarem-se, porém, da vivenda dos Maciéis, os sicários — embora fossem em maior número —
temeram-lhes a resistência. Propuseram-lhes que se entregassem, garantindo-lhes, sob palavra, a vida. Aqueles,
certos de não poderem resistir por muito tempo, aquiesceram. Renderam-se. A palavra de honra dos bandidos
teve o valor que poderia ter. Quando seguiam debaixo de escolta e algemados, para a cadeia de Sobral, logo no
primeiro dia da viagem foram os presos trucidados. Morreram nesta ocasião, entre outros, o chefe da família,
Antônio Maciel, e um avô de Antônio Conselheiro .
Mas um tio deste, Miguel Carlos, logrou escapar. Manietado além disto com as pernas amarradas por baixo
da barriga do cavalo que montava, a sua fuga é inexplicável. Afirma-a, contudo, a sisudez de cronista sincero.
Ora, os Araújos tinham deixado fugir o seu pior adversário. Perseguiram-no. Bem armados, bem montados,
encalçaram-no, prestes, em monteria bárbara, como se fossem sobre rastros de suçuarana bravia. O foragido,
porém, emérito batedor de matas, seguido na fuga por uma irmã, iludiu por algum tempo a escolta perseguidora
chefiada por Pedro Martins Veras; e no sítio da Passagem, perto de Quixeramobim, ocultou-se exausto, numa
choupana abandonada, coberta de ramos de oiticica.
Ali chegaram, em breve, rastreando-o, os perseguidores. Eram nove horas da manhã. Houve então uma
refrega desigual e tremenda. O temerário sertanejo, embora estropiado e doente de um pé que luxara, afrontou-se
com a horda assaltante, estendendo logo em terra a um certo Teotônio, desordeiro façanhudo, que se avantajara
aos demais. Este caiu transversalmente à soleira da porta, impedindo-a que se fechasse. A irmã de Miguel
Carlos, quando procurava arrastá-lo dali, caiu atravessada por uma bala. Alvejara-a o próprio Pedro Veras, que
pagou logo a façanha, levando à queima-roupa uma carga de chumbo. Morto o cabecilha, os agressores recuaram
por momentos, o suficiente para que o assaltado trancasse rapidamente a porta.
Isto feito, o casebre fez-se um reduto. Pelas frinchas das paredes estourava de minuto em minuto um tiro de
espingarda. Os bandidos não ousaram investi-lo; mas foram de cobardia feroz. Atearam fogo à cobertura de
folhas.
O efeito foi pronto. Mal podendo respirar no abrigo em chamas, Miguel Carlos resolve abandoná-lo.
Derrama toda a água de um pote na direção do fundo da choupana, apagando momentaneamente as brasas, e,
saltando por sobre o cadáver da irmã, arroja-se, de clavina sobraçada e parnaíba em punho, contra o círculo
assaltante. Rompe-o e afunda na caatinga. . .
Tempos depois um dos Araújos contratou casamento com a filha de rico criador de Tapaiara; e no dia das
núpcias, já perto da igreja, tombou varado por uma bala, entre o alarma dos convivas e o desespero da noiva
desditosa.
Velava, inextinguivelmente, a vingança do sertanejo...
Este tinha, agora, uma sócia no rancor justificado e fundo, outra irmã, Helena Maciel, a "Nêmesis da
família", conforme o dizer do cronista referido. A sua vida transcorria em lances perigosos, muitos dos quais
desconhecidos senão fabulados pela imaginação fecunda dos matutos. O certo, porém, é que, desfazendo a
urdidura de todas as tocaias, não raro lhe caiu sob a faca o espião incauto que o rastreava, em Quixeramobim.
Diz a narrativa a que acima nos reportamos:
"Parece que Miguel Carlos tinha ali protetores que o garantiam. O que é certo é que, não obstante a sorte
tivera aquele seu apaniguado, costumava estar na vila.
Uma noite, estando à porta da loja de Manuel Procópio de Freitas, viu entrar um indivíduo, que procurava
comprar aguardente. Dando-o como espião, falou em matá-lo ali mesmo, mas, sendo detido pelo dono da casa,
tratou de acompanhar o suspeito, e o matou, à faca, ao sair da vila, no riacho da Palha.
Uma manhã, finalmente, saiu da casa de Antônio Caetano de Oliveira, casado com uma sua parenta, e foi
banhar-se no rio, que corre por trás dessa casa, situada quase no extremo da praça principal da vila, junto a
garganta que conduz a pequena praça Cotovelo. Nos fundos da casa indicada era então a embocadura do riacho
da Palha, que em forma quase circular contornava aquela praça, e de inverno constituía uma cinta lindíssima de
águas represadas. Miguel Carlos estava já despido, como muitos companheiros, quando surgiu um grupo de
inimigos, que o esperavam acocorados por entre o denso "mata-pasto". Estranhos e parentes de Miguel Carlos,
tomando as roupas depostas na areia, e vestindo-as ao mesmo tempo que corriam, puseram-se em fuga. Em
ceroulas somente, e com a sua faca em punho, ele correu também na direção dos fundos de uma casa, que quase
enfrenta com a embocadura do riacho da Palha; casa na qual morava em 1845 Manuel Francisco da Costa.
Miguel Carlos chegou a abrir o portão do quintal, de varas, da casa indicada; mas, quando quis fechá-lo, foi
prostrado por um tiro, partido do séquito que o perseguia. Outros dizem que isto se dera quando ele passava pelo
buraco da cerca de uma vazante que havia por ali. Agonizava, caído, com a sua faca na mão, quando Manuel de
Araújo, chefe do bando, irmão do noivo outrora assassinado, pegando-o por uma perna, lhe cravou uma faca.
Moribundo, Miguel Carlos lhe respondeu no mesmo instante com outra facada na carótida, morrendo ambos
instantaneamente, este por baixo daquele ! Helena Maciel, correndo em fúria ao lugar do conflito, pisou a pés a
cara do matador de seu irmão, dizendo-se satisfeita da perda dele pelo fim que dera ao seu inimigo !"
Pretendem que os sicários tinham passado a noite em casa de Inácio Mendes Guerreiro, da família de
Araújo, agente do correio da Vila. Vinham a título de prender os Maciéis; mas, só no propósito de matá-los.
Helena não se abateu com esta desgraça. Nêmesis da família imolou um inimigo aos manes do seu irmão.
Foi ela, como ousou confessar muitos anos depois, quem mandou espancar barbaramente a André Jacinto de
Souza Pimentel, moço de família importante da vila, aparentado com os Araújos, a quem atribuía os avisos que
estes recebiam em Boa Viagem, das vindas de Miguel Carlos. Desse espancamento resultou uma lesão cardíaca,
que fez morrer em transes horrorosos o infeliz, em verdade culpado dessa derradeira agressão dos Araújos.
O fato de ter sido o crime perpetrado por soldados do destacamento de linha, ao mando do alferes Francisco
Gregório Pinto, homem insolente, de baixa educação e origem, com quem Pimentel andava inimizado, fez
acreditar muito tempo que fora esse oficial mal reputado o autor do crime.
Helena deixara-se ficar queda e silenciosa.
Inúmeras vítimas anônimas fez esta lota sertaneja, que dizimava os sequazes das duas famílias, sendo o
último dos Maciéis — Antônio Maciel, irmão de Miguel Carlos, morto em Boa Viagem. Ficou célebre muito
tempo a valentia de Miguel Carlos e era por ele e seus parentes a estima e respeito dos coevos, testemunhas da
energia dessa família, dentre a qual surgiram tantos homens de esforço, para uma luta com poderosos tais, como
os da Boa Viagem e Tamboril.
Uma vida bem auspiciada
Nada se sabe ao certo sobre o papel que coube a Vicente Mendes Maciel, pai de Antônio Vicente Mendes
Maciel ( o Conselheiro ), nesta luta deplorável. Os seus contemporâneos pintam-no como "homem irascível mas
de excelente caráter, meio visionário e desconfiado, mas de tanta capacidade que, sendo analfabeto, negociava
largamente em fazendas, trazendo tudo perfeitamente contado e medido de memória, sem mesmo ter escrita para
os devedores".
O filho, sob a disciplina de um pai de honradez proverbial e ríspido, teve educação que de algum modo o
isolou da turbulência da família. Indicam-no testemunhas de vista, ainda existentes, como adolescente tranqüilo e
tímido, sem o entusiasmo feliz dos que seguem as primeiras escalas da vida; retraído, avesso à troça, raro
deixando a casa de negócio do pai, em Quixeramobim, de todo entregue aos misteres de caixeiro consciencioso,
deixando passar e desaparecer vazia a quadra triunfal dos vinte anos. Todas as histórias, ou lendas entretecidas
de exageros, segundo o hábito dos narradores do sertão, em que eram muita vez protagonistas os seus próprios
parentes, eram-lhe entoadas em torno evidenciando-lhes sempre a coragem tradicional e rara. A sugestão das
narrativas, porém, tinha o corretivo enérgico da ríspida sisudez do velho Mendes Maciel e não abalava o animo
do rapaz. Talvez ficasse latente, pronta a se expandir em condições mais favoráveis. O certo é que falecendo
aquele em 1855, vinte anos depois dos trágicos sucessos que rememoramos, Antônio Maciel prosseguiu na
mesma vida corretíssima e calma.
Arrostando com a tarefa de velar por três irmãs solteiras revelou abnegação rara. Somente depois de as ter
casado procurou, por sua vez, um enlace que lhe foi nefasto.
Primeiros reveses
Data daí a sua existência dramática. A mulher foi a sobrecarga adicionada à tremenda tara hereditária, que
desequilibraria uma vida iniciada sob os melhores auspícios.
A partir de 1858 todos os seus atos denotam uma transformação de caráter. Perde os hábitos sedentários.
Incompatibilidades de gênio com a esposa ou, o que é mais verossímil, a péssima índole desta, tornam instável a
sua situação.
Em poucos anos vive em diversas vilas e povoados. Adota diversas profissões.
Nesta agitação, porém, percebe-se a luta de um caráter que se não deixa abater. Tendo ficado sem bens de
fortuna, Antônio Maciel, nesta fase preparatória de sua vida, a despeito das desordens do lar, ao chegar a
qualquer nova sede de residência procura logo um emprego, um meio qualquer honesto de subsistência. Em
1859, mudando-se para Sobral, emprega-se como caixeiro. Demora-se, porém, pouco ali. Segue para Campo
Grande, onde desempenha as funções modestas de escrivão do juiz de paz. Daí, sem grande demora, se desloca
para Ipu. Faz-se solicitador, ou requerente no forum.
Nota-se já em tudo isto um crescendo para profissões menos trabalhosas, exigindo cada vez menos a
constância do esforço; o contínuo despear-se da disciplina primitiva, a tendência acentuada para a atividade mais
irrequieta e mais estéril, o descambar para a vadiagem franca. Ia-se-lhe ao mesmo tempo, na desarmonia do lar, a
antiga serenidade.
Este período de vida mostra-o, todavia, aparelhado de sentimentos dignos. Ali estavam, em torno,
permanentes lutas partidárias abrindo-lhe carreira aventurosa, em que poderia entrar como tantos outros,
ligando-se aos condutícios de qualquer conquistador de urnas, para o que tinha o prestígio tradicional da família.
Evitou-as sempre. E na descensão contínua, percebe-se alguém que perde o terreno, mas lentamente, reagindo,
numa exaustão dolorosa.
A queda
De repente, surge-lhe revés violento. O plano inclinado daquela vida em declive termina, de golpe, em
queda formidável. Foge-lhe a mulher, em Ipu, raptada por um policial. Foi o desfecho. Fulminado de vergonha, o
infeliz procura o recesso dos sertões, paragens desconhecidas, onde lhe não saibam o nome; o abrigo da absoluta
obscuridade.
Desce para o sul do Ceará.
Ao passar em Paus Brancos, na estrada do Crato, fere com ímpeto de alucinado, à noite, um parente, que o
hospedara. Fazem-se breves inquirições policiais, tolhidas logo pela própria vítima reconhecendo a não
culpabilidade do agressor. Salva-se da prisão. Prossegue depois para o sul, à toa, na direção do Crato. E
desaparece...
Passam-se dez anos. O moço infeliz de Quixeramobim ficou de todo esquecido. Apenas uma ou outra vez
lhe recordavam o nome e o termo escandaloso da existência, em que era magna pars um Lovelace de coturno
reúno, um sargento de polícia.
Graças a este incidente, algo ridículo, ficara nas paragens natais breve resquício de sua lembrança.
Morrera por assim dizer.
Como se faz um monstro
... E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face
escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico
bastão em que se apóia o passo tardo dos peregrinos...
É desconhecida a sua existência durante tão largo período. Um velho caboclo, preso em Canudos nos últimos
dias da campanha, disse-me algo a respeito, mas vagamente, sem precisar datas, sem pormenores característicos.
Conhecera-o nos sertões de Pernambuco, um ou dois anos depois da partida do Crato. Das palavras desta
testemunha, concluí que Antônio Maciel, ainda moço, já impressionava vivamente a imaginação dos sertanejos.
Aparecia por aqueles lugares sem destino fixo, errante. Nada referia sobre o passado. Praticava em frases breves
e raros monossílabos. Andava sem rumo certo, de um pouso para outro, indiferente à vida e aos perigos,
alimentando-se mal e ocasionalmente, dormindo ao relento à beira dos caminhos, numa penitência demorada e
rude...
Tornou-se logo alguma coisa de fantástico ou mal-assombrado para aquelas gentes simples. Ao abeirar-se das
rancharias dos tropeiros aquele velho singular, de pouco mais de trinta anos, fazia que cessassem os improvisos e
as violas festivas.
Era natural. Ele surdia — esquálido e macerado — dentro do hábito escorrido, sem relevos, mudo, como uma
sombra, das chapadas povoadas de duendes...
Passava, buscando outros lugares, deixando absortos os matutos supersticiosos.
Dominava-os, por fim, sem o querer.
No seio de uma sociedade primitiva, que pelas qualidades étnicas e influxo das santas missões malévolas
compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres, o seu viver misterioso rodeou-o logo de não
vulgar prestígio, agravando-lhe, talvez, o temperamento delirante. A pouco e pouco todo 0 domínio que, sem
cálculo, derramava em torno, parece haver refluído sobre si mesmo. Todas as conjeturas ou lendas que para logo
o circundaram fizeram o ambiente propício ao germinar do próprio desvario. A sua insânia estava, ali,
exteriorizada. Espelhavam-na a admiração intensa e o respeito absoluto que o tornaram em pouco tempo árbitro
incondicional de todas as divergências ou brigas, conselheiro predileto em todas as decisões. A multidão
poupara-lhe o indagar torturante acerca do próprio estado emotivo, o esforço dessas interrogativas angustiosas e
dessa intuspecção delirante, entre os quais envolve a loucura nos cérebros abalados. Remodelava-o à sua
imagem. Criava-o. Ampliava-lhe, desmesuradamente, a vida, lançando-lhe dentro os erros de 2 mil anos.
Precisava de alguém que lhe traduzisse a idealização indefinida, e a guiasse nas trilhas misteriosas para os céus...
O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autômato.
Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta condensava o obscurantismo de três
raças.
E cresceu tanto que se projetou na História...
Peregrinações e martírios
Dos sertões de Pernambuco passou aos de Sergipe, aparecendo na cidade de Itabaiana em 1874.
Ali chegou, como em toda a parte, desconhecido e suspeito, impressionando pelos trajes esquisitos — camisolão
azul, sem cintura; chapéu de abas largas derrubadas, e sandálias. Às costas um surrão de couro em que trazia
papel, pena e tinta, a Missão Abreviada e as Horas Marianas.
Vivia de esmolas, das quais recusava qualquer excesso, pedindo apenas o sustento de cada dia. Procurava os
pousos solitários. Não aceitava leito algum, além de uma tábua nua e, na falta desta, o chão duro.
Assim pervagou largo tempo, até aparecer nos sertões, ao norte da Bahia. Ia-lhe crescendo o prestígio. Já não
seguia só. Encalçavam-no na rota desnorteada os primeiros fiéis. Não os chamara. Chegavam-lhe espontâneos,
felizes por atravessarem com ele os mesmos dias de provações e misérias.
Eram, no geral, gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho, farândula de vencidos da vida, vezada à mandria e à
rapina.
Um dos adeptos carregava o templo único, então, da religião minúscula e nascente: um oratório tosco, de cedro,
encerrando a imagem do Cristo.
Nas paradas pelos caminhos prendiam-no a um galho de árvore; e, genuflexos, rezavam. Entravam com ele,
triunfalmente erguido, pelos vilarejos e povoados, num coro de ladainhas.
Assim se apresentou o Conselheiro, em 1816, na vila do Itapicuru-de-Cima. Já tinha grande renome.
Di-lo documento expressivo publicado aquele ano, na capital do Império.
"Apareceu no sertão do norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio Conselheiro, e que exerce grande
influencia no espírito das classes populares servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que
impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e
alimenta-se tenuamente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e
ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo
sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guindo-o a seu gosto. Revela ser homem inteligente, mas sem
cultura".
Estes dizeres rigorosamente verídicos, de um anuário impresso centenares de léguas de distancia, delatam bem a
fama que ele já granjeara.
Lendas
Entretanto a vila de Itapicuru esteve para ser o fecho da sua carreira extraordinária. Foi, ali, naquele mesmo ano,
entre o espanto dos fiéis, inopinadamente preso. Determinara a prisão uma falsidade, que o seu modo de vida
excepcional e as antigas desordens domésticas de algum modo justificavam: diziam-no assassino da esposa e da
própria mãe.
Era uma lenda arrepiadora.
Contavam que a última, desadorando a nora, imaginara perdê-la. Revelara, por isto, que era traído; e como este,
surpreso, lhe exigisse provas do delito, propôs-se apresentá-las sem tardança. Aconselhou-o a que fantasiasse
qualquer viagem, permanecendo, porém, nos arredores, porque veria, à noite, invadir-lhe o lar o sedutor que o
desonrara. Aceito o alvitre, o infeliz, cavalgando e afastando-se cerca de meia légua, torceu depois de rédeas,
tornando, furtivamente, por desfreqüentados desvios, para uma espera adrede escolhida, de onde pudesse
observar bem e agir de pronto.
Ali quedou longas horas, até lobrigar, de fato, noite velha, um vulto aproximando-se de sua vivenda. Viu-o
achegar-se cautelosamente e galgar uma das janelas. E não lhe deu tempo para entrar. Abateu-o com um tiro.
Penetrou, em seguida, de um salto, no lar e fulminou com outra descarga a esposa infiel, adormecida.
Voltou, depois, para reconhecer o homem que matara... e viu com horror que era a sua própria mãe, que se
disfarçara daquele modo para a consecução do plano diabólico.
Fugira, então, na mesma hora apavorado, doido, abandonando tudo, ao acaso, pelos sertões em fora...
A imaginação popular, como se vê, começava a romancear-lhe a vida, com um traço vigoroso de originalidade
trágica.
O asceta
Como quer que fosse, porém, o certo é que em 1870 a repressão legal o atingiu quando já se ultimara a evolução
do seu espírito, imerso de todo no sonho de onde não mais despertaria. O asceta despontava, inteiriço, da rudeza
disciplinar de quinze anos de penitência. Requintara nessa aprendizagem de martírios, que tanto preconizam os
velhos luminares da Igreja. Vinha do tirocínio brutal da fome, da sede, das fadigas, das angústias recalcadas e
das misérias fundas. Não tinha dores desconhecidas. A epiderme seca rugava-se-lhe como uma couraça
amolgada e rota sobre a carne morta. Anestesiara-a com a própria dor; macerara-a e sarjara-a de cilícios mais
duros que os buréis de esparto; trouxera-a, de rojo, pelas pedras dos caminhos; esturrara-a nos rescaldos das
secas; inteiriçara-a nos relentos frios; adormecera-a em transitórios repousos, nos leitos dilacerantes das
caatingas...
Abeirara muitas vezes a morte nos jejuns prolongados, com requinte de ascetismo que surpreenderia Tertuliano,
esse
sombrio propagandista da eliminação lenta da matéria, "descarregando-se do seu sangue, fardo pesado e
importuno da alma impaciente por fugir..."
Para quem estava neste tirocínio de amarguras, aquela ordem de prisão era incidente mínimo. Recebeu-a
indiferente. Proibiu aos fiéis que o defendessem. Entregou-se. Levaram-no à capital da Bahia. Ali, a sua
fisionomia estranha: face morta, rígida como uma máscara, sem olhar e sem risos; pálpebras descidas dentro de
órbitas profundas; e o seu entrajar singularíssimo; e o seu aspecto repugnante, de desenterrado, dentro do
camisolão comprido, feito uma mortalha preta; e os longos cabelos corredios e poentos caindo pelos ombros,
emaranhando-se nos pelos duros da barba descuidada, que descia até à cintura — aferroaram a curiosidade geral.
Passou pelas ruas entre ovações de esconjuros e "pelos sinais" dos crentes assustados e das beatas retransidas de
sustos.
Interrogaram-no os juízes estupefatos.
Acusavam-no de velhos crimes, cometidos no torrão nativo. Ouviu o interrogatório e as acusações, e não
murmurou sequer, revestido de impassibilidade marmórea.
A escolta que o trouxera, soube-se depois, espancara-o covardemente nas estradas. Não formulou a mais leve
queixa.
Quedou na tranqüila indiferença superior de um estóico.
Apenas — e este pormenor curioso ouvimo-lo a pessoa insuspeita
-Letras em Construção-
Traducción de Antes de que caiga la nieve
Letra traducida a Español
Traducción de la letra realizada con IA.0
0
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